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Peça ‘Mulheres Sonharam Cavalos’ traz à tona reflexos da ditadura argentina

A diretora Malú Bazán usa como base os anos sombrios do país vizinho para discutir os processos totalitários do Brasil

Por Bruno Cavalcanti
Atualização:

Diretora argentina radicada no Brasil, Malú Bazán sabe uma coisa ou duas sobre a dramaturgia latino-americana. Em sua trajetória como encenadora e estudiosa, sempre estabeleceu pontes com o trabalho produzido em países de língua hispânica vizinhos ao Brasil, sendo responsável por ministrar cursos, coordenar palestras e escrever sobre as diferenças e similaridades culturais do teatro latino - falado em português ou espanhol.

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“Nascida em 1978 na Argentina, vinda ao Brasil com 3 anos, eu já tenho esse trânsito com a América Latina, porque ele está em mim”, explica. “O que me toca tem a ver com essa ponte de estreitamento de laços, de achar que as diferenças e proximidades entre uma cultura e outra ajudam a gente a se entender.”

Ditadura argentina

É sintomático, portanto, que o nome da encenadora tenha sido o primeiro na lista dos atores Bruno Perillo e Rita Pisano quando decidiram remontar Mulheres Sonharam Cavalos, texto do argentino Daniel Veronese escrito em 2003 e montado no Brasil em 2012, refletindo a herança deixada pela última ditadura no país vizinho (1976-1983), que não só conflagrou um aprofundamento da crise econômica que assolava o governo da presidente deposta Isabelita Perón, como entrou para a história pelos sucessivos casos de sequestros de crianças entregues a famílias de militares e de simpatizantes do regime.

Elenco da peça 'Mulheres Sonharam Cavalos', dirigida por Malú Bazán Foto: Rogerio Alves

Esse é o pano de fundo do espetáculo em cartaz até o dia 30 na Oficina Cultural Oswald de Andrade após curta temporada de estreia em 2021 no Espaço º Andar. 

Em Mulheres Sonharam Cavalos, três irmãos e suas respectivas esposas se encontram para um jantar repleto de tensões e revelações no qual paira o fantasma do passado familiar e questões como a violência, a infidelidade e os reflexos da ditadura militar por intermédio de uma jovem possivelmente sequestrada e trazida para o seio da família.

“A Argentina tem essa elaboração do processo da ditadura, de olhar para o que passou de uma forma analítica, inclusive pelo fato de não ter havido a anistia, então isso passa sempre pelo lugar da reflexão olhando sempre para o hoje, para os reflexos que a ditadura teve na sociedade hoje. Está para além de uma questão histórica e memorialística. Aqui no Brasil, essas questões ainda precisam ser mais deflagradas, delatadas e assumidas”, analisa a diretora.

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Sociedade violenta

“Nós falamos dessa violência intrínseca de uma sociedade que passa por todas as ditaduras, e isso é muito inteligente no texto quando põe a violência entremeada em todas as relações. É um microcosmo para falar de toda uma sociedade. E chega, inclusive, a uma violência específica, que é a relação desses homens com os corpos dessas mulheres. É muito pertinente. Estamos em uma sociedade em que o presidente incita a violência, então a gente percebe o quanto ela se expande e está arraigada na estrutura”, completa a encenadora.

O Brasil ainda está no processo de assumir que passou por uma ditadura e não por uma revolução. Olhar para o vizinho ajuda

Malú Bazán, diretora

O elenco, formado por atores de diferentes escolas e registros cênicos, recicla a linguagem da diretora de conectar universos através da encenação. Em cena, estão nomes como os idealizadores Bruno Perillo e Rita Pisano, a atriz-criadora Erica Montanheiro, os atores Haroldo Miklos e Gustavo Trestini, e a atriz, cantora e dramaturga com largo currículo no teatro musical Anna Toledo. “Isso me interessa! É o trabalho de transformar o elenco num grupo que tenha uma linguagem comum”, diz.

Buscando inspiração na ditadura argentina, Bazán acredita que consiga falar com mais propriedade sobre os processos totalitários do Brasil do que com um texto essencialmente brasileiro. “Eu aposto na metáfora! Acho que fazer um texto absolutamente direto, no qual o que você quer abordar está como tema na palavra, e só, me interessa menos do que um quadro em que tenho espaço para me enxergar. Esse espaço do espelho, da revolução de cada um, é a potência do teatro, e eu faço teatro por isso. O Brasil ainda está no processo de assumir que passou por uma ditadura e não por uma revolução. Olhar para o vizinho ajuda.” 

Mulheres Sonharam Cavalos

Oficina Cultural Oswald de Andrade. Rua Três Rios, 363, Bom Retiro.  6ª, 20h. Sáb., 15h e 18h. Gratuito.  Retire o ingresso no local com 1 hora de antecedência. Até 30/4.

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