A educação pela pedra da poesia

Demanda pela produção de João Cabral de Melo Neto, que morreu há dez anos, se intensificou - mas qual a sua herança?

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Por Antonio Carlos Secchin
Atualização:

Dez anos após sua morte, completados na sexta-feira, qual o legado do pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999) à poesia brasileira? De início, é preciso observar que sua obra, aparentemente, fugiu do limbo a que se condena a produção dos recém-desaparecidos. Com efeito, Morte e Vida Severina continuou a ser, ao que consta, o livro de poesia mais reeditado de nossa literatura. Além disso, a Alfaguara vem relançando, desde 2007, num belo projeto gráfico, toda a produção cabralina. Em 2008, a Nova Aguilar publicou a segunda edição, bastante reformulada, da Poesia Completa e Prosa do Autor. Portanto, a demanda por sua poesia persistiu, e até se intensificou, para além da morte do escritor. Faz-se necessário, porém, contextualizar sua presença, nos altos e baixos com que ela veio se constituindo ao longo das letras brasileiras, a partir da discreta estreia com Pedra do Sono, em 1942, até a inconteste canonização dos dias de hoje. Costuma-se dizer que João Cabral é um poeta sem antecessores, mas com muitos descendentes. Ambas as afirmativas devem ser encaradas com certa cautela. No que tange a antecessores, a afirmativa é verdadeira se nos reportarmos à herança lírica brasileira, mas por que não localizar na literatura espanhola e na ficção de Graciliano Ramos alguns traços que João Cabral adotaria e desenvolveria, a seu modo? Suas relações com os contemporâneos também costumam ser apressadamente descartadas, quando o próprio poeta admitiu, com ressalvas, pontos de contato com a geração literária a que pertence, em especial no que se refere à negação de certos valores caros aos modernistas de 1922. Sua geração, a de 1945, é das mais estigmatizadas (com rejeição só comparável à dos parnasianos), a ponto, inclusive, de quase sempre a denominarem em companhia de um ferino adjetivo: ela é a chamada Geração de 45. Mas foi nessa ambiência que João Cabral, como outros colegas de ofício, repudiou várias das características do primeiro modernismo: o verso e a estrofação livres, a paródia, o poema-piada e, no plano ideológico, o compromisso com projetos de afirmação da nacionalidade. A maneira de desvencilhar-se desse lastro modernista foi o que, afinal, acabou singularizando o autor: em vez de recusar o nacional em prol de um discurso universalista, na esteira de tantos escritores do período, Cabral, a partir de 1950, o fez mergulhando na vertente regional, tida como menor num período de pós-guerra. O poeta não pretendia carregar o sentimento do mundo, bastava-lhe trazer a memória de Pernambuco. Já no aspecto técnico, quando se descarta das formas livres, não adere ao decassílabo e ao soneto: vai adentrar territórios tidos por desimportantes ou obsoletos, a exemplo do cordel e do poema narrativo, discursos vinculados a registros populares e folclóricos. Assim, paradoxalmente, uma das razões da modernidade de João Cabral foi sua adesão ao que havia de mais arcaico na história das formas literárias ibéricas: revividas pelo poeta, adquiriram insuspeitado frescor, descontaminadas que estavam do desgaste padecido por expressões consideradas "nobres", porém exauridas. Outra divergência cabralina diante dos pares de 45 foi sua atração pelo prosaico, seja no nível temático, seja no vocabular. Hostilizando o "poético" associado ao sublime e ao abstrato, Cabral pratica uma poesia do chão, infensa tanto à montanha condoreira do escritor olímpico, que enxerga o mundo do alto e de fora, quanto ao subsolo do autor confessional, atolado nas elucubrações de seus pântanos secretos. Enquanto os cultores do confessionalismo versejavam sobre si mesmos, ou, genericamente, sobre a alma humana, Cabral falava de seres historicamente situados, portadores de nome e de biografia. Partindo do Nordeste, na recusa de um humano sem endereço, seus versos iriam percorrer geografias pouco usuais em nossa tradição lírica: além da onipresente Espanha, estendem-se à Guiné, ao Senegal, ao Equador, aos Andes, espaços efetivamente palmilhados pelo poeta, incapaz, segundo dizia, de criar senão movido pela força da memória.Ao não reconhecer-se herdeiro de 1922, e, ao mesmo tempo, ao distanciar-se dos companheiros de geração, João Cabral foi alvo, inicialmente, de recepção ambígua por parte da crítica. Insistia-se, de um lado, nas teclas da "frieza", do "racionalismo", do "prosaísmo" como obstáculos a uma arte "verdadeira", ou até "humana". Por outro, mais e mais se reconheciam em João Cabral as inapagáveis marcas de uma dicção singular. Sua consciência formal levada a ponto extremo materializou-se em A Educação pela Pedra, de 1966, e não será equivocado afirmar que a década de 1960 representou o período de consagração institucional do poeta. Multiplicaram-se artigos, ensaios, teses e livros sobre sua obra. Morte e Vida Severina, com encenação premiada na França, transforma o autor em celebridade. Os poetas concretos, tão parcimoniosos no reconhecimento, em âmbito de literatura brasileira, de valores literários anteriores ao próprio Concretismo, destacam a importância de João Cabral, alçando-o a patamar inatingido por qualquer outro escritor do País. Em 1968, é publicada a primeira edição comercial de suas Poesias Completas, que logo se esgotam. No mesmo ano, é eleito, por unanimidade, para a Academia Brasileira de Letras.A década de 1970 indicará certo refluxo da projeção cabralina, não só porque o escritor, de fato, publicou somente um novo livro entre 1966 e 1979 (Museu de Tudo, de 1975), quanto pelo predomínio, na cena da cultura brasileira, da "Geração Marginal", cujos pressupostos de espontaneidade e de antiformalismo se chocavam frontalmente com os de Cabral. Nos anos seguintes, porém, com a publicação de outros livros e com o seu retorno ao país, já então aposentado como diplomata, pouco a pouco ele retorna à posição de destaque em que o vimos, no primeiro parágrafo deste texto. O prazo de validade poética dos marginais não foi muito extenso. Assistiu-se a uma floração de poetas e críticos de origem universitária, com um instrumental teórico e uma concepção do poético mais afins da prática do escritor.Se a importância intrínseca de sua obra é hoje ponto pacífico, mais problemática é a relação dessa poesia com os que nela se abastecem. O esquálido minimalismo vigente nas décadas de 1980 e 1990 é bom (mau) exemplo. Entronizado, à revelia, como patrono de poéticas em que certamente não se reconhecia, pela facilitação de tantos simulacros afásicos, muito celebrados por supostamente representarem a "condensação máxima da linguagem", João Cabral se apequena quando traduzido, ou treslido, pela produção dos que se proclamam seus sucessores, os aspirantes em marcha unida do numeroso exército de subcabralinos.Em outra ocasião, já destaquei o risco que um texto estilisticamente tão denso e personalizado oferece aos que nele se inspiram: o de traduzi-lo - isto é, reduzