A Academia de Gravação dos Estados Unidos mandou socorro em boa hora. Recém-apagados os incêndios em Los Angeles, em meio a uma América do Norte ainda fumegante de tensões provocadas pelas primeiras semanas da beligerante administração Trump, a 67ª edição do Grammy fez escolhas previsíveis, mas diplomáticas, que trouxeram uma dose de alívio às pessoas que fazem e dão cara à indústria musical. Os nomes consagrados na premiação ajudam a afastar a academia das recentes acusações de racismo; em discursos e homenagens, foram exaltados imigrantes, a bandeira DEI (diversidade, equidade e inclusão) e a cultura queer.

Depois de perder quatro vezes (todas para artistas brancos: Taylor Swift, Beck, Adele e Harry Styles), Beyoncé finalmente ganhou um dos prêmios de maior prestígio (o último a ser anunciado, na cerimônia realizada em Los Angeles, na noite de domingo, 2 de fevereiro): o de Álbum do Ano. Não deixa de ser irônico que a vitória tenha vindo com Cowboy Carter, um disco “transgênero” — que quebrou barreiras entre gêneros musicais. A incursão da cantora texana pelo country lhe valeu o 35º gramofonezinho dourado da carreira, aumentando sua vantagem como maior vencedora do Grammy em todos os tempos. Ela recebeu o prêmio de uma equipe de bombeiros de Los Angeles e o dedicou à Linda Martell, que no fim dos anos 1960 foi a primeira cantora preta a fazer sucesso na country music americana.
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Beyoncé voltou para casa consagrada com três novos Grammy. O maior campeão da noite, porém, foi o rapper Kendrick Lamar, ganhador em cinco categorias — sendo duas das mais graúdas, Gravação do Ano e Canção do Ano — com o megahit Not Like Us, cuja letra é basicamente um ataque ao colega canadense Drake. “No fim das contas, nada é mais poderoso do que o rap. (...) Nós somos a cultura. Isso vai ficar aqui e viver pra sempre”, vaticinou Kendrick, legítima cria de Compton, cidade nas bordas de Los Angeles, ao receber o prêmio das mãos de Diana Ross.

A indústria da música se mostrou adepta do perdão — negócios são negócios, claro. O cantor The Weeknd, que em 2020, em meio a críticas pesadas (“Os Grammys continuam corruptos. Vocês devem transparência a mim, a meus fãs e à indústria”), anunciou que iria boicotar a academia e deixar de inscrever suas músicas no prêmio, foi recebido de braços abertos. Meio desconfortável, com o rosto enfiado em um capuz, ele aproveitou os holofotes para promover sua recém-lançada Cry For Me.

Outro que recebeu uma nova chance foi o ator e rapper Will Smith, banido das premiações do Oscar por dez anos depois que, em 2022, deu um tapa na cara do comediante Chris Rock. Ele apresentou a homenagem ao maestro e produtor Quincy Jones (1933-2024), que incluiu o momento musical mais mágico — e despojado — da noite: Stevie Wonder na gaita acompanhado por Herbie Hancock ao piano, tocando Bluesette, o adorável standard de jazz “primo da bossa”, obra-prima do belga Toots Thielemans (1922-2016). Stevie também brilharia depois com o recado de We Are The World, atualíssimo em tempos de “make America great again”). E Janelle Monáe arrasou no momento Michael Jackson cover, cantando e dançando endiabrada Don’t Stop Til You Get Enough.
No segmento In Memoriam, Chris Martin, líder do Coldplay, tocou ao piano All My Love, balada do último disco do grupo, enquanto eram mostrados nomes do meio musical mortos no ano passado (o brasileiro Sérgio Mendes foi um deles). Faria mais sentido artístico e histórico preparar um número com uma canção de Kris Kristofferson (1936-2024), nome gigante na música popular americana.
Bruno Mars e Lady Gaga, premiados por Melhor Performance de Duo ou Grupo Pop, também decepcionaram. Trocaram o hit Die With a Smile por uma versão de California Dreamin’ mais esportiva do que artística, próxima do virtuosismo anódino propagado por programas ao estilo The Voice.

