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É tempo de araçá-preto

Ele tem sabor de goiaba, doce é ácido, e um toque de casca de jabuticaba; se der a sorte de encontrar um araçazeiro por aí, veja o que fazer com os frutos

O tempo nas grandes cidades nos atropela e quando percebemos já passou a época da pitanga, da uvaia, da jabuticaba, da grumixama, do araçá, todas da mesma família das Mirtáceas. Elas chegam na sequência, às vezes mudando a posição na fila ou se sobrepondo nas safras. Em períodos de saúde, com mais caminhadas, ainda consigo observar esse movimento entre as árvores do meu bairro, mas aos poucos vamos perdendo essa percepção de que cada fruta tem sua hora. Neste ano, só me dei conta que era tempo de araçá-preto por causa de um araçazeiro do sítio, todo assanhado com frutas explícitas, roxas como jabuticabas e perfumadas como goiaba, muitas já no chão, trincadas com a queda, mas ainda com flores e frutos pequenos. Sinal de que teremos frutas até o verão.

Araçaúnas, de cascafina, polpa vermelha e sementes que ocupam boa parte de seu peso. Foto: Neide Rigo/Estadão

Há muitos anos, numa primavera de novembro, me deparei com uma espécie desta numa calçada não muito distante de casa. Ainda era um pequeno arbusto, mas já prenhe de tantas frutas. Nunca mais tinha passado por ela na hora certa. Ou chegava no tempo das flores, ou os frutos jaziam no chão. Mas a frutificação do araçazeiro de nosso convívio e o sabor na boca chamando mais me fizeram querer aumentar a colheita para fazer sucos, geleias, caipirinhas, sorvetes e ainda congelar para a entressafra. Então rumei até lá com uma pequena sacola e estava certa que agora, em plena estação, não voltaria de mãos abanando. Caminhei pela calçada e achei que tinha me distraído e passado o ponto exato porque não vi a árvore. Será que cresceu tanto assim? Voltei, olhei atentamente e não vi sinal de terra. Olho pra cima, para um lado, do outro lado e nada além do pavimento. Havia um homem curioso debruçado sobre o muro da casa vizinha e tive que perguntar:

- Não era aqui que vivia um certo araçá? - Uma frutinha preta? Era aí sim, nessa calçada aí. - O que aconteceu com ele? Ah, o dono arrancou porque fazia muita sujeira e os passarinhos eram um alvoroço só.

Agradeci a informação e engoli a seco a tristeza.

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Assim vão se acabando nossas frutas nativas pelas ruas e quintais, nossos frágeis elos com uma Mata Atlântica distante e com o Cerrado quase inexistente, biomas que se faziam presentes em São Paulo e que por aqui vão deixando apenas rastros exíguos. No lugar, árvores disciplinadas de troncos retos que se encaixem nos pequenos quadrados de terra a elas destinados em chãos assépticos de shopping centers e prédios reluzentes. E enquanto isso, no supermercado em frente, frutas importadas já vão antecipando o Natal.

+ Aprenda a fazer queijadinha com calda de araçaúna

Os araçás chamaram a atenção do jesuíta português Fernão Cardim e mereceu registro em sua obra Tratados da Terra e Gente do Brasil sobre suas andanças por aqui no século XVI, e os descreve como frutos de cores variadas, amarelos, vermelhos e verdes, gostosos, desenfastiados, apetitosos e ligeiramente ácidos. Já outro viajante, Pero de Magalhães Gandavo, em Dialógos das Grandezas do Brasil de 1618, descreve várias frutas nativas, incluindo o araçá e aponta os brasileiros como negligentes por manter essas espécies agrestes espalhadas pelos matos, “as quais, se forem cultivadas, se avantajariam em bondade e gosto”. Quase 400 anos depois, seguimos cultivando frutas exóticas como maçãs, mangas, peras e morangos.

O Cemitério do Araçá, um dos maiores de São Paulo, recebeu o nome por causa da fartura de araçazeiros que havia por lá, mas a abrangência do nome, muito oportuno, hoje pode se estender por todo o país. Com a ameaça dos incêndios e a substituição das árvores nativas por pastagem e monocultura, frutas como araçá foram parar no catálogo da Arca do Gosto do movimento Slow Food, que procura destacar para proteger alimentos em risco de extinção. Ou ressuscitar. E na cidade paulista Araçatuba, será que ainda tem muito araçá? Pois em tupi-guarani, o termo quer dizer “lugar onde há muitos araçás”. Esta é uma teoria, não a única, para a origem do nome. Mas espero que sim.

Pelo sabor e aroma de goiaba, calda dessa frutinha faz bom par com uma queijadinha. Foto: Neide Rigo

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Para quem não conhece, araçás são goiabinhas silvestres, frutos de árvores ou arbustos do gênero Psidium, o mesmo da goiabeira, e há uma diversidade grande deles Podem ser amarelos, vermelhos, roxos, pretos, pequenos, redondos, piriformes, com nomes variados - araçá-vermelho, araçá-de-cora, araçá-de-praia, araçá-do-campo, araçá-do-mato, araçá- pera, araçá-rosa, araçá-piranga, araçaúna.

Em comum, os frutos apresentam uma roseta de sépalas residuais fechadas, com aparência de um olho arredondado. E os sabores e perfumes sempre remetem à goiaba, podendo ser mais ou menos ácidos, doces e adstringentes.

As safras nem sempre são coincidentes. Agora estamos na estação de araçá preto, também conhecido como araçaúna – una, em tupi-guarani, é preto. Na verdade, não é preto. Dependendo da luz, percebemos que está mais para vermelho escuro ou cor de vinho, mas na sombra é quase preto, com uma quantidade concentrada de antocianina, o mesmo pigmento protetor da saúde do coração presente também na jabuticaba, nas uvas e vinhos tintos. O fruto ao natural é pequeno, tem pele fina, polpa vermelha e sementes menos fartas e maiores que as da goiaba, que ocupam boa parte de seu peso. O sabor de goiaba, doce é ácido, tem um toque de casca de jabuticaba, com adstringência característica, que desaparece ou se dilui com os preparos culinários. O sabor de goiaba, com perfume, doçura e acidez, pediu a companhia de um queijo, por isso pensei numa queijadinha com queijo fresco. Mas, diferente de outros araçás, a coloração arroxeada da pele e o vermelho atraente da polpa abrem um leque ainda maior de possibilidades na cozinha.

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