Suprema Corte dos EUA mudou sobre o aborto nos últimos 50 anos; leia o artigo

Para colunista do Washington Post, deliberação sobre interrupção da gravidez ficar na esfera estadual não é necessariamente ruim

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Por Kathleen Parker, The Washington Post
Atualização:
5 min de leitura

O vazamento do rascunho de decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos sugerindo uma reversão do caso Roe versus Wade foi um teste de Rorschach para um país há muito dividido em relação a suas morais fundamentais.

Os lutadores comuns neste embate reagiram de maneira previsível, ainda que o documento seja penas um “rascunho” redigido pelo juiz Samuel Alito e poderá ou não receber a aprovação dos cinco conservadores. Pobre do presidente da corte, John Roberts, que testemunhou o vazamento sem precedentes em sua gestão e ordenou uma investigação.

Mas as 100 páginas do rascunho merecem a atenção, enquanto melhor sumário conservador a respeito da razão por que as “destacadamente fracas”, como ele coloca, decisões nos casos Roe (1973) e Casey (1992) devem ser revertidas.

Alegações

Alito se esforça para argumentar que não apenas os conservadores consideraram falhas as fundamentações no caso Roe. Conforme citado no texto, Archibald Cox, secretário de Justiça nos governos de John Kennedy e Lyndon Johnson, ressaltou que Roe “parece uma cartilha de regras hospitalares e regulações” que “nem historiadores, leigos ou advogados consideram parte da Constituição”.

Enquanto Roe legalizou o aborto segundo o direito à privacidade, Casey estabeleceu o aborto como liberdade – de fazer “escolhas íntimas e pessoais”, “cruciais para a dignidade pessoal e a autonomia”. É difícil atualmente argumentar em contrário, porque nos acostumamos com essas ideias.

Manifestantes a favor do aborto protestam contra manifestantes anti-aborto em frente à Suprema Corte dos EUA em Washington  Foto: MICHAEL REYNOLDS/EPA/EFE

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Muitos americanos – de 60% a 70% – apoiam Roe e não querem que a decisão seja revertida, segundo pesquisas do Gallup e do Pew Research Center. Mas outras sondagens também mostram opiniões favoráveis a limitar abortos no segundo trimestre das gestações.

Mudança

Nos últimos 50 anos, já oscilei a favor e contra Roe. Quando virou lei, em 1973, uma versão muito mais jovem de mim deu pulinhos e bateu palmas, tamanha felicidade. Onze anos depois e grávida do meu filho, tornei-me outra pessoa e pensei diferente. Ficou claro que eu não passava de um vetor para esta outra vida autônoma que crescia dentro de mim e minha função era protegê-la. Claro, o corpo era meu, mas a vida era dele. De modo que me tornei, por falta de um termo melhor, pró-vida.

Mesmo assim, jamais apoiei a reversão de Roe, imaginando que educação e uma série de medidas para evitar a gravidez acabariam levando ao fim ao aborto. Em certa medida, isso ocorreu. Em 2017, o número absoluto e o índice de abortos nos EUA caiu para o nível mais baixo desde 1973, segundo o Instituto Guttmacher. A diminuição foi atribuída a menos gestações, não a políticas restritivas.

Quase 50 anos depois, e livre da preocupação com a gravidez, estou exausta desse debate infinito e das tentativas dos conservadores de estabelecer uma data para a dor fetal que os abortos deveriam evitar ou escutar os progressistas definirem “estatuto de pessoa” enquanto consciência de si, como se bebês possuíssem consciência. Nem a maioria dos adultos tem consciência de si.

Observei ambos os partidos proferirem exageros contra ou a favor de Roe e me perguntei se seria mesmo tão ruim se a deliberação a respeito do aborto coubesse aos Estados. Quais seriam as vantagens disso?

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Vantagens

Primeiramente, o aborto não seria ilegalizado universalmente, como alguns acham. Certos Estados limitariam ou eliminariam o acesso ao procedimento; outros transformariam em uma virtude sua a restrições em outros lugares. A ONG Planned Parenthood poderia redobrar seus esforços. Entidades de caridade e até os pais dos bebês poderiam colaborar.

Em segundo lugar, poderíamos testemunhar o fim do teste do aborto para políticos. Nenhum outro tema foi tão destrutivo para a civilidade. Os republicanos expurgaram candidatos a favor do direito de escolha das mulheres que, não fosse essa posição, poderiam ter contribuído. E os democratas pró-vida ficaram obsoletos. Não quero exagerar a importância disso, mas é algo que poderia abrir caminho para políticos mais moderados.

Por fim, a maior das ironias: as nomeações para a Suprema Corte poderiam não depender tanto da disposição dos candidatos em manter ou derrubar Roe. Audiências judiciais poderiam voltar a ser discussões de alto nível, em vez das atuais missões de busca e extermínio.

Decisão

Contra todos esses argumentos está a entrega da autonomia das mulheres à bondade de estranhos que integram as legislaturas estaduais e decidirão pelo voto se permitirão ou não abortos em cada Estado.

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Já que os homens não engravidam nem dão à luz, eles deveriam poder deliberar a respeito do aborto? Minha resposta: só se as mulheres puderem decidir se pílulas como o Viagra podem ou não ser vendidas nas farmácias.

Enquanto continuo me engalfinhando com esses assuntos, aqui vai uma pequena migalha para os que são favoráveis ao direito das mulheres à escolha: se a Suprema Corte decidir conforme parece provável, pode ser que não vejamos um outro presidente republicano por muito tempo. TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL