THE WASHINGTON POST - Um dos melhores colunistas de jornal de todos os tempos, o falecido Russell Baker, do New York Times, superou até a si próprio com um lacerante artigo satírico publicado em 12 de maio de 1973, sob o título “Matemática do bombardeio”.
Nenhum resumo é capaz de fazer jus ao texto, que mescla repugnância e gargalhadas em medidas que remetem à “proposta singela” de Jonathan Swift de servir bebês irlandeses em restaurantes ingleses.
Baker usa falas do então secretário de Defesa a respeito dos bombardeios americanos no Camboja e no Laos para conceber uma fórmula matemática para salvar os “corações e mentes”— uma construção popular no tempo da Guerra do Vietnã — das pessoas despejando bombas sobre elas.
Estimando com precisão o peso médio dos civis bombardeados (quer dizer, o “corpo contendo o coração e a mente a serem salvos”) e relacionando esse número à tonelagem das bombas lançadas no trimestre anterior, conforme relatado pelo burocrata convicto, Baker sugeriu uma equação aplicável a qualquer país.
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“Para salvar os corações e mentes da Itália”, aventurou-se ele num exemplo, “teríamos de lançar 67,13 quilos anualmente para cada italiano, e há cerca de 55 milhões deles. Isso significa que teríamos de lançar 3,69 bilhões de quilos de bombas ou, para arredondar, 4 milhões de toneladas”.
Para o humanista, a “Matemática do bombardeio” é uma condenação gritante da selvageria dos bombardeios indiscriminados. Para o estrategista, esse breve ensaio é uma aula magna a respeito da inutilidade de bombardear populações.
Apesar de o ditador russo, Vladimir Putin, não dar nenhum sinal de possuir um lado humanista, ele se considera um estrategista. Portanto, deveria ter em conta as considerações de Baker.
A destruição cega de cidades da Ucrânia promovida por Putin por meio de bombardeios e disparos de artilharia não deixará a população do país de joelhos, da mesma maneira que lançar 45 quilos de bombas sobre cada laosiano não liquidou a guerra dos EUA no Vietnã. Mas não aceite meramente a palavra um sátiro. Aqui vai o ponderado julgamento de um dos mais proeminentes historiadores da guerra do século 20, Richard Overy, da Universidade de Exeter, na Inglaterra:
“A Força Aérea Americana lançou mais bombas na Guerra do Vietnã do que na 2.ª Guerra, com a convicção de que se continuassem a despejar bombas e napalm isso evitaria de alguma maneira que o Vietnã do Norte tomasse o Vietnã do Sul — ou até ocasionaria o colapso do Vietnã do Norte e abriria caminho para um Vietnã ‘democrático’”, notou o historiador vários anos atrás numa entrevista para a Revista Internacional da Cruz Vermelha.
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“Isso não funcionou, e o Vietnã se tornou um Estado comunista. Acho que entre todos os exemplos do século 20 este é o mais marcante. Enormes quantidades de bombas foram lançadas contra uma sociedade em desenvolvimento, sob a expectativa de que isso produziria algum tipo de dividendo político. E no fim, o dividendo foi para o inimigo.”
O Vietnã não era o único exemplo que Overy poderia ter citado. O bombardeio de Londres e Stalingrado pela Luftwaffe não quebrou a determinação de britânicos e soviéticos.
Generais japoneses estavam prontos para seguir lutando logo após as bombas nucleares dizimarem Hiroshima e Nagasaki. Putin tem seus próprios problemas com corações e mentes na Síria, onde militantes islamistas antigoverno continuam a combater nas áreas rurais, mesmo depois do regime apoiado pela Rússia ter bombardeado cidades controladas por rebeldes até reduzi-las a cinzas.
Irving Janis, psicólogo
Quando jovem, o eminente psicólogo Irving Janis — que posteriormente cunhou a expressão “pensamento de grupo” — foi encarregado pela Rand Corporation de estudar os efeitos de campanhas de bombardeios massivos sobre populações civis durante a 2.ª Guerra. Ele constatou que as pessoas são capazes de resistir a todo tipo de perigo e privação indefinidamente, desde que acreditem que seus governos estão lutando para protegê-las.
Os cidadãos da Ucrânia têm motivo para acreditar. Uma combinação bem motivada e bem liderada entre soldados treinados e civis furiosos quebrou o ataque de Putin em várias frentes. Portanto, não há razão para crer que lançar mais mísseis e disparar mais projéteis de artilharia contra cidades produzirá algo além de massacres sem sentido. “Aparentemente”, escreveu Janis, “ganha-se cada vez menos com os efeitos dos crescentes bombardeios aéreos sobre a moral das pessoas”.
Seria desejável que Putin e seus lacaios olhassem para a história do século passado e concluíssem que mais bombardeios na Ucrânia seriam um exercício fútil de sanguinolência. Isso parece improvável — pelo menos por agora. Alguns especulam que Putin continuará seus bombardeios para que refugiados ucranianos continuem a pressionar os recursos do Ocidente. Outros imaginam que ele buscará destruir o país se for incapaz de conquistá-lo.
Ambas as hipóteses podem ser verdadeiras. Mas jamais subestime a inércia de um jogador que se afunda numa aposta ruim. A perda seria pesada demais para se admitir, então o apostador insiste na mão, dobrando sua aposta com a esperança de que algum capricho do destino ou a sorte pura intervenham para redimi-lo. Os EUA tentaram isso no Vietnã, no Camboja e no Laos, e a conta não fechou. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
*David Von Drehle é jornalista e colunista
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