Especial para o Estado
A onda da volta ao passado chega ao extremo. O garum, que anda aparecendo nas cozinhas profissionais no Brasil e no exterior, era o hit dos condimentos dois mil anos atrás. Potente, picante, escuro, não podia faltar em um banquete no Império Romano. Era popular também entre gregos e fenícios durante toda a Antiguidade, usado para temperar carnes, aves, peixes e às vezes até vinho.
A receita milenar é muito simples: vísceras de peixe, sal e tempo. O pescado se decompõe e dá origem a um caldo escuro, forte e intenso.
Guru dos fermentados, o americano Sandor Katz define garum como “peixe liquefeito” e ensina a fazê-lo em seu livro A Arte da Fermentação (Editora Sesi-SP): peixe de água salgada fresco e com as vísceras (dá para fazer com frutos do mar também), sal (de 15 a 25%), pote de vidro ou cerâmica e tempo. Com o passar dos dias, processos digestivos enzimáticos transformam o pescado (sólido) em líquido – o tempo de fermentação, que determina nuances no sabor e a cor do produto, varia de 30 dias a dois anos. Já o sal em grande quantidade serve para proteger o molho do rápido apodrecimento e de bactérias nocivas.
Pois esse líquido, que tem um cheiro fortíssimo, está inspirando chefs em todo o Ocidente. Em nome da complexidade e do sabor dos pratos, há uma leva de cozinheiros retomando a produção caseira do condimento.
O molho de peixe é ingrediente básico na cozinha asiática – a Tailândia tem o nam pla, o Vietnã faz o nuoc mam, Filipinas usa o patis e a versão coreana chama-se eojang. Em Chaoshan, na China, “pode faltar sal na cozinha, mas não molho de peixe”, como atesta a série documental A Origem do Sabor, lançada pela Netflix neste ano. Mas agora começa a ser preparado artesanalmente nos restaurantes ocidentais.
Aficionado por fermentação, o chef dinamarquês René Redzepi mantém um laboratório no seu restaurante Noma, em Copenhague, para testar e cultivar fermentados. Entre um sem-fim de missôs, kombuchas e picles, Redzepi e seu braço-direito David Zilber aventuram-se na produção de garum de lula, de caranguejo, de camarão com rosa (isso mesmo, a flor), entre outras ousadias. No menu-degustação da temporada Seafood, em cartaz até 1 de junho, o mix de frutos do mar chega à mesa com avelãs marinadas em garum de lagosta.
Como a dupla Redzépi-Zilber compartilhou o modo de preparo de boa parte desses garuns no recém-lançado Noma Guide To Fermentation (Artisan), o chef Ivan Ralston, do restaurante paulistano Tuju, se viu instigado a investir na produção própria – que contou com pitacos de Fernando Goldenstein, sócio da Cia. dos Fermentados. Fez três versões de garum: a de lula, que tempera sua lula com cebola caramelizada, croqueta de tinta e limões curados; a de camarão com jasmim; e a de pólen de abelha nativa, que em breve deve afinar um drinque.
A chef Tássia Magalhães descobriu o garum na época em que trabalhou em Copenhague e aposta na receita clássica, feita com partes iguais de anchova e sal. Ela usa o garum para incrementar os arrozes que levam frutos do mar do seu restaurante Riso.e.ria, localizado no Itaim Bibi. O molho, depois de fermentado e coado, é equilibrado com vinho branco, açúcar e pimenta.
No Corrutela, Cesar Costa inventou moda ao fermentar, por 30 dias, manjubinhas ovadas com sal num pote de vidro tampado. “Sacudia a mistura uma vez por semana”, conta. O molho resultante foi usado para glacear o shiitake assado na grelha, que ganhou notas de mar e um “punch” no sabor. “Aprovei, mas não emplaquei, com receio de batidas da Vigilância Sanitária. No Brasil, a produção de fermentados ainda é um tabu e pode trazer problemas”, afirma.
Não existe uma legislação específica sobre a produção de molhos fermentados no País. Mas a agente de fiscalização da Covisa, Andrea Boanova, afirma que “os chefs, guiados pelo costume e pela bibliografia que vem de fora, podem, sim, preparar o próprio garum na cozinha, assumindo a responsabilidade do que estão oferecendo”. Ela recomenda encomendar pesquisa microbiológica que ateste a segurança alimentar do produto.
O chef Paulo Shin, do restaurante Komah, prefere usar molho de peixe importado da Coreia na produção do seu kimchi. “Já pensei em fazer o molho do zero, mas há muito risco e trabalho para um resultado não tão diferente do industrializado”, afirma. A chef Dani Borges, do Cochinchine, também é adepta da versão comprada. “Uso nuoc man, que é mais delicado que o nampla.”
Os molhos de peixe
Essenciais em algumas cozinhas asiáticas, os molhos de peixe, parentes do garum, são parecidos, mas têm pequenas nuances de sabor, aroma e cor devido ao tempo de fermentação. A diferença está nos detalhes, como explica a professora Susana Jhun, da Universidade Anhembi Morumbi.
● Garum | Além de anchovas ou atum, a receita romana, fermentada em potes de cerâmica, pode ser feita com frutos do mar
● Nampla | Molho de peixe tailandês, geralmente fermentado em barril de madeira, o que lhe confere sabor ainda mais complexo. É o mais fácil de ser encontrado no Brasil
● Eojang | A versão coreana, bem mais ácida, é indispensável no preparo do kimchi – além de incrementar o sabor da conserva, funciona como “agilizador” da fermentação
● Nuoc Mam | Vietnamita, esse molho também fermenta em tonel de madeira. É mais suave que o nam pla tanto em sabor quanto em aroma (muitas vezes encontrado diluído em água)
● Molho de Chaoshan | Típico dessa cidade portuária chinesa, é feito com peixe hilsa (pescado na foz do rio Han) e fermenta por 24 meses em tambores “esquecidos” ao sol
● Patis | De cor mais escura, o molho filipino demora de 6 a 12 meses para ficar pronto. Depois de coado, a parte sólida é moída para formar a pasta bagoong, que é usada como condimento
Vestígios do garum
Por Patrícia Ferraz
As ruínas milenares das fábricas de garum podem ser vistas na costa da Andaluzia. São museus a céu aberto, em Málaga ou nos arredores de Cádiz, onde se vê os tanques de fermentação, as áreas de limpeza do peixe e armazenamento do molho que atravessaram os séculos. A região da pesca de atum, na Espanha, produzia o molho em larga escala – ali a pesca é feita pelo sistema de redes almadraba, criado pelos fenícios, a quem se atribui também a invenção do garum.
Logo depois da pesca, retiravam-se as vísceras dos peixes e elas eram jogadas em tanques com sal. Depois de meses ao sol, o líquido fermentado – muito valorizado –, era distribuído por todo Império Romano em ânforas.