O passado fabril de São Bernardo do Campo, cidade do ABC paulista, remete à força de São Paulo como centro industrial no século passado. Também é legado desse período a ocupação urbana, com pouco espaço para o verde. Isso faz da cidade de 810 mil habitantes um dos casos mais severos de incidência de ilha de calor no Estado, segundo a plataforma UrbVerde, desenvolvida por pesquisadores da USP em parceria com cientistas de outras instituições.
As ilhas de calor aumentam as temperaturas médias de áreas urbanas em relação ao entorno, agravando impactos das ondas de calor, mais frequentes com a crise climática.
São Bernardo é mais afetada da região metropolitana, conforme a UrbVerde. No Estado, fica atrás só da capital e à frente de Guarulhos, consideravelmente maior.
A prefeitura de São Bernardo diz que “o município está reagindo ao cenário indicado” e cita a criação de novos parques e praças conforme a necessidade dos bairros.
Já a Secretaria de Meio Ambiente do Estado afirma, em nota, apoia os municípios da Grande São Paulo em ações de adaptação climática, especialmente no enfrentamento das ilhas de calor. Diz ainda prever diretrizes para arborização urbana e ações de reflorestamento e proteção de mananciais (leia mais abaixo).
Ferramenta de monitoramento desenvolvida por pesquisadores da USP, Ufscar, UFBA e outras instituições, em parceria com prefeituras e mais entidades, a UrbVerde reúne indicadores socioambientais de temperatura e vegetação nas cidades paulistas. (veja o ranking completo).
Um desses índices é o coeficiente de ilha de calor, que leva em conta a intensidade das ilhas de calor (soma dos graus Celsius acima da média de temperatura, dividida pela área com temperatura superior à média), vezes a quantidade de população mais sensível ao tempo quente (idosos e crianças).
No caso de São Bernardo, o valor do coeficiente é de 86,8 (de 100). O dado é um indicador da distribuição da população nas áreas com temperaturas mais elevadas no município: quanto mais alto, maior é a proporção da população exposta ao calor extremo durante ondas de calor.
Antigo bairro operário é castigado
Situada entre a cidade de São Paulo e o Porto de Santos, São Bernardo se constituiu no século 16 como local de passagem, e se desenvolveu em um processo de urbanização acelerado pela chegada das montadoras de automóveis, metalúrgicas e outras indústrias a partir dos anos 1950.
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Via de regra, o processo - que se repetiu em outras cidades industriais da região - foi marcado pela falta de planejamento e política habitacional adequados, resultando em um padrão de ocupação “caótico”, como define o coordenador da UrbVerde, Marcel Fantin, professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP de São Carlos.

O modelo de urbanização praticado na capital - de ocupação das margens de corpos hídricos e muita impermeabilização - também teve influência sobre o desenho de São Bernardo, que se estruturou em função da construção do sistema viário estadual e metropolitano, de rodovias e vias expressas que escoavam a produção do parque industrial.
Com isso, a cidade do ABC cumpriu à risca a “receita” para as ilhas de calor: áreas com ocupação contínua, alta circulação de veículos, presença de fábricas, comércio e desprovidas de vegetação para amenizar a temperatura.
A porção norte da cidade, ao longo da Rodovia Anchieta e na divisa com Diadema, é a que concentra as áreas mais impermeabilizadas e com maiores temperaturas na cidade. Nela, os bairros Planalto, Paulicéia, Taboão, Anchieta e o centro são marcados por áreas extensas com alta densidade de construções e pouca presença de verde.
O caso do Pauliceia é um exemplo desse histórico de ocupação - a instalação de grandes indústrias levou a um crescimento intenso do bairro desde os anos 1950, com a população dobrando entre as décadas de 1870 e 1980, segundo o Centro de Memória de São Bernardo. Conforme os dados da UrbVerde, o bairro tem hoje poucas praças e parques e baixo percentual de cobertura vegetal.
Ainda de acordo com a plataforma, São Bernardo tem, em média, taxa de cobertura vegetal de 14% na área urbana, bem abaixo do mínimo de 30% necessário para quebrar os efeitos de ilhas de calor.
Ao sul, o calor é amenizado pela grande massa de água da Represa Billings - maior reservatório de água da região metropolitana - e pelas áreas de preservação ambiental do Parque Estadual Águas da Billings e da Serra do Mar. As reservas atenuam principalmente as temperaturas nos bairros, como o Montanhão, na região mais populosa da cidade.
“Nas ocupações irregulares próximas à represa, se vê a importância da Billings e da Serra do Mar como ativos ambientais que influem de forma positiva em relação ao clima da região”, diz Fantin. A área da represa, porém, sofre com a degradação e o desmatamento em alguns pontos.

“É sensível a diferença entre a temperatura na área de mananciais e na parte norte, a leste e oeste da Anchieta”, diz Ivan Maglio, pesquisador do Centro de Síntese Cidades Globais do Instituto de Estudos Avançados.
A oeste, ele destaca a verticalização e o adensamento, e a leste, nos bairros mais industriais, a impermeabilização do asfalto e a extensão dos telhados de concreto, zinco, amianto e alumínio, que armazenam calor e aumentam a temperatura da superfície. Nesses locais, afirma, poderiam ser instalados telhados verdes e placas fotovoltaicas. Maglio participou dos estudos para a revisão do Plano Diretor de São Bernardo em 2024.
Apesar de se destacar no ranking pelo valor de seu coeficiente, alto em relação ao tamanho da população, a cidade é uma síntese da situação da região metropolitana quanto à impermeabilização.
Fernando Kawakubo, professor de Geografia da USP e membro da coordenação executiva da UrbVerde, explica que São Bernardo tem 20% do território com taxa de impermeabilização muito alta, acima de 50%, enquanto cerca de metade de áreas rurais, florestas e corpos hídricos. Essa má distribuição do verde espelha a proporção de toda a RMSP.
Prefeitura e Estado afirmam adotar incrementar o verde
Para especialistas, medidas de adaptação adequadas ao contexto local ajudam a a reduzir temperaturas urbanas. Um estudo de 2019 realizado por pesquisadores da Universidade Federal do ABC sobre as ilhas de calor de São Bernardo sugere a utilização de tipos de coberturas para galpões industriais, implementação de corredores verdes em grandes avenidas e projetos de paisagismo em estacionamentos de shoppings centers nas áreas mais quentes da cidade.
A prefeitura de São Bernardo afirma, em nota, ter atualizado em 2025 o mapeamento de uso do solo, ilhas de calor e calor intenso e de densidade de vegetação do município, “de modo a localizar espaços estratégicos para incremento da arborização urbana nas áreas mais densas e consolidadas”.
A administração informa ainda elaborar um Plano Diretor de Arborização Urbana e que prevê a estruturação de um Sistema Municipal de Áreas Verdes e Espaços Livres voltado à implantação de novos parques e praças.
Questionada sobre o prazo de estruturação desse sistema, sobre os parques e praças previstos e qual o período de implantação, a prefeitura não respondeu.
Além de estabelecer regras para a arborização por meio da Resolução 117/2022 e do Programa Refloresta-SP, que afirma ter colocado em restauração o equivalente a 16,5 mil campos de futebol, o governo estadual destaca a Operação Integrada de Defesa das Águas, iniciativa de proteção e fiscalização das áreas de mananciais no Estado, incluindo São Bernardo, que atua na área de proteção e recuperação dos mananciais da Bacia Hidrográfica do Reservatório Billings (APRM-B).
O Consórcio Intermunicipal Grande ABC diz, em nota, que a pauta climática é prioritária, destacando a participação de integrantes das áreas de Meio Ambiente e Planejamento Urbano dos municípios consorciados desde o início da implantação da Urbverde, que será “ferramenta primordial para implementação de políticas públicas voltadas ao tema do urbanismo sustentável”, subsidiando a revisão do Plano Regional de Mudanças Climáticas, de 2016.
O consórcio afirma ter captado, por meio Fundo Estadual de Recursos Hídricos, R$ 778,2 mil em 2023 para implementar novas unidades de conservação e corredores ecológicos e verdes nas áreas de mananciais, além de R$ 1,49 milhão para elaborar os planos de redução de riscos de Diadema, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra – os demais municípios pertencentes ao Consórcio ABC já têm estudos desse tipo – que visam a identificar as áreas de riscos e apontar soluções.