ODESSA, Ucrânia — Em um país em guerra, e em uma cidade que anseia dolorosamente por algo que se assemelhe à normalidade, a Ópera de Odessa reabriu pela primeira vez desde a invasão russa, uma afirmação de civilização contra o barbarismo desencadeado a partir de Moscou.
A apresentação de sexta feira no magnífico Teatro de Ópera, inaugurado em 1810 no platô próximo deste porto do Mar Negro, atualmente fechado, começou com uma apaixonada execução do hino nacional ucraniano. Imagens de campos de trigo agitados pelo vento formavam o fundo, um lembrete do grão do interior fértil que há muito torna Odessa rica, mas agora aguarda em silos de armazenamento enquanto a guerra continua e aumenta a escassez global de alimentos.
“Caso ouçam sirenes, procurem o abrigo do teatro”, disse Ilona Trach, funcionária do teatro encarregada de apresentar o programa. “Vocês são a alma desta casa de ópera, e consideramos muito importante demonstrar que ainda conseguimos nos apresentar depois de 115 dias de silêncio.”
Odessa tem se mostrado quieta nas semanas mais recentes, mas, cem quilômetros ao leste, na cidade portuária de Mikolaiv, visitada pelo presidente Volodmir Zelenski no sábado, a artilharia russa faz uma ofensiva constante. Não é segredo que o presidente russo Vladimir Putin cobiça Odessa, porto essencial para a economia da Ucrânia, cidade que durante muito tempo foi símbolo cultural dos impérios russo e depois soviético.
Se as arborizadas ruas de paralelepípedos da cidade indicam calma, trata-se de uma calmaria frágil que pode ser quebrada a qualquer momento. Mas, nesse aspecto, Odessa, cuja história é uma procissão de triunfos e traumas conforme as fronteiras mudaram, o Holocausto a engoliu e ciclos de prosperidade e ruína se seguiram, sempre viveu pelo momento.
O teatro, um palácio rococó de tranças douradas, veludo vermelho de Lyon, lustres e espelhos, estava com um terço da sua capacidade como resultado de restrições de segurança. Viacheslav Chernukho-Volich, principal maestro do teatro, conduziu uma apresentação que incluiu um dueto de “Romeu e Julieta”, e árias de “Tosca”, “Turandot” e do compositor Kostiantyn Dankevych, nascido em Odessa.
A música parecia um desafiador milagre de cultura e beleza, a recusa definitiva da selvageria russa vista em Bucha e Mariupol, lugares que se tornaram sinônimos da destruição gratuita desencadeada por Putin em uma guerra que reflete a obsessão dele segundo a qual a Ucrânia seria um país fictício.
“Faz 10 dias que conseguimos com o exército a permissão para tocar, e hoje é só alegria”, disse Chernukho-Volich. “No início da guerra, as explosões e sirenes me deixaram aterrorizado, como se eu tivesse mergulhado em algo irreal, um filme da 2.a Guerra, mas o ser humano se acostuma a tudo. É difícil, mas queremos acreditar na vitória da civilização.”
Chernukho-Volich trabalhou em Moscou por muitos anos, mas, em 2014, quando Putin anexou a Crimeia e fomentou uma guerra separatista na região do Donbas, leste da Ucrânia, ele diz ter passado por uma epifania: a ideia imperial era inseparável da Rússia, e qualquer político preparado para provar desse veneno, como Putin, poderia ao mesmo tempo prosperar em casa e ameaçar o mundo. Ele partiu.
Agora ele se apresenta em uma casa de ópera projetada originalmente por um arquiteto de São Petersburgo e reconstruída após um incêndio por arquitetos vienenses, com uma fachada decorada com um busto de Alexander Pushkin; e vive em uma cidade fundada por uma imperatriz russa e substancialmente erguida por um duque francês, que durante anos abrigou comerciantes de todas as fés, atraídos do Mediterrâneo e do outro lado das estepes da Ásia Central.
Putin quer colocar tudo isso sob o seu cada vez mais brutal jugo, em nome de um império russo. Ele deseja calar o murmúrio poliglota de Odessa, cidade definida por sua abertura, cuja música reflete essa mistura.
“Odessa é sua própria nacionalidade”, disse Grigory Barats, membro da comunidade judaica de Odessa, muito dispersada por causa da invasão russa. Assistindo à apresentação, ele disse pensar na mãe, de 96, que vive no Brooklyn e já trabalhou no teatro.
Os aplausos ao fim da apresentação foram demorados, pontuados por gritos de “Bravo!” Nos bastidores, a soprano Marina Najmytenko, que interpretou Julieta, irradiava orgulho e emoção. “É a arte que vai nos ajudar a sobreviver e preservar nossa essência para podermos vencer esta guerra”, disse ela.
Perguntei a ela quando seria isso. “Infelizmente”, disse ela, “é algo que vai durar algum tempo. Ficamos deprimidos só de pensar no quanto Putin parece ser louco”. Mas, prosseguiu ela, Julieta lhe trouxe uma inspiração particular. “É Shakespeare, é a juventude, é o mais puro amor.”
Sob certos aspectos, a abertura da Ópera em uma cidade que, há apenas dois meses, foi atingida por um ataque com foguete que deixou oito mortos, capturou dois aspectos da Ucrânia conforme a guerra se arrasta e as frentes de batalha mudam lentamente, quando mudam: um país onde algo superficialmente semelhante à normalidade foi restaurado em grandes áreas enquanto combates intensos prosseguem no leste e em partes do sul.
“É importante mostrar que Odessa está viva, que a Ucrânia está viva, que queremos viver e criar, enquanto os ocupantes russos trazem apenas mortes e matanças”, disse Gennadiy Trukhanov, prefeito de Odessa, em entrevista. “Se Putin ousasse atacar a ópera, o ódio que enfrentaria em todo o mundo seria inimaginável.”
Trukhanov, visto anteriormente como simpatizante russo, mudou de posição e atualmente é visto como loquaz defensor da Ucrânia e de sua cidade desde o início da guerra. Desmerecendo as acusações de envolvimento com o crime organizado, ele se disse triste por ver “a Rússia destruir o próprio legado cultural do país”.
Seria Putin capaz de atacar o centro de Odessa? “Quem se revelou capaz do que vimos em Bucha, em Mariupol, em Mikolaiv, é capaz de qualquer coisa”, disse ele. “Foi isso que aprendemos.”
Mas, por enquanto, o show continua na irrepreensível Odessa, mesmo com uma alta nas tensões culturais. Trukhanov se vê pressionado para rebatizar a rua Pushkin, perto da prefeitura. O brilhante romancista e dramaturgo russo viveu em Odessa em 1823.
“Não”, disse o prefeito. “Não defendo essa campanha. Odessa é a capital intercultural da Ucrânia. Estou preocupado com o crescimento do ódio em relação a tudo que é russo.”
Mas esse ódio pode ser o resultado inevitável da guerra gratuita de Putin: dizer a um país que ele não existe fará com que ele se una como nunca antes, resistindo resolutamente para proteger sua existência. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL