BRASÍLIA - O Ministério da Cultura determinou, temporariamente, a paralisação das atividades e o bloqueio de recursos do comitê de cultura do Amazonas após detectar indícios de irregularidades na atuação da estrutura, que é coordenada por uma ONG criada pela secretária nacional de Mulheres do PT, Anne Moura. Um relatório técnico detectou “inconsistências”, “falhas expressivas” e problemas de transparência.
A medida foi oficialmente comunicada à entidade na noite de quinta-feira, 6, horas após a reportagem do Estadão apresentar à pasta de Margareth Menezes uma série de questionamentos sobre a atuação do comitê e da ONG Instituto de Articulação de Juventude da Amazônia (Iaja).

Cofundadora da ONG, Anne Moura foi gravada em uma reunião pressionando um ex-aliado que liderava a entidade a colocar a estrutura para funcionar em benefício do projeto eleitoral dela em 2024. Na gravação, a secretária do PT diz que ouviu da secretária Roberta Martins, do ministério, que os comitês montados pelo governo nos Estados tinham que ajudar as campanhas. A pasta afirma que a conversa citada não existiu.
A atual presidente da ONG Iaja, Samara Pantoja, afirmou que apoia a decisão do ministério porque os atos do ex-presidente da entidade precisam ser investigados. Ela diz que Marcos Rodrigues “tomava decisões sem consultar os demais membros do comitê ou direção” e que essa conduta, somada a denúncias de assédio moral, levou à exclusão de Rodrigues, em dezembro. Ele estava no posto desde 2020.
Marcos Rodrigues, por sua vez, afirma que todas as decisões eram tomadas na presença de gestoras que estavam e continuam nos quadros da entidade, como Aline Rocha Ponchet, diretora financeira, e de Anne Moura, que participava das reuniões. “Tudo passava pela mesa dela (Anne)”, afirma.

Um parecer apontando uma série de inconsistências e indícios de irregularidades no comitê do Amazonas havia sido produzido pela área técnica do ministério ainda na tarde de 28 de fevereiro. O documento só seguiu a tramitação no dia 6.
Esse parecer, ao qual a reportagem teve acesso, identificou problemas de transparência e de efetividade das ações, além de uma “desconexão” das atividades com os eixos estratégicos do Programa Nacional de Comitês de Cultura (PNCC).
As observações são referentes a uma análise preliminar de um relatório de atividades enviado em dezembro pelo comitê sobre o trabalho realizado entre abril e setembro do ano passado. Os principais trechos do relatório:
- “Na análise ainda em execução já foi possível identificar inconsistências e lacunas que comprometem a transparência e a efetividade das ações. As atividades foram executadas apenas parcialmente, sem comprovação adequada, dificultando a avaliação de seus impactos. Além disso, há registros de atividades duplicadas, tornando inviável a verificação e o enquadramento correto dentro das linhas de ação do PNCC”;
- “Destaca-se ainda a ausência de informações detalhadas sobre o público-alvo, os temas abordados e o alcance territorial das ações, bem como a falta de comprovação do número de participantes. Algumas atividades com número expressivo de participantes como ‘3000 pessoas sensibilizadas’ não apresentam nenhuma comprovação”;
- “Outro ponto crítico é a desconexão das atividades realizadas com os eixos estratégicos do PNCC, que incluem mobilização social, formação em direitos e políticas culturais, apoio à elaboração de projetos e parcerias, além da comunicação social e difusão de informações sobre políticas culturais”;
- “Surgem ainda falhas expressivas relacionadas à gestão interna do Comitê de Cultura do Amazonas, como dificuldades de atuação em rede, conforme Termo de Execução em Rede, que garante a interiorização das ações do PNCC, evidenciando a necessidade de aprimoramento nos processos organizacionais, na supervisão das atividades e na garantia de que as ações estejam alinhadas aos objetivos do programa”.
O comitê do Amazonas é controlado por Anne Moura, que foi candidata a vereadora de Manaus em 2024. Embora ela não tenha cargo na ONG, a secretária do PT participa das atividades da organização, é apresentada como cofundadora do Iaja em agendas, tem conteúdos republicados pela página oficial da entidade e mantém pessoas de sua confiança em cargos de diretoria.
Além disso, a diretora financeira da ONG, Aline Ponchet, e o assessor de comunicação do comitê de cultura, Paulo Moura, trabalharam na campanha dela a vereadora. Apesar de todos os vínculos, o parecer técnico ressalta que Anne Moura “não faz parte do corpo diretivo” da ONG, “não tendo, portanto, autoridade para interferir nas ações do comitê”.

Na gravação de uma conversa com ex-aliado, revelada pelo Estadão, ela reclama da participação de uma adversária eleitoral em atividade do comitê de cultura e diz que os contemplados pela política pública precisam ser “artistas parceiros” e “combinados na política”.
Como mostrou o Estadão em outubro, o Programa Nacional dos Comitês de Cultura (PNCC) beneficia filiados ao PT nos Estados e até duas ONGs ligadas a servidores do ministério. O programa foi uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e é uma das principais iniciativas do Ministério da Cultura do atual governo. Lançado em 2023, vai custar R$ 58,8 milhões em dois anos, distribuídos para os comitês de todos os estados realizarem atividades de formação e fomento.
Em cada Estado, uma ONG foi selecionada para coordenar o comitê. A partir dela, parcerias e atividades com outras organizações são realizadas. No Amazonas, a coordenação cabe ao Iaja, controlado por Anne Moura, e receberá, ao todo, R$ 1,9 milhão, além de outras verbas federais e estaduais.
Além da análise técnica, o parecer do ministério sobre o comitê amazonense considerou denúncias feitas pelo ex-presidente do Iaja, Marcos Rodrigues, e contra ele. Rodrigues era aliado de Anne Moura, mas ambos romperam em dezembro. Segundo o ex-dirigente, ele operava um esquema de desvio de verbas e de finalidade no Iaja para beneficiar o grupo político. Rodrigues também é alvo de denúncias dos aliados de Anne Moura. Segundo o grupo, ele praticava desvios e assédio moral no Iaja.
O parecer concluiu com a recomendação de paralisação imediata das atividades por causa das “inconsistências identificadas no relatório parcial, das denúncias registradas e das alegações que envolvem possíveis irregularidades”. A medida é necessária, segundo os técnicos, para que o ministério reúna informações técnicas “que subsidiem a decisão sobre a continuidade da parceria” com a ONG no Amazonas.
Em nota, o ministério afirmou que “até o momento não foram identificadas irregularidades”, mas destacou que a apuração está em andamento. “Medidas serão implementadas nos próximos dias com o objetivo de assegurar a transparência e a boa gestão dos recursos públicos, além de garantir que as atividades do comitê ocorram de forma impessoal, eficaz e eficiente”, registrou.