A guerra baixa uma nova cortina de ferro sobre os palcos de balé da Rússia

Artistas da dança russos falam sobre como a guerra pode impactar um dos grandes destaques do país

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Por Alex Marshall
6 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - Poucos dias depois da invasão da Ucrânia, Olga Smirnova, uma das mais importantes bailarinas da Rússia, postou uma declaração emocionada no aplicativo de mensagens Telegram: “Sou contra a guerra, do fundo da alma. Nunca pensei que teria vergonha da Rússia, mas agora sinto que foi traçada uma linha que divide o antes e o depois.”

A bailarina Olga Smirnova pediu demissão do Bolshoi após se colocar contra a invasão russa à Ucrânia.  Foto: Melissa Schriek/The New York Times

Isso efetivamente é verdade para Smirnova, de 30 anos. À medida que a guerra piorava e a dissidência era esmagada na Rússia, a bailarina, que estava em Dubai se recuperando de uma lesão no joelho, percebeu que não poderia mais voltar para casa. “Se eu voltasse para a Rússia, teria de mudar completamente minha opinião, meus sentimentos em relação à guerra”, declarou em entrevista recente em Amsterdã, acrescentando que voltar seria “francamente perigoso”.

Assim, desligou-se do Bolshoi, famosa companhia cujo nome é sinônimo de balé, com seus luxuosos teatros a poucos quarteirões do Kremlin, cortou todos os laços e se mudou para Amsterdã, onde entrou para o Dutch National Ballet.

A partida de Smirnova é um golpe no orgulho de uma nação onde, desde o tempo dos czares, o balé é considerado tesouro nacional, principal produto de exportação cultural e ferramenta de soft power. Sua atitude é um dos símbolos mais visíveis de como a invasão russa da Ucrânia desestabilizou o balé, à medida que importantes artistas evitam as famosas companhias de dança da Rússia, teatros ocidentais cancelam apresentações do Bolshoi e do Mariinsky, e a dança na Rússia, aberta para o mundo desde o colapso da União Soviética, parece estar se fechando novamente.

“Estamos voltando à Guerra Fria”, afirmou Ted Brandsen, diretor artístico do Dutch National Ballet e novo chefe de Smirnova, invocando uma época famosa pela deserção de astros e estrelas soviéticos da dança, incluindo Rudolf Nureyev, Mikhail Baryshnikov e Natalia Makarova. Brandsen contou que bailarinos russos o contatavam diariamente, dizendo: “Não consigo ser eu mesmo como artista neste país.”

Simon Morrison, professor de Princeton e historiador do Bolshoi, observou que nos últimos anos o Bolshoi se tornara “mais liberal, internacional, cosmopolita, mais experimental”, tendo chegado a encenar um balé sobre Nureyev que mencionava sua homossexualidade. Agora, segundo ele, parecia haver “um empobrecimento do repertório”.

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O balé é um tipo de passatempo nacional na Rússia - uma joia cultural, mas também o foco de intensa emoção e críticas atentas de um público experiente, embora seja menos popular entre os jovens obcecados pela cultura pop. “O balé é adorado pelo povo russo como em nenhum outro lugar no mundo”, disse David Hallberg, que em 2011 se tornou o primeiro bailarino americano a integrar o elenco principal do Bolshoi, meio século depois que Nureyev se tornou o primeiro grande bailarino soviético a desertar para o Ocidente. “Smirnova foi muito corajosa ao deixar o Bolshoi, já que não estava só deixando a companhia, mas uma instituição que está em seu DNA”, acrescentou ele.

Smirnova agora dança no Dutch National Ballet, em Amsterdã. Foto: Melissa Schriek/The New York Times

Smirnova não é a única artista de elite a deixar a Rússia. No primeiro dia da guerra, Alexei Ratmansky, importante coreógrafo e ex-diretor artístico do Bolshoi, estava em Moscou ensaiando um novo projeto. Imediatamente, pegou um voo de volta para Nova York, onde é artista residente do American Ballet Theater, e comentou que é pouco provável que retorne à Rússia “se Putin ainda for o presidente”.

Laurent Hilaire, o diretor francês do Balé Stanislávski e Niemiróvitch-Dântchenko, de Moscou, renunciou poucos dias depois do início da guerra. E vários outros dançarinos, em sua maioria estrangeiros, também partiram, incluindo Xander Parish, britânico; Jacopo Tissi, italiano; e David Motta Soares e Victor Caixeta, brasileiros. Caixeta, solista em ascensão, agora é parceiro de Smirnova em Amsterdã.

