Foi em 2014 que o espetáculo O Mágico Di Ó começou a ganhar um perfil. Naquela época, o ator e dramaturgo Vitor Rocha foi convidado pela escola mineira onde dava aula a montar o a conhecida história de O Mágico de Oz. “Não me senti animado, pois seria mais uma montagem sem grande novidade”, conta ele que, com o consentimento da direção, repaginou a trama, trazendo-a para perto da realidade brasileira. “O clássico ganhou forma de cordel”, vibra ele, que protagoniza uma montagem mais elaborada de O Mágico Di Ó, que estreia dia 10 de agosto, no Teatro João Caetano.
Antes de entrar nos detalhes, é preciso voltar um pouco no tempo. No ano passado, Vitor Rocha foi aclamado em quase todas premiações de teatro como a revelação da temporada. Isso por conta de Cargas D’Água – Um Musical de Bolso, espetáculo pequeno mas cuidadosamente costurado em que Rocha contou uma história original utilizando o repertório vocabular do sertão mineiro. O trabalho revelou-se tão bem acabado que uma versão em inglês, Out Of Water – A Pocket Brazilian Musical, estreia em Nova York ironicamente no mesmo 10 de agosto.
Em seguida, ele se manteve coerente com Se Essa Lua Fosse Minha, cuja temporada termina nesta semana (veja abaixo), em que incorpora cantigas de roda a uma fábula agridoce sobre amores que não se realizam. Nos dois trabalhos, o rapaz de 21 anos demonstra uma rara habilidade em se apoiar na prosódia mineiro-nordestina para tratar de temas urgentes, como a relação entre padrasto e afilhado (um dos temas de Cargas) e relações sufocadas por imposições familiares (Se Essa Lua...)
Agora, com O Mágico Di Ó, ele se apoia na migração. “Eu me perguntava: “E se o caminho dos retirantes nordestinos até São Paulo se transformasse na estrada de tijolinhos amarelos?”, conta Rocha que, assim, ambienta a história em um caminhão que roda quilômetros infinitos até chegar à capital paulista. Lá estão Doroteia, uma menina sem imaginação, Osvaldo, um vendedor de folhetos de cordel e outros homens e mulheres esperançosos de uma vida melhor. “Para amenizar a viagem, Osvaldo começa a contar uma história em que todos participam”, explica Rocha, que volta a buscar no folclore brasileiro elementos para melhorar a trama – assim, o Espantalho é representado por um mamulengo, enquanto o Leão é inspirado no reisado nordestino.
“O que me incomoda no original é que, com exceção de Dorothy, nenhum personagem tem algum objetivo na vida. Por isso, nessa versão, busquei humanizar cada um deles”, explica Rocha, que vive Osvaldo em cena. Já Doroteia é interpretada por Luiza Porto, que encenou esse clássico há alguns anos, mas sentia necessidade de apresentar mais. “Convivo com jovens, faço muito teatro infantil e entendo a importância da linguagem”, conta a atriz, que participa do projeto desde o início. Com canções inéditas, que vão do baião ao xote, o musical tem a direção delicada de Ivan Parente e, fechando um belo elenco, Elton Towersey, Lui Vizotto, Thiago Sak, Diego Rodda e Renata Versolato.
‘Se Essa Lua Fosse Minha’. O tom fabular dos espetáculos de Vitor Rocha não os tornam infantis ou mesmo escapistas – entre jogos infantis e canções regionais tradicionais, há uma preocupação com assuntos delicados, por vezes incômodos. Foi assim em Cargas D’Água, em que a relação entre padrasto e afilhado é marcada pela insensibilidade, o que impulsiona o protagonismo a seguir sua viagem de descoberta. E também em Se Essa Lua Fosse Minha, cuja temporada termina na quarta, 10. Na 3.ª, haverá sessão extra.
Aqui, ele une fábulas ibéricas com cantigas populares e brincadeiras de roda para contar uma história que lembra Romeu e Julieta: Leila e Iago vivem em terras distintas e inimigas. O amor entre eles, porém, ignora rivalidades e só não se concretiza porque é derrotado por inveja e ciúme daquele que se julgava amigo, Pirulito, grande parceiro de Leila. É curiosa a escolha do nome Iago para o protagonista, vivido com delicadeza por Pier Marchi: no mundo shakespeariano, ele é o protótipo do mal. No mundo de Rocha, é a esperança de uma humanidade sem barreiras. Mas o dramaturgo brasileiro é um idealista e a peça termina de forma surpreendente: se até então dominavam as brincadeiras e os joguetes, a parte final é marcada por uma boa dose de ceticismo, com o fim dos sonhos.
O texto fala sobre a importância dos sonhos, de querer e fazer o bem, em plantar o amor, fala sobre ódio e liberdade. E, para que isso aconteça, o elenco afiado (além de Marchi, destacam-se Alberto Venceslau, Danilo Martho, Davi Tápias, Fábio Ventura, Fernando Lourenção, Larissa Carneiro, Letícia Soares, Luci Salutes, Marisol Marcondes, Vitor Moresco e o próprio Rocha) é decisivo. Mas é impossível sair do teatro sem sentir um certo incômodo. Ponto positivo para uma dramaturgia que não se ilude com os próprios recursos. SE ESSA LUA...Teatro do Núcleo Experimental. R. Barra Funda, 637. 3ª (9/7), 16h e 21h. 4ª (10/7), 21h. R$ 60.
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