Artista plástica Mary Weatherford leva ‘Horror e Beleza’ a Veneza

Inspirada em “O esfolamento de Marsias”, de Ticiano, a artista em meio de carreira está mostrando uma série de trabalhos obscuros e sombrios no Museo di Palazzo Grimani

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Por Robin Pogrebin
5 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - LIFE/STYLE - VENEZA, Itália - É o tipo de pintura terrível que faz você querer desviar o olhar: O esfolamento de Marsias, de Ticiano, retrata um sátiro - meio homem, meio bode - pendurado de cabeça para baixo sendo esfolado vivo, enquanto um cachorro lambe seu sangue e um músico toca violino impassivelmente.

Mas a artista Mary Weatherford não queria desviar o olhar.

Mary Weatherford com 'The Flaying of Marsyas-Satin and 4500 Triphosphor', 2021-2022, de sua coleção inspirada em uma pintura de Ticiano. Foto: Matteo de Mayda/The New York Times

Cativada pelo trabalho depois de vê-lo na exposição de Antonio Paolucci, Tiziano, na Scuderie del Quirinale, em Roma, há cerca de uma década, Weatherford, que vive em Los Angeles, resolveu um dia fazer uma série de trabalhos baseados na pintura. Agora, essa exposição - com 12 novas telas que Weatherford produziu entre janeiro e março de 2021 - está no Museo di Palazzo Grimani, ao mesmo tempo em que a Bienal de Veneza.

“Achei que era a pintura mais maligna que já tinha visto”, disse Weatherford em entrevista no museu. “Marsias está resignado com seu destino. Minhas obras lidam com o destino desde 1986. Estou interessada na escolha de virar à esquerda ou à direita.”

Vestida simplesmente com um suéter preto e jeans rasgados, o cabelo liso repartido ao meio, Weatherford pode parecer mais discreta do que os fashionistas de arte bebedores de spritz lotando o Giardini. Mas aos 59 anos de idade, com galerias de destaque atrás dela - Gagosian e David Kordansky - Weatherford na verdade representa algo bastante raro no superaquecido mercado de arte contemporânea atual: uma artista feminina de meia-idade em meio de carreira que lenta e silenciosamente ganhou sua parcela de fama.

“Mary é como uma das Ladies of the Canyon de Joni Mitchell”, disse Kordansky, referindo-se à canção sobre uma comunidade de artistas e músicos. “Ela é totalmente, completamente brilhante e não se incomoda com as tendências. Ela está sempre fazendo suas próprias coisas.”

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Essas “coisas” são pinturas abstratas líricas muitas vezes pontuadas por varetas de néon, que agora estão nas coleções do Museu de Arte Moderna de Nova York, do Museu de Arte do Condado de Los Angeles e da Tate em Londres - e que foram vendidas por até US$ 450.000 em leilão em 2018. Naquele ano, a crítica Roberta Smith, escrevendo no The New York Times, chamou as obras de “extáticas, perfuradas por raios de luz, semelhantes ao Êxtase de Santa Teresa de Bernini”.

Weatherford realizou pesquisas em 2020 no Tang Teaching Museum and Art Gallery no Skidmore College, em Saratoga Springs, Nova York, e no SITE Santa Fe, no Novo México, além de exposições individuais no Aspen Art Museum e no LAXART em Los Angeles. “Mary está insatisfeita no melhor sentido”, disse Ian Berry, diretor do Tang. “Ela é uma pesquisadora que se aprofunda na história da arte, ciência, arquitetura, gênero.”

Aqueles familiarizados com seu trabalho comentam sobre a exatidão técnica de Weatherford - o linho particular que ela usa para suas telas, a natureza gestual de suas pinceladas, suas camadas de gesso.

“Há algo muito específico sobre como ela aplica a tinta”, disse Nicola Lees, diretora do museu de Aspen. “Tem uma qualidade tão lúdica, mas é muito preciso.”

Enquanto as pinturas de Weatherford geralmente apresentam redemoinhos de cores, as obras de Marsias - em exibição até 27 de novembro - são obscuras e sombrias, com tons dominantes de preto, cinza, violeta e prata.