Desde o início da invasão russa, muitos governos europeus determinaram que suas instituições culturais, incluindo as companhias de dança, não trabalhassem com órgãos do Estado russo, como o Mariinsky e o Bolshoi. O Dutch National Ballet cancelou uma visita do Mariinsky, desistiu de um festival de balé em São Petersburgo e parou de colaborar com o Concurso Internacional de Balé de Moscou, programado para junho no Bolshoi.

Obras de diversos coreógrafos ocidentais importantes podem desaparecer dos palcos russos, já que os detentores dos direitos destas suspenderam a colaboração com companhias russas. Nicole Cornell, diretora do George Balanchine Trust, que detém os direitos da obra do coreógrafo, escreveu em um e-mail que “foram pausadas todas as conversas sobre licenciamentos futuros” com companhias russas. E Jean-Christophe Maillot, coreógrafo francês e diretor do Les Ballets de Monte Carlo, informou por e-mail que pediu ao Bolshoi que suspendesse as apresentações de seu balé A Megera Domada, mas que o diretor-geral, Vladimir Urin, recusara: “Essas condições obviamente dificultam a retomada da colaboração com o Bolshoi.”

Representantes do Bolshoi, do Mariinsky e da Academia de Balé Vaganova recusaram os pedidos de entrevista para este artigo ou não responderam a eles.

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Em Amsterdã, Smirnova declarou que seu futuro é “nebuloso” e que não quer arriscar um palpite sobre o futuro do balé russo. Mas comentou que haverá “muito menos convites para coreógrafos internacionais e muito menos montagens de obras internacionais”. Isso significa que os bailarinos russos terão menos oportunidades de desenvolvimento, ainda que “a coleção dourada de obras do Bolshoi” - seus balés clássicos - permaneça.

A família de Smirnova é um exemplo da crescente lacuna entre a Rússia e o Ocidente. Ela só contou à mãe que se mudara para Amsterdã depois de assinar o contrato. “Para ela, o Teatro Bolshoi é o ápice. Minha mãe não entende a razão da mudança”, disse Smirnova.

Houve relativamente pouca cobertura da partida de Smirnova na mídia estatal russa, mas é possível sentir o peso emocional do evento nos comentários dos fóruns russos sobre balé: um usuário do fórum Passion Ballet, por exemplo, escreveu a Smirnova em março: “Já vai tarde; nunca foi interessante ver esse bacalhau congelado dançar”.

Smirnova e Caixeta, seu novo parceiro de cena, ensaiam breve dueto romântico da peça 'Raymonda'. Foto: Melissa Schriek/The New York Times

Segundo Hallberg, embora as implicações para o Bolshoi e para o Mariinsky ainda estejam em curso, “é triste pensar que companhias tão importantes não vão poder compartilhar sua beleza e seu domínio do palco com o mundo”.

E, no entanto, de acordo com a maioria dos observadores, o Bolshoi e o Mariinsky sobreviverão a este momento. Morrison observou que o Bolshoi já fora usado para fins políticos, pelos czares da Rússia e depois pela União Soviética, e que seu teatro sobreviveu a incêndios (mais de um) e à transformação em salão de convenções políticas. “Ele vai viver mais do que esses políticos.”

Smirnova concorda. “Os regimes mudam, e o Bolshoi fica”, ela disse no fim da entrevista de uma hora de duração, antes de dar um beijo rápido no marido e descer para ensaiar Raymonda com seu novo parceiro, Caixeta.

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Smirnova e Caixeta ensaiaram um breve dueto romântico, durante o qual a bailarina parou para aperfeiçoar todos os mínimos detalhes - uma perna estendida atrás da cabeça, um momento em que pegou as mãos de Caixeta -, embora tudo já parecesse perfeito.

Ao ouvir as instruções de Larissa Lezhnina, mestra de balé que fala russo e inglês, Smirnova demonstrava extrema concentração. Depois abriu um largo sorriso e deu uma risadinha quando Lezhnina fez uma piada sobre a posição de seu traseiro durante uma sequência. No meio de um estúdio de balé, pela primeira vez naquele dia, Smirnova parecia se sentir em casa.

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