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Culinária judaica, de Z a A

Culinária judaica, de Z a AFoto:

Um pouco como o hebraico, que é escrito da direita para a esquerda, a cozinha judaica paulistana começa em Z, da Z-Deli de Zenaide e Rosa Raw e Lonka Lucki, e vai até o A de Andrea Kaufmann e sua ainda jovem mas já badalada AK Deli. No caminho, passa pelo S da Shoshi Deli Shop e de Simone Chevis, pelo G do Goody e até por duas letras que já não indicam restaurantes judaicos: o C de Cecília e o E de Europa, que, com algumas décadas de separação, foram fechados. Para ordenar - um pouco - o alfabeto gastronômico judaico, Paladar reuniu as donas da Z-Deli e do AK para uma conversa na última segunda-feira. Zenaide: Lonka, esta é a Andrea, filha da Anita. Lonka: Que Anita? Z: A Anita Kaufmann. L: Ah, sei. Você é filha dela? Andrea: Sou. Z: Olha, Andrea, preciso te dizer que fiquei com ciúmes. Não vou mentir: fiquei, o que eu posso fazer? A: Mas você ainda nem conhece a minha comida. Z: Mas meus clientes conhecem. Um deles apareceu aqui outro dia e disse que tinha ido no seu restaurante. E eu falei pra ele: ''''Mas não é muito bom, é?'''' Ele disse que é! Teve a coragem de dizer que sua comida é ótima. Eu fiquei morrendo de ciúmes. A: Mas eu devo isso a vocês. Z: Gostei dela, ela é um amor. Z: Mas conta, Andrea, como você faz o gefilte fish? A: A receita é polonesa, mais adocicada. É da minha sogra. Eu ponho cenoura no recheio. L: Os russos gostam salgado. Rosa: Nosso mérito maior foi divulgar a cozinha para os não-judeus. Eles vêm muito aqui. Sempre aparece alguém perguntando se é época de comer a orelha de Aman (doce de uva, triangular e pontudo como seria a orelha de um ministro persa que condenou os judeus à morte. Em Purim, o doce celebra a libertação dos judeus). Eles querem devorar a orelha do inimigo. Z: Os judeus se relacionam pela comida. A: Por isso as festas acontecem sempre na mesa. Z: E aí, todo mundo acaba conhecendo os varenikes (pastéis de batata). É o prato- chave. Todo mundo gosta, todo mundo lembra da avó. A: Lá no restaurante, me perguntam: ''''Você faz aquele varenike redondinho, igual ao da minha avó?'''' Z: Você faz outro tipo de cozinha, né? A: Faço um pouco mais leve, não coloco batata na massa. Z: E nós, Lonka, nós colocamos? L: Colocamos. Mas fica boa a massa desse seu jeito? A: Fica leve, com gosto de varenike, mas mais leve. Peguei uns pratos tradicionais, mas dei uma inventada, misturando um pouco com a comida brasileira. Z: E o pessoal gosta? A: Gosta. (Súbita mudança de assunto.) L: Cadê a minha bolsa? R: Cadê a bolsa da Lonka? Z: Deve ter deixado na cozinha, quando passou por lá. A: Não fazia sentido eu cozinhar do jeito mais tradicional, porque isso vocês já fazem muito bem. (Já podem retomar a conversa...) R: Está aqui, Lonka, pendurada na cadeira. A: Aí, eu resolvi fazer tudo lá mesmo. L: Você faz tudo lá? A: Tudo. E agora, em Rosh Hashaná, está sendo um trabalhão. Z: Quando abrimos, perto do ano-novo (judaico), o pessoal começou a encomendar. Acho que foi assim que percebemos que era um restaurante de comida judaica. Antes, a gente achava que era um restaurante normal, que pertencia a três judias. L: E tinha o pão! Até hoje vem gente perguntar do nosso pão de cebola e papoula. Z: Quem fazia era um padeiro de quase dois metros, que nós trouxemos do Bom Retiro. A: Mas se você vinha de Nova York, por que não tem bagel aqui? Com salmão e cream-cheese? Z: Porque brasileiro acha que é muito pão. Não pega. Brasileiro não gosta de bagel. A: E tem sobremesa diet? L: A gente aconselha a pegar o que é menos gorduroso. Paladar: Dona Lonka, onde a senhora aprendeu a cozinhar? L: Eu acho que nasci fazendo. Eu sou uma mistura: polonês, austríaco, italiano. Mãe austríaca, pai russo. Z: Ela é muito enjoada, não gosta da comida dos outros. L: (Para Andrea) Da sua, eu sei que vou gostar. Acho que aprendi por necessidade. Minha casa era muito freqüentada por imigrantes. Fazia para ajudar, não era um restaurante. Até hoje é assim: vejo o que tem na geladeira e transformo em comida. P: E qual a sua influência: russa, austríaca, italiana, polonesa? L: Pra ser sincera comigo mesmo, eu tive que me virar tanto que acho que eu sou minha própria influência. P: E de que origem é a comida, que estilo? R: Nem um, nem outro. É do nosso jeito. L: Outro dia entrou um grupo de sefaradis aqui. Um deles já conhecia a Z-Deli e foi explicando pros outros. Mas ele já avisou: ''''Eu como tudo, menos gefilte