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A maioridade penal como cláusula pétrea

Por Renato de Mello Jorge Silveira
Atualização:

Análise publicada originalmente no Estadão Noite O tema não é novo, e parece, como certas espécies migratórias, retornar de tempos em tempos. Hoje, de todo modo, em um cenário onde tristemente o Direito Penal assume um papel cada vez mais de destaque como bandeira política, volta à tona a questão da redução da maioridade penal. Algumas considerações devem ser inicialmente feitas. Existe hoje no Brasil uma desmedida violência urbana. Em muitos casos, ainda que adolescentes não sejam responsáveis por tantos homicídios quanto se faz alardear, jovens entre 12 e 18 anos cometem, sim, atos bastante reprováveis, os quais, se fossem eles adultos, seriam vistos como crimes. Mostra-se imperioso que algo se faça, e é aí que reside a dúvida maior. O que pode o legislador e o que não pode fazer? Recorde-se, ainda que rapidamente, e a título de comparação, a questão da pena de morte (outra recorrente bandeira de alguns grupos políticos). Muitos bradam, ainda hoje, por sua legalização. Outros, mais zelosos, afirmam, peremptoriamente, que não se poderia aceitá-la no sistema brasileiro, pois o art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal, estabelece que não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias constitucionais. Recorde-se, no entanto, que, ainda em épocas próximas à 1988, chegou-se, em resposta aos opositores da pena de morte, a dizer que sua aprovação não diria respeito a uma abolição de direitos de garantias fundamentais. É certo - diziam - o art. 5º, XLVII, do Texto Maior, afirma que não haverá penas de morte, mas faz uma exceção. Estas seriam admitidas em caso de guerra declarada nos termos da própria Constituição, e regulada pelo Código Penal Militar em tempo de guerra. Existe um interessante paralelo com aquela ponderação, de quase um quarto de século, com o que hoje se destaca sobre a redução da maioridade penal. Alguns dos argumentos colocados em seu favor afirmam que não se estaria, de fato, a contrariar a regra existencial da inimputabilidade penal. Esta existe, e é prevista no art. 228, da Constituição Federal, onde se vê que "são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial." Muito bem, segundo o entendimento por alguns esposado, a regra (não passível de abolição) seria mantida, mas o limite de dezoito anos poderia, sim, ser modificado. Outra vertente de leitura, diria, simplesmente, que a regra sobre inimputabilidade não se encontra abarcada explicitamente pelos direitos e garantias fundamentais. Os penalistas, como os juristas de forma geral, muitas vezes evitam respostas peremptórias a determinadas indagações, aludindo que, conforme seja a particularidade do caso concreto, o certo pode pender para um ou para outro lado. Tratar-se-ia de famigerada condicional que, infelizmente, deve ser quase sempre posta em tela. Aqui, no entanto, isso não parece necessário. Em primeiro lugar, mesmo que não faça parte do art. 5º, da Constituição Federal (o qual trata dos direitos e das garantias individuais), parece evidente, a quem tem olhos de ver, que o marco etário dos dezoito anos mostra-se, sim, como uma fronteira com implicações em direitos e garantias individuais. Mesmo que topograficamente não se perceba o dispositivo dentro daqueles direitos e garantias, ele faz parte implícita destes. A segunda ponderação, no entanto, é de mais difícil resposta, e remete à discussão da pena de morte. Seria possível, ao invés de se abolir um pretenso direito e garantia, como a proibição de penas capitais, simplesmente criar uma exceção ao mesmo, ou, no caso, reduzir seu patamar? Aparentemente não, nem no caso da pena de morte, nem no caso da maioridade penal. As exceções e os marcos fronteiriços dos direitos e garantias fundamentais foram dados pelo constituinte, e ele próprio estabeleceu a noção de imutabilidade dos mesmos. E, aqui, leia-se imutabilidade como sendo abolição ou restrição. Essa seria a única leitura garantista possível, ainda mais no cenário normativo atual. Por mais sedutor que o discurso repressor possa parecer, deve-se recordar que ele não é resposta para tudo, e que existem barreiras intransponíveis para o seu avanço. Outras medidas, enfim, devem ser buscadas, sob risco de ser presente uma eventual censura por parte do Supremo Tribunal Federal. É claro que isso poderia, ainda, suscitar a dúvida do que fazer com o problema dos adolescentes infratores, versando, eventualmente, sobre mudança das regras de internação dos adolescentes, ou, mesmo, sobre o tempo dessa internação. Isso, contudo, é motivo para um novo debate. * Renato de Mello Jorge Silveira, advogado, é professor Titular da Faculdade de Direito da USP e Diretor da Escola Paulista de Advocacia do IASP

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