'The Flaying of Marsyas-4500 Triphosphor', de Mary Weatherford, no Museo di Palazzo Grimani em Veneza. Foto: Matteo de Mayda/The New York Times

As barras de neon funcionam como “um corte em sua vista”, disse Weatherford, “um corte em sua visão”.

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Com a pintura de Ticiano, que normalmente reside no Palácio do Arcebispo em Kromeriz, na República Tcheca, ela queria refletir sobre as questões espinhosas que levanta, já que Marsias desafiou Apolo para uma competição musical, sabendo que ele provavelmente perderia e pagaria um preço terrível.

“Marsias é ignorante, ou arrogante?” ela perguntou. “Qual é a diferença entre ignorância e arrogância?”

Weatherford muitas vezes se torna filosófica na conversa. Com um jeito despojado e atraente, suas referências vão dos escritores Iris Murdoch, Haruki Murakami e Liev Tolstói aos filmes O Poderoso Chefão e Um Cão Andaluz de Luis Buñuel.

Nascida em 1963 em Ojai, Califórnia, onde seu pai era vigário de uma pequena igreja episcopal, Weatherford faz arte desde que teceu macramê com a mãe na mesa da cozinha. Ela se apaixonou por museus em uma viagem escolar ao LACMA. “Adorei o cheiro. Adorei o som”, ela disse. “Adorei tudo neles.”

Ela ficou particularmente intrigada com Campo de Trigo com Corvos de Vincent van Gogh por causa de seu céu ameaçador e pássaros a pairar. “Pensei comigo mesma: ‘OK, vou ter que entender por que esta é uma pintura assustadora.’”

Como estudante de graduação na Universidade de Princeton, Weatherford viajou para Nova York para ver arte, visitando as galerias de Holly Solomon, Leo Castelli, Paula Cooper e Annina Nosei. Pensando que precisava buscar algo “prático”, ela planejava se formar em arquitetura, quando um curso de pintura ministrado pelo professor Jerry Buchanan mudou tudo. “Eu me converti imediatamente”, ela disse.

Após a faculdade, Weatherford ingressou no programa do Whitney em estudos de museus. Enquanto isso, ela fazia desenhos em seu estúdio no Upper West Side e assistia a palestras de arte.

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Weatherford disse que não estava preparada para a atenção que recebeu. Voltando para a Califórnia, ela lecionou na UCLA e na Otis College of Art and Design, mas descobriu que “não conseguia pintar e ensinar”, ela disse. “O ensino exigiria muito de mim.”

Então ela fez contabilidade para ganhar a vida - primeiro para o Museu de Arte de Santa Monica e depois para o artista Mike Kelley. “Adoro contabilidade porque é como uma equação química”, disse Weatherford. “Eu amo astrofísica.”

Ela trabalhava em um escritório quatro dias por semana e em seu cavalete os outros três, comparando isso a jogar na roleta. “Eu apostei todas as fichas em um número”, ela disse. “Sempre escolhi ter tempo para fazer as pinturas.”

Sua exposição de 2012 na Todd Madigan Art Gallery, na Universidade do Estado da Califórnia em Bakersfield, “mudou tudo”, disse Weatherford, que ali ganhou mais atenção de críticos e colecionadores.

Parte do que atraiu Weatherford para a pintura de Ticiano foi como ela atraía e repelia ao mesmo tempo, incorporando a complexidade muitas vezes dolorosa da vida. Ela tentou capturar essa nuance em obras como Below the Cliff (Abaixo do Penhasco) e Light Falling Like a Broken Chain( Luz caindo como uma corrente quebrada) - ambas apresentadas em uma exposição na Kordansky em 2021. “O sublime é o casamento do horror com a beleza”, ela disse. “É como subir o rio.”

Se há uma escuridão subjacente em seu trabalho, disse Weatherford, é porque há uma tristeza permanente no mundo. “É passageiro e não consigo parar o tempo”, ela disse. “Mesmo aqui em Veneza, olho pela janela para um barco passando na água e penso: ‘Esta é a única vez que veremos esse barco passar’.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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