fish''''. Z: Eles não comem. Parece que têm até nojo. O não-judeu também não come. R: Japonês come. Imagina que é uma espécie de peixe cru e acaba gostando. P: Vocês três cozinham? R: Eu não. P: Você fica no administrativo? R: Eu não sou nada, não faço nada. L: Eu gosto de comida, não de atender. Z: Ela só atende homens. L: Eles são mais fáceis. A: Comigo também. Nunca tem um homem reclamando ''''Ai, é muito, põe menos''''. Z: Outro dia, vieram umas amigas suas aqui e deixaram tudo no prato. A: Não são minhas amigas! Z: São, sim. A: Eu sei de quem você está falando. Z: Fui até perguntar para elas por que deixaram no prato e elas falaram que era porque tinha vindo muita comida. A: E quando pedem pouquinho, você fica chateada? Z: Eu fico. Somos judias, os clientes têm que comer mais. A: Fiz um acordo com um cliente, mas não deu muito certo: ele vinha e só pedia as entradas frias. Um dia, eu insisti e ele provou um prato quente. Comeu tudinho. Na vez seguinte, ele disse que já tinha atendido o meu pedido, que já tinha comido prato quente, mas implorou pra eu deixar ele comer só os frios. Z: Ai, Andrea, por que você é tão simpática? Um amigo foi no AK e elogiou o matzo ball. Eu fiquei com ciúme, morri de ciúme. A: Eu que faço os kneidalech. (O mesmo que matzo ball, bolinhos de farinha de matzá, servidos em um caldo bem quente. São muito comuns em Nova York.) Z: Sozinha? A: No borscht e no kneidalech, ninguém encosta. Z: Ela faz sozinha... A: Vocês têm que provar o meu pastrami. Z: Tem para levar? A: Tem, e é mais barato do que no restaurante. Eu faço lá mesmo. Fiz muitos testes. Cheguei a fazer até com cupim. Z: Cupim é muito gordo. A: E peito de boi, aqui no Brasil, é muito magro. Eu fui testando até fazer uma carne suculenta, mas não muito gordurosa. Z: A diferença é que ela é planejada. Nós entramos nisso de brincadeira. Tinha até frango recheado aqui. Aparecia alguém no começo e pedia sardinha. Uma das sócias, que já saiu, achava que tínhamos que comprar sardinha imediatamente, pra não perder a cliente. Ficávamos loucas com aquilo. A: Mas eu tinha que tentar fazer pastrami. Porque a idéia de montar o restaurante surgiu no Carnegie (tradicionalíssima deli judaica de Nova York, famosa por seu pastrami). Eu estava lá com o meu marido e pensamos nisso. Mas dava medo de sair tudo errado, de não ter público, de ter preconceito. Z: Mas está indo bem, não está? Eu vi que você aparece em todos os lugares... L: Deixa eu saber, você cozinha o bolinho de matzá em caldo de galinha? A: Faço com farinha de matzá, caldo de frango e de carne. L: Andrea, me conta um segredo profissional? A: Conto. L: Sai igual todos os dias? Os bolinhos ficam iguais? A: Não. L: Não sei o que acontece, não tem explicação. A: Por isso, só eu que faço. Não adianta seguir receita. Tem que ser a mesma pessoa, mas, ainda assim, não dá pra garantir que saia igual. Sabe o que deixa mais mole? Água com gás. E o que deixa mais duro é resfriar e esquentar, tirando da geladeira o tempo todo. Eu faço a cada dois dias. L: Não tem receita. A: E mesmo assim, às vezes, fica muito salgado. L: Não adianta. A: Tem gente que faz com clara em neve. Z: Eu ouvi isso. Você não faz? A: Não. Z: Tem dia que a massa vai e volta até a parede. Tem dia que fica dura que nem uma pedra. A: Eu não coloco. Z: Falaram que é o segredo... A: Eu coloco shmaltz também (caldo bem reforçado). L: Gostei de ouvir você falar ''''shmaltz''''. A: Eu coloco aquele bacon de galinha também. R: Se chama ''''grivn''''. A: É, aquela gordurinha. R: Isso, a gordurinha bem fritinha. A: Vocês precisam provar meu cholent. Tenho kishke (tripa recheada, servida no cholent, um cozido de feijão branco e cevada). L: Você tem kishke? A: Eu recheio com farofa de pastrami e de chalá (o pão judaico, meio adocicado, servido às sextas-feiras). Passava o dia recheando. Mas a aparência é feia, acaba abrindo no meio do cozimento, e o pessoal reclamava. L: Você faz tudo sozinha? A: Agora eu sirvo ao lado, como uma farofa. Acabou ficando mais brasileiro. L: Que mão-de-obra! Z: Nossa, nós não oferecemos nada para vocês... A: Pra mim, é uma honra estar aqui com vocês. Z: E pra gente também. Você é uma jovem que já sabe tudo. R: É uma nouvelle cuisine judaica, o que você está fazendo. A nossa é tradicional. A: É, é diferente. R: A principal pergunta que os fregueses fazem é ''''De onde é essa comida?'''' Digo pra eles que essa comida tem só 6 mil anos. Não dá pra gente mudar.

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