‘Viúva, Porém Honesta’, de Nelson Rodrigues, ganha leitura online com elenco afiado

Especialista na obra rodriguiana, Marco Antônio Braz dirige uma versão online da peça, em homenagem ao dramaturgo, morto há 40 anos

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Por Ubiratan Brasil
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Alvo constante da crítica e, às vezes, também do público, o escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) não se fazia de rogado: usava a própria arte para se defender. Foi assim em diversos de seus artigos e também em algumas peças, notadamente Viúva, Porém Honesta, que estreou no dia 13 de setembro de 1957, no Teatro São Jorge, no Rio de Janeiro. Era o que Nelson qualificava como “farsa irresponsável em três atos”.

É com tal despreocupação com o realismo e apoiado por um elenco afiado que o diretor Marco Antônio Braz (especialista na obra rodriguiana) dirige uma versão online da peça, que será apresentada neste domingo, 23, a partir das 15h – ingressos gratuitos podem ser adquiridos na plataforma Sympla (www. sympla.com.br). Será uma leitura em homenagem ao dramaturgo, morto há 40 anos.

Nelson.'Assim como todos os personagens têm algo de corrupto, também têm algo de simpático', diz o crítico Flávio Aguiar. Foto: Acervo Estadão

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A trama é impagável: diretor do jornal A Marreta, um dos mais influentes do País, J.B. de Albuquerque Guimarães (cujas falas serão ditas por Renato Borghi) não consegue convencer sua filha única, Ivonete (Lucélia Santos), a deixar de velar seu marido morto, Dorothy Dalton (Leonardo Silva), e voltar a ter uma vida normal – afinal, tem apenas 15 anos e pode se casar novamente.

Como a menina se revela irredutível (não quer nem sentar, em honra ao falecido), o pai contrata a ex-prostituta Madame Cri-Cri (Miriam Mehler), o psicanalista Dr. Lupicínio (Kiko Marques) e o otorrino Dr. Sanatório (Caco Coelho), todos evidentes charlatões, para dissuadir Ivonete. É bom lembrar que Dorothy Dalton era ex-fugitivo da SAM (entidade que então deveria cuidar do bem-estar de menores infratores) e que foi escolhido por Ivonete quando o pai, tentando se livrar de uma gravidez indesejada, obrigou a menina a escolher alguém da redação do jornal para se casar.

Sim, Dalton, que era homossexual, trabalhava em A Marreta como... crítico de teatro. “Não é escrito e escarrado o crítico teatral da nova geração?”, orgulha-se J.B., ecoando o pensamento malicioso de Nelson Rodrigues, então sob forte marcação dos profissionais especializados. Como nenhum dos “especialistas” consegue ressuscitar Dalton (que morreu atropelado por um carrinho de sorvetes Chicabon), a solução encontrada pelo empresário é contratar Diabo da Fonseca (Nilton Bicudo) que, durante uma sessão espírita, reaviva o defunto e, como prêmio, desposa Ivonete.

“Disposto a ir às últimas consequências, Nelson entregou-se à mais desenfreada caricatura”, observou Sábato Magaldi, crítico do Estadão que, nos anos 1980, organizou e classificou todas as peças do escritor, trabalho ainda hoje considerado definitivo. “Esqueceu-se propositalmente de todas as regras da dramaturgia, ou melhor, fez questão de transgredi-las e instaurar no palco uma ampla loucura, em que valeria o brilho efêmero do instante.”

“Nelson escreveu esse texto em vingança a um crítico que falara mal de Perdoa-me Por Me Traíres”, comenta Braz. “Construiu uma metralhadora giratória de frases que atiram para todas as instituições nacionais. O texto se tornou para nós uma forma de desabafo cômico e artístico que se insurge contra tudo isso que está aí, como diria Nelson. Suas críticas são absolutamente pertinentes e atuais.”

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“Sim, atuais”, concorda Renato Borghi. “A metáfora do País é mostrada por meio de um deboche ultrajante, a paródia se faz de forma gritante, clara, explícita. Nesse sentido, a peça de Nelson é irmã de O Rei da Vela”, completa o ator, referindo-se ao texto de Oswald de Andrade, e em cuja montagem célebre, ele participou.

O diretor tem o desafio de comandar a distância um grupo grande que, apesar da larga experiência, ainda engatinha no formato online. “Nunca interpretei dessa forma, sem plateia”, comenta Miriam Mehler, que ostenta uma valiosa carreira de mais de 60 anos. “Mas tem que ser prazeroso – no meu caso, penso Madame Cri-Cri como uma falsa polaca, com um falso sotaque e obcecada por ganhar dinheiro pelo sexo.”

Pelo mesmo caminho segue Lucélia Santos: “Creio também que não será possível a transposição dessa linguagem teatral na qual você tem ator e plateia cúmplices, pertinho, quase juntinho, com olho no olho – isso não deve acontecer online, em uma transposição digital”, comenta a atriz.

Como sempre faz, Marco Antônio Braz, que vai ler as rubricas, pretende ser fiel a cada vírgula do texto. “Tratar cada frase como se fosse um monólogo”, observa. “E nos divertir e desabafar – sinto que as pessoas nesse país precisam desse texto. O teatro rodriguiano é a melhor vacina contra a estupidez, a ignorância e ódio que nos cerca.”

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