Gaga foi mais afiada ao dar uma das declarações contundentes da noite, todas proferidas por mulheres: “Pessoas trans não são invisíveis”. Ao agradecer pelo prêmio especial de Impacto Global, Alicia Keys discursou: “Não é hora de acabar com a diversidade de vozes. Vimos neste palco pessoas talentosas e trabalhadoras de diferentes origens, com diferentes pontos de vista, e isso muda o jogo. DEI não é uma ameaça, é uma dádiva”. Shakira, vencedora na categoria Melhor Álbum de Pop Latino, com Las Mujeres Ya no Lloran, dedicou a vitória aos “irmãos e irmãs imigrantes”. No começo da cerimônia, ela tinha sido alvo de uma piada cretina (e surrada) do apresentador Trevor Noah, que a definiu como “a melhor coisa da Colômbia que não é ilegal”.
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Os brasileiros indicados ao Grammy deste ano não tiveram sorte. O prêmio de Melhor Álbum Latino de Jazz foi para Cubop Lives!, de Luques Curtis, Zaccai Curtis, Willie Martinez, Camilo Molina & Reinaldo de Jesus, frustrando as expectativas de Hamílton de Holanda, indicado por COLLAB, disco em parceria com o cubano Gonzalo Rubalcaba, e Eliane Elias, indicada por Time and Again. Anitta perdeu para Shakira. Milton Nascimento, 82 anos, ficou sem assento para assistir à cerimônia, e não ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Jazz Com Vocal, por Milton + Speranza. Perdeu para o álbum A Joyful Holiday, da jovem cantora americana Samara Joy. Coincidentemente, em 2023, ela havia vencido o Grammy de Melhor Artista Nova, liquidando as esperanças dos fãs de Anitta, que naquele ano também estava indicada na categoria. Simpática, no tapete vermelho, Samara deu entrevista e mostrou que não tem nada contra brasileiros: cantarolou Minha Saudade, preciosa parceria de João Donato e João Gilberto.

Uma constatação: rock anda ruim de audiência nos EUA; mesmo premiando gigantes como Beatles e Rolling Stones, o gênero foi parcialmente barrado no baile das transmissões do Grammy. Os vencedores de todas as categorias rock foram anunciados horas antes, na parte chamada de “premiere” da cerimônia. Os Beatles venceram em Melhor Performance de Rock pela canção póstuma Now and Then, e os Rolling Stones faturaram em Melhor Álbum de Rock, por Hackney Diamonds. A cantora americana St. Vincent ganhou em três categorias: Melhor Canção Rock, Melhor Performance em Rock Alternativo e Melhor Álbum Alternativo.
Em outros gêneros, porém, a cena parece estar bem arejada e com apelo televisivo. A cerimônia principal abriu espaço para cinco dos indicados a Melhor Artista Novo mostrarem seu valor em apresentações em sequência: o cantor Benson Boone (que subiu no piano e deu um salto mortal), a carismática rapper Donchii (premiada depois por Melhor Álbum de Rap), Teddy Swims, Shaboozey (dono do megahit A Bar Song, que botou a casa abaixo) e a inglesa Raye, de poderosos dotes vocais, que deve ter conquistado milhões de fãs novos com sua performance. Todos os cinco fizeram bonito, dando saudáveis amostras de diversidade e capacidade de cantar ao vivo, sem playback.
Mas quem levou o prêmio na categoria foi a americana Chappel Roan, 26 anos, drag queen lésbica e darling da crítica, que surgiu montada num pônei gigante cenográfico, levando uma extravaganza pop ao palco da cerimônia. No discurso de agradecimento, ela surpreendeu ao fazer uma reivindicação para a classe: exortou as gravadoras a oferecer aos artistas “em desenvolvimento” salários “que dêem para viver” e plano de saúde.

Também na ala jovem, outra britânica, Charli XCX, 32 anos, dominou a cena com uma farra hedonista ao cantar Von Dutch e Guess, destaques de seu álbum Brat, que lhe valeu três Grammy.
Sabrina Carpenter, 25 anos, vencedora em Melhor Performance Pop Solo, com seu viciante single Espresso, mostrou talentos adicionais em uma apresentação ao estilo Broadway, com direito a um breve sapateado. Depois, paparia ainda outro prêmio importantíssimo, Melhor Álbum Pop, por Short n’Sweet.
No começo da cerimônia, Billie Eilish, seis indicações este ano, cantou a ótima Birds of a Feather, para delícia de colegas célebres como Taylor Swift, dona de sete indicações, que levantou da cadeira e se soltou em uma de suas dancinhas pseudodesajeitadas. Incrivelmente as duas voltaram sem nenhum prêmio. Mas parecem ter se divertido bem ao longo da noite beneficente. No fim da festa, já tinham sido arrecadados mais de sete milhões de dólares para os bombeiros de Los Angeles.