Por Rafael TononEspecial para o Estado
Pode esquecer aquela ideia de que a linguiça é apenas uma coadjuvante do churrasco de domingo (enquanto se espera a picanha grelhar) ou um ingrediente para reforçar molhos e recheios. Graças a chefs e entusiastas da charcutaria, como é conhecida a arte de produzir embutidos, ela está ganhando versões artesanais ousadas e destaque nos cardápios.
Se antes elas eram quase sempre limitadas à carne de porco, hoje há linguiças feitas de peixe, frutos do mar e animais de caça – e até ótimas opções vegetarianas. Isso sem contar os inúmeros “aditivos” utilizados para dar forma às receitas inovadoras, que vão desde cervejas a frutas cristalizadas, de raiz forte e outros temperos, incluindo toda a sorte de verduras. “Inovação é respeitar a natureza das proteínas, reduzir a quantidade de sódio, diminuir a adição de gordura e utilizar o mínimo possível de aditivos químicos. Além, é claro, de usar a criatividade”, afirma Pedro Bichir, um dos proprietários da Linguiçaria Paulistana.
De todas as cores. Linguiçaria Paulistana faz de frango com curry a paleta de vitelo. FOTO: Werther Santana/Estadão
Há dois anos, ele o amigo Daniel Martins, também cozinheiro, trabalhavam em um wine bar no Itaim Bibi e, com a ideia de produzir o máximo possível de ingredientes na própria cozinha, começaram a fazer experiências. Fizeram embutidos e perceberam a possibilidade de fazer produtos bem diferentes dos que havia no mercado. A animação deu origem a um novo negócio.
“Enquanto muitos produtores se orgulham da tradição de receitas centenárias, nós nos orgulhamos de nossa visão mais contemporânea do mundo dos embutidos”, diz. “Respeitamos a tradição do processo, mas utilizamos matérias-primas diferentes e aperfeiçoamos as técnica de produção”, diz ele.
A Linguiçaria já desenvolveu dezenas de receitas, como linguiça de coxa e sobrecoxa de frango com curry e cristais de limão, de paleta de vitelo com redução de cerveja IPA, de espinafre com bacon, de fraldinha do dianteiro com redução de cerveja preta, entre outras. “O consumidor se acostumou a ver linguiça como um produto gorduroso, mas ela pode ser leve, saborosa, e mais saudável do que a linguiça que grande parte dos brasileiros conhece.”
Agora Pedro e Daniel estão investindo numa linguiça vegetariana. Já testaram mais de 50 receitas, usando farinhas de cereais diversos, tubérculos, proteínas de origem vegetal e até albumina. Primeiro tiveram de driblar o problema da dilatação. “Esses ingredientes dilatam e rompem a tripa”. A linguiça vegetariana deve ser lançada nos próximos meses.
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FOTO: Werther Santana/Estadão
O chef Jefferson Rueda, do restaurante Attimo, também tem em seu repertório de receitas uma variedade de tipos de linguiça, que aprendeu a fazer ainda adolescente quando trabalhou como açougueiro. “Tenho paixão por linguiça desde que via minhas tias fazendo chouriço no sítio. Eu já fiz de quase tudo, capivara, javali, cateto, polvo, com frutas, sem frutas, curadas, frescas… Tenho mais de 50 receitas”, diz. Ele fez uma linguiça fresca de frutos do mar que entra no menu do restaurante na próxima semana, acompanhando a tábua de frios e embutidos do mar.
Ela é feita com camarão, viera e lagostim – os ingredientes ficam em uma marinada e depois são processados para serem embutidos na tripa. “Só trabalho com a tripa natural e não uso conservantes, por isso só consigo fazer linguiça fresca”, diz. Para garantir o frescor, as linguiças são fechadas a vácuo e mantidas no gelo até serem servidas. “No máximo, até o dia seguinte”, diz.
Jefferson Rueda faz linguiças no restaurante, o Attimo. FOTO: Daniel Teixeira/Estadão
Caiu na tripa é peixe. O chef Eudes Assis, do Vinea, em Alphaville, aprendeu a fazer linguiças do mar com Patrícia Polato, da Linguiçaria Real Braçança, de Bragança Paulista, cidade do interior conhecida por suas linguiças artesanais. “Assisti a uma aula dela sobre charcutaria com peixes que me deixou fascinado”, conta. Eudes, que é caiçara nascido em Boiçucanga, no litoral norte de São Paulo, adorou a possibilidade de criar linguiças com diferentes peixes e saiu inventando. “A charcutaria nasceu para conservar osingredientes e é ótimo poder usar isso para aproveitar os peixes do nosso litoral, variando aromas e texturas”, diz Eudes.
De cação a badejo, de truta a anchova, tudo pode virar linguiça. Até mesmo o nobre bacalhau foi processado e embutido para ser servido com molho romanesco no Las Chicas, restaurante das chefs Carla Pernambuco e Carolina Brandão. Para além do mar, outros chefs estão servindo a linguiça como prato principal, escoltadas por um ou outro acompanhamento. No Torero Valese, o chef e proprietário Juliano Valese criou um harumaki de morcilla, em que a linguiça (feita com carne e sangue de porco) é envolta na massa e depois frita e servida acompanhada de tomate e limão siciliano. No Saj, o chef Paulinho Abbud colocou no cardápio uma linguiça com receita de família, feita com capa de filé, barriga de porco, alho, pimenta síria, limão e vinho branco, embutida na tripa de carneiro, tradição árabe.
O mesmo acento árabe foi o responsável por convencer a chef Paola Carosella a incluir uma merguez no cardápio do seu restaurante Arturito, em Pinheiros. Quando provou a linguiça no Marrocos, a chef foi fisgada pela combinação de sabores. Assim como quase tudo servido no restaurante, ela desenvolveu a sua receita artesanal do embutido de cordeiro, utilizando a paleta de cordeiro e um pouco de porco para garantir a gordura.
FOTO: Werther Santana/Estadão
Temperada com cominho, coentro, pimenta, canela e outras especiarias, a merguez é grelhada e servida como entrada, acompanhada de berinjela assada, ervas frescas e sour cream. “Nós fazemos linguiça desde que abrimos as portas. Gosto porque são saborosas, suculentas, além de versáteis”, diz a chef, que já criou uma linguiça de coelho e está agora desenvolvendo uma de pato que deve ser incorporada no cardápio nas próximas semanas. “Queremos fazer linguiças de tudo o que der”, diz ela, citando uma nova máxima que tem se tornado cada vez comprovada nos cardápios.
A fabricação de linguiças de outros tipos de carnes além da suína, apesar de representar uma novidade nos cardápios de chefs por aqui, não é tão inédita assim em outras culturas. No Mediterrâneo, em partes da Europa Central e em regiões do Oriente Médio, o costume de se fazer linguiças de boi, de cordeiro e de vitela é algo tradicional. “Mas o porco é mesmo o animal mais ligado ao processo de se fazer linguiças, criando as receitas mais saborosas e mais variadas que podemos encontrar em toda e qualquer cultura”, explica Susan Mahnke Peery, autora do livro Home Sausage Making (Fazendo linguiça em casa, sem edição no Brasil). “Por isso as linguiças mais famosas do mundo são suínas, como o cotechino italiano.”
Isso se dá por razões técnicas. “A carne de porc tem a melhor gordura para o processo de embutir e aguenta melhor a cura sem ficar rançosa. É difícil fazer linguiça de qualquer carne magra ficar boa sem acrescentar gordura de porco”, afirma o chef Sauro Scarabotta, do Friccò, na Vila Mariana, conhecido por seu trabalho artesanal com embutidos suínos.
FOTO: Daniel Teixeira/Estadão
Variedades. As linguiças acima foram feitas por Jefferson Rueda. A primeira, roxa, é de porco com beterraba e raiz forte. Na segunda, de frutos do mar, é a tinta de lula que dá essa cor escura. A terceira é a versão caipira mais tradicional, de porco com tempero verde. A linguiça de frutos do mar sem tinta de lula fica branquinha. E a última é de codeguim.