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A jornalista Luciana Garbin traz foco para as questões femininas na sociedade atual

Opinião|True Crime Community: violência, extremismo e um perigo que os pais precisam conhecer

Grupos online celebram massacres, endeusam terroristas e crescem sem controle em redes sociais; pesquisadora alerta para falta de programas de prevenção e combate ao extremismo violento no Brasil

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Atualização:

Quando uma tragédia como a da escola da Vila Sônia acontece, adeptos de uma subcultura online chamada True Crime Community se atiçam. Massacres cometidos por extremistas são sempre motivo de excitação por lá. Com especial predileção por crimes feitos por jovens, que geralmente acham que estão se vingando de um mundo onde não se sentem adequados nem queridos. O alerta é da pesquisadora Michele Prado, especializada em radicalização online e extremismo.

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Engana-se quem pensa que essa subcultura de ódio precisa se esconder na deep web. Seus adeptos postam livremente suas imagens cheias de armas e tiros, bem como mensagens endeusando terroristas, no Twitter, Instagram, TikTok, Discord, Reddit. Sem praticamente nenhum controle. Se sentem tão livres que muitos informam no próprio perfil que fazem parte da comunidade e adoram enaltecer nomes de terroristas. Também criam e compartilham vídeos com cenas de massacres mundo afora. Em agosto do ano passado, um estudante invadiu uma escola em Vitória com bombas caseiras, bestas e facas. Ameaçou professores e estudantes, mas foi contido por policiais e seguranças e ninguém ficou ferido. Logo a TCC se incendiou com referências ao caso. Além de seguidores lamentarem o fato de o jovem de 18 anos não ter conseguido matar ninguém, passaram a caçoar dele. Michele encontrou tuítes que o comparavam a um frango assado, porque foi amarrado após ser imobilizado. “Ponto importante: a subcultura não se relaciona só com brasileiros, mas com o mundo inteiro. Os tuítes que mais viralizaram partiram de contas dos Estados Unidos”, alerta.

Segundo ela, grupos misóginos muitas vezes servem como iscas para adolescentes e jovens. Neles, encontram “mentores” que os guiarão num caminho cada vez mais perigoso de ódio, misantropia, ideação suicida, supremacia branca, apologia ao terrorismo e ao holocausto, entre outras pragas.

Comoção em homenagem à professora morta em colégio estadual na Vila Sônia, na zona oeste de São Paulo Foto: Carla Carniel/Reuters

No caso da Vila Sônia, o adolescente de apenas 13 anos também era encorajado por usuários da rede. Um deles já tinha várias fotos preparadas e as postou num vídeo minutos depois do ataque. Quando ainda não havia nenhuma informação disponível na imprensa. “Acredito que ele seja administrador e uma espécie de líder dentro dessa subcultura online extremista pois é sempre o primeiro a produzir edits dos massacres e a saber quem é o envolvido. O que indica que tem conhecimento prévio dos atentados (e os incentiva)”, conta Michele.

O governo paulista anunciou que a Polícia Civil vai investigar e intimar para depor todas as pessoas que reagiram às postagens do assassino da Vila Sônia. Mas isso soará até inocente se se ativer apenas a esse caso. No mundo online conectado, o combate ao extremismo violento tem de ser constante e transnacional. A própria pesquisadora vive enviando perfis preocupantes para autoridades pois em mais de 80% dos episódios o agressor verbaliza a ideação do atentado. Mas não há centralização de dados nem trabalho interligado de autoridades de diferentes Estados. “Muitos desses perfis já foram denunciados, a conta cai, mas retorna.”

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Também piora a situação do Brasil a pouca regulamentação das plataformas. Conteúdos de extremismo violento e terrorismo circulam livremente pelas redes sociais. A falta de debate qualificado sobre o assunto é outra agravante. O tema de prevenção e combate ao extremismo violento praticamente não é estudado por aqui e, a cada ataque, programas sensacionalistas de TV passam horas mostrando imagens do atentado e do assassino, para deleite de comunidades mórbidas que se revezam na celebração das atrocidades e impulsionam mais jovens desajustados a cometer novos ataques.

Junta-se a isso o fato de que a radicalização online tem atingido pessoas cada vez mais jovens, já a partir dos 10, 11 anos. Michele relata que a pandemia potencializou a radicalização online e essa queda na faixa etária. Além de diminuir o período para radicalização. “Antes era necessário um longo período de exposição a conteúdos extremistas, mas, segundo estudo conduzido pelo Start (consórcio de respostas ao terrorismo doméstico e extremismo violento), esse período caiu para 18 meses.”

Além das lacunas legais e institucionais no País e da falta regulação das plataformas, que na maior parte do tempo finge que o problema não é com elas, faltam programas de saúde mental e impera uma postura punitivista, em que só se entra em ação após o episódio violento, quando famílias de vítimas já estão lamentando suas perdas.

“A abordagem do extremismo no Brasil sempre foi focada em questões político-eleitorais. Perdeu-se uma visão mais ampla. Nem temos centros de pesquisa específicos no campo de estudo de radicalização, extremismo e terrorismo, como há em outros países.” Alemanha e Noruega, por exemplo, mantêm programas de prevenção e combate ao extremismo violento, além de ações para desradicalizar agressores.

Nesse cenário não é de estranhar que a sociedade se sinta acuada. Pais não percebem sinais de radicalização dos filhos; escolas e professores ainda tentam entender essa nova realidade bem mais violenta e complexa. “Há uma imensa falta de informações no Brasil para equipar pais, professores, cuidadores com ferramentas que lhes permitam reconhecer sinais de radicalização e intervir antes do pior e da necessidade da aplicação da lei”, finaliza Michele, ela mesma uma vítima de assédio digital e cyberbulling.

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Opinião por Luciana Garbin

Editora no ‘Estadão’, professora na FAAP e mãe de gêmeos.

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