Soldados e rebeldes lutam por cocaína na Colômbia

Falhas na execução do acordo de paz fazem ressurgir a violência

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Por Julie Turkewitz
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7 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - Em um vilarejo controlado por rebeldes na mata, Joel participava de exercícios militares com seus camaradas, todos enfileirados, com uniformes camuflados e coturnos, fuzis pendurados no ombro. “Direita, volver”, gritou o instrutor.

Para Joel, de 36 anos, a cena era familiar. Ele passou seis anos no Exército, lutando contra a insurgência que aterrorizou a Colômbia por décadas. Agora, ele tem um novo chefe: um grupo armado clandestino que inclui os mesmos insurgentes que ele tentou derrotar quando era militar.

“Sei que as coisas não deveriam ser assim”, afirmou ele, descansando seu fuzil sobre as pernas. Joel disse que, depois que deixou o Exército, não conseguia se manter. E logo veio a proposta de US$ 500 por mês, quase o dobro do salário mínimo na Colômbia. “Agora, meus filhos levam uma vida melhor.”

Esperava-se que o acordo assinado em 2016 pelo governo e pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) criasse uma era de paz após cinco décadas de guerra. Pelo pacto, os rebeldes abandonariam as armas e o governo inundaria as zonas de conflito com oportunidades de trabalho, aliviando a pobreza e a desigualdade.

Milhares de combatentes das Farc abandonaram as armas. Mas, em muitos lugares, o governo nunca chegou. Em vez disso, partes da Colômbia rural testemunharam um retorno da violência que, em algumas regiões, é até pior do que antes do acordo.

A quantidade de assassinatos de defensores de direitos humanos cresceu e o número de deslocamentos continua alto, com cerca de 147 mil pessoas forçadas a fugir de suas casas no ano passado.

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Promessas

Isso não ocorre porque as Farc retomaram as armas. Em vez disso, o vácuo deixado pela guerrilha, assim como a ausência de muitas das reformas prometidas pelo governo, criaram um pântano criminoso, à medida que novos grupos se formam e antigos se reformulam na luta pelo controle do crime.

Ainda que muitos colombianos chamem esses grupos novos de “dissidentes”, em referência às Farc, sua composição é mais complexa. Alguns deles, ex-inimigos – rebeldes, soldados e paramilitares – misturam-se com recrutas e membros do crime organizado, todos atraídos pelo dinheiro.

Esses combatentes enfrentam antigos aliados pelo controle da droga, num fenômeno mais parecido com violência de gangues do que com a insurgência. “A luta é de camarada contra camarada, irmão contra irmão”, afirmou Benjamin Perdomo, fundador da milícia Comandos da Fronteira, à qual Joel se juntou seis meses atrás. Como outros entrevistados, Perdomo preferiu se identificar apenas por seu nome de guerra.

Em fevereiro, viajando de barco pela floresta amazônica, o Times passou uma semana com os Comandos, que lutam contra a Frente Carolina Ramírez, outro grupo de ex-guerrilheiros, pelo controle dos departamentos de Putumayo e Caquetá, que têm papel crucial no comércio da droga.

Especialistas alertam que, se o governo não assumir um papel maior em sufocar essas milícias e cumprir as promessas, o país se parecerá mais com o México – assolado por narcotraficantes – do que com a Colômbia dos anos 2000. “Ainda estamos longe de 2002″, afirmou Adam Isacson, diretor do Escritório de Washington na América Latina. “Mas estamos a caminho.”

O conflito com as Farc remonta aos anos 60, quando dois líderes comunistas declararam uma rebelião contra o Estado colombiano com o objetivo de instaurar um governo que daria apoio à população rural. Por décadas, a cocaína financiou a luta. Então, veio o acordo de paz, que exige do governo investimento em programas que afastem as comunidades rurais do cultivo da coca e privem os grupos armados de renda.

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Mas Putumayo, a horas de qualquer grande cidade, é um dos lugares onde as alternativas sustentáveis jamais chegaram, e a coca ainda domina. “O governo não tem ajudado em nada”, afirmou o presidente da legislatura municipal. “Para nós, o Estado é a coca.”

Para muitos moradores, os Comandos são apenas a mais nova milícia a ocupar a cidade. Os combatentes compram a coca que eles produzem e se tornaram empresários, polícia e administração pública.

Membros da milícia Comandos de la Frontera Foto: FEDERICO RIOS

Pobreza

Sob o regime das Farc, os líderes do grupo afirmavam que seu reinado de terror servia a um objetivo mais elevado. Perdomo diz a mesma coisa, afirmando que luta por “desenvolvimento, progresso e justiça social”. Mas, em entrevistas com membros dos Comandos, poucos mostraram ter alguma noção de que trabalham por um propósito maior.

Um dos integrantes é uma mãe solteira que não conseguia criar os filhos com o salário de US$ 90 que ganhava como empregada doméstica; outro, um ex-guerrilheiro, descobriu que ganharia como médico da unidade o dobro do que ganhava em um hospital público. Os Comandos não apenas pagam salários melhores, mas oferecem férias remuneradas, o que atrai centenas de recrutas. “A luta não é por um ideal”, disse um combatente. “É por dinheiro.”

Por toda a Colômbia, os confrontos entre grupos armados estão no nível mais intenso desde que o acordo foi assinado. No ano passado, mais de 13 mil pessoas foram mortas, o maior número desde 2014. Existem seis conflitos distintos ativos no país, segundo a Cruz Vermelha, três dos quais envolvem ex-membros das Farc.

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Em Putumayo, os Comandos são acusados de assassinatos, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias e “mobilização de terror”. A rival Frente Carolina Ramírez é tão brutal quanto eles.

O ministro da Defesa, Diego Molano, afirmou que os militares estão empregando “todo esforço” possível para combater esses novos grupos, com foco redobrado em eliminar chefes de unidades, erradicar a coca e desmobilizar os combatentes. “De maneira geral, contivemos a ameaça”, afirmou.

Mas, após uma operação recente, na qual o Exército matou 11 membros dos Comandos, ONGs denunciaram que vários dos mortos eram civis – e o ataque havia ocorrido durante uma festa de arrecadação de fundos para o município. Molano negou as acusações. “A operação não foi contra camponeses, foi contra dissidentes das Farc”, tuitou.

Críticos afirmam que o novo ciclo de violência é alimentado pela falta de compromisso do governo com os programas estabelecidos pelo acordo de paz. O presidente, Iván Duque, conservador, liderou uma campanha para alterar o pacto, afirmando que ele era brando demais com as Farc.

Desde que assumiu a presidência, em 2018, ele afirma que adota o acordo. Os números, porém, contam uma história diferente. No momento em que Duque assumiu, 22% do acordo já haviam sido aplicados, segundo o Instituto Kroc para Estudos sobre Paz Internacional. Durante seu mandato, ele aumentou para 30%.

Duque afirmou que um terço das provisões do acordo está implementado, o que completaria o processo de implementação em 15 anos. Mas Duque, cuja aprovação está em queda, deixará o cargo em agosto. “Este governo desperdiçou a oportunidade do acordo”, disse Marco Romero, diretor do grupo Codhes, de defesa de direitos humanos.

Dezenas de Comandos levantaram acampamento nas margens do Putumayo, fazendo suas camas entre as árvores e construindo uma cozinha ao lado de uma casa de fazenda feita de madeira. Os combatentes conectam-se à internet via satélite entre vacas e galinhas e trouxeram com eles sorvetes e tamales do vilarejo próximo. Eles compraram tijolos de pasta de coca dos camponeses – para revender a narcotraficantes – e testaram lançadores de granadas para usar contra a Frente Carolina Ramírez.

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Ainda que a nova geração de grupos armados tenha sido fraturada, analistas afirmam que começa a surgir uma associação entre duas facções, ambas lideradas por ex-comandantes das Farc, que afirmam pretender reconstruir a insurgência.

A preocupação, afirmou Kyle Johnson, da ONG Conflict Responses, é que essas alianças possam fazer a violência evoluir de batalhas fragmentadas entre pequenos grupos para um confronto entre duas forças maiores, desencadeando um conflito nacional. “Parece impossível um cenário pior que o atual”, disse. “Mas esse cenário seria muito pior.”

Talvez a maior diferença entre as antigas Farc e os Comandos seja o inimigo. “As Farc lutavam contra o Estado, mas os Comandos não atacam o governo, nem o consideram inimigo”, afirmou Perdomo, que passou mais de uma década nas Farc.

Recursos

Centenas de ex-combatentes das Farc foram mortos desde que o acordo de paz foi firmado, alguns pelos próprios camaradas, e muitos grupos de defesa de direitos humanos afirmam que o fracasso do governo em proteger ex-combatentes colabora para o rearmamento.

Perdomo afirmou que seu objetivo foi proteger ex-combatentes e colombianos comuns da brutalidade da Frente Carolina Ramírez. O objetivo, afirmou ele, era “erradicar” o grupo rival e negociar um acordo de paz mais robusto com as autoridades. “O narcotráfico era um meio de alcançar esse objetivo”, disse.

Mas analistas em segurança apontam que a decisão dos Comandos de não mirar o governo é também boa para os negócios: se eles não atacam o Estado, têm menos probabilidade de ser alvo – o que até agora não evitou que eles fossem perseguidos pelas forças de segurança. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO