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Fábrica de chips bilionária abandonada em Minas pode ser chance de o Brasil entrar na briga global

Unidade recebeu R$ 1,2 bilhão de sócios, entre eles o BNDES, mas jamais chegou a produzir; agora, setor automotivo tenta achar novos investidores para reativar a unidade

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Por Cleide Silva
Atualização:

Anunciada em 2012 e com previsão de início de operações três anos depois, mas inativa até agora, a fábrica de semicondutores da Unitec em Minas Gerais, um investimento de mais de R$ 1,2 bilhão, virou uma espécie de “isca” para atrair grupos internacionais para produzir o componente no Brasil. Hoje, ele é importado da Ásia e sua escassez desde o início da pandemia tem provocado paradas em várias fábricas no mundo, principalmente as de veículos.

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Os dois principais acionistas da Unitec são, atualmente, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a empresa argentina Corporación America, com 33% de participação cada. Entre os minoritários estão o Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG) e as empresas Matec e Intecs.

O uso de suas instalações e infraestrutura em Ribeirão das Neves, na região metropolitana de Belo Horizonte, poderia antecipar em dois anos o início da produção local de chips. Uma fábrica nova pode levar no mínimo quatro anos para ficar pronta.

Foi esse “benefício” – de já ter estrutura para acelerar o processo – que um grupo de dirigentes do setor automotivo e de representantes do governo federal apresentou a dois fabricantes de semicondutores em viagem ao Japão nas duas últimas semanas. Uma delas é a Renesas, uma das grandes produtoras de chips no mundo, com sede em Tóquio.

Fábrica de semicondutores está pronta, mas sem operações Foto: Washington Alves/Light Press/Estadão

O governo brasileiro também informou que, em breve, editará uma Medida Provisória estabelecendo desoneração tributária, alternativas de financiamento e infraestrutura a interessados em investir na produção local.

Outro ponto destacado pelo grupo é o tamanho do mercado brasileiro. Só a indústria automotiva deve demandar quase 4 bilhões de chips por ano, tendo como base uma produção anual de 2,3 milhões de veículos, segundo cálculos da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Cada carro novo tem aproximadamente 1,5 mil microchips.

“Dirigentes das duas empresas japonesas (uma pediu para não ter o nome divulgado) ouviram as propostas, pediram mais informações e vão agendar novos encontros, aqui no Brasil, para discutir o tema”, informa o presidente da entidade, Márcio de Lima Leite, que liderou o grupo em visita ao Japão.

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Ele lembra que, em vários países, especialmente na Ásia, há 29 fábricas de semicondutores em construção, projetos que foram iniciados antes da crise de escassez provocada pela pandemia. “Hoje, para comprar equipamentos para a produção, há fila de espera de dois a três anos.”

A produção local passou a ser imprescindível para a indústria brasileira, avalia Leite. A demanda por chips, já bem elevada, vai aumentar substancialmente com o uso do 5G, da internet das coisas e a chegada de carros elétricos, conectados e autônomos.

Histórico conturbado

Há várias justificativas para o não funcionamento da fábrica que seria a primeira da América do Sul a operar em várias etapas da produção de chips. Ela foi idealizada em 2005 pelo ex-presidente da Volkswagen do Brasil, Wolfgang Sauer – que era um dos acionistas, mas faleceu em 2013. Teve como principal sócio, ao lado do BNDES, o empresário Eike Batista, que vendeu sua parte à Corporación America em 2014, logo após os escândalos que levaram seu grupo à falência.

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Com essa aquisição de ações, o nome da empresa foi alterado de Six para Unitec, o mesmo que a fábrica de chips do argentino tem no país, onde produz chip para cartões de celulares, documentos de identidade, passaportes e outras aplicações.

A empresa brasileira está em recuperação judicial, com dívidas trabalhistas e tributárias de R$ 600 milhões. A situação se aprofundou em 2019, quando a IBM, então dona de 18,8% das ações e provedora da tecnologia, abandonou o projeto. A matriz americana vendeu suas operações globais da área de semicondutores, e o comprador não se interessou pela fábrica local.

Fábrica chegou a ter 150 funcionários e foram feitos testes de maquinário e produção Foto: Washington Alves/Estadão - 27/10/2017

Marco Aurélio Barreto, sócio da Tauá Partner e responsável pelo processo de recuperação judicial da Unitec, afirma que o projeto também passou por dificuldades em razão de alterações do câmbio, que elevaram os custos dos investimentos em reais pois a maior parte dos equipamentos era importada.

“O que a Unitec mais precisa hoje é de um operador que entenda do tema, que faça design e produção de semicondutores, que tenha clientes e fornecedores”, diz Barreto. O Brasil abriga oito empresas que realizam partes do processo de produção de chips, mas nenhuma que faça a maior parte das etapas.

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Em nota enviada ao Estadão, a Corporación America informa também que, em 2015, os bancos públicos suspenderam as linhas de crédito originalmente previstas. “Esta circunstância levou à necessidade dos acionistas aumentarem seus compromissos de capitalização”, diz.

“A Corporación América manifestou interesse em fazer as contribuições correspondentes ‘pari passu’ com os demais sócios mas, infelizmente, eles não quiseram continuar fazendo contribuições de capital”, acrescenta a nota, e hoje a planta permanece em “estado pré-operacional”.

A companhia argentina diz que fez diversas contribuições extraordinárias para garantir a manutenção da empresa e a proteção de seus ativos e que também concedeu linhas de crédito para apoio à Unitec e à proteção de seus ativos. Segundo informações, alguns equipamentos já teriam sido vendidos.

Dívidas trabalhistas

O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Belo Horizonte e região, Geraldo Valgas, diz que a Unitec chegou a ter 150 funcionários que prepararam a fábrica e fizeram testes de produção e simulações. Em 2020, eram apenas 30. A entidade representa dez deles em uma ação trabalhista que, segundo o sindicalista, já está no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Ao todo, o grupo pede cerca de R$ 7 milhões em indenizações.

Quem também tem ação contra a empresa é o BNDES que, além de acionista, emprestou R$ 173 milhões à Unitec. A instituição afirma que já foi determinada a expedição de carta precatória para penhora de um imóvel dado em hipoteca – uma área da Fazenda Mato Grosso, na própria Ribeirão das Neves.

Segundo o BNDES, “neste momento, com o aquecimento do mercado global de semicondutores, a companhia e seus acionistas têm buscado investidores estratégicos que se alinhem ao seu plano de negócios, com vistas a tornar a empresa operacional.” O BDMG vai na mesma linha e diz apoiar “o processo de busca por um plano de reestruturação que envolva a atração de novos investidores”.

Componente usado em diversos produtos está escasso desde o início da pandemia Foto: Washington Alves/Estadão - 27/10/2017

Já a Prefeitura de Ribeirão das Neves informa que não está participando do processo de busca de novos investidores, mas tem interesse em acompanhar o tema. O governo de Minas também diz que a Secretaria de Estado e Desenvolvimento Econômico tem interesse em atrair investimentos para o setor, considerado fundamental para a economia. “Neste sentido, apresentações com potenciais investidores estrangeiros já foram realizadas”, informa a pasta, sem informar se algum deles manifestou interesse.

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4,5 milhões de carros deixaram de ser produzidos no mundo

A falta de semicondutores ainda aflige a indústria automobilística no mundo todo. O fornecimento melhorou em relação ao ano passado, mas está longe de se normalizar. A previsão é de que o problema se mantenha em 2023, mas com menor impacto em relação a este ano. De janeiro até agora, o Brasil deixou de produzir cerca de 170 mil veículos por falta de chips e outros componentes. Em 2021 inteiro foram 378 mil.

Lá fora há 29 fábricas em construção e se o Brasil não entrar nessa onda vamos fica muito atrasados

Márcio de Lima Leite, presidente da Anfavea

Dados da consultoria internacional AutoForecast Solution (AFS) indicam que, no mundo todo, há uma perda acumulada de produção de 4,2 milhões de veículos neste ano, somando cerca de 15 milhões de unidades desde o início da pandemia. Para o presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite, a reindustrialização do Brasil passa pela produção de itens hoje só importados, como os semicondutores.

“Lá fora há 29 fábricas em construção e se o Brasil não entrar nessa onda vamos ficar muito atrasados”, diz o executivo. Segundo Leite, nos dois últimos anos ficou muito clara a dependência do Brasil e de outros países da Ásia - maior produtora do componente -, mas governos como o dos EUA, de países europeus e mesmo os asiáticos estão investindo na localização de chips. “Nós não temos escolha”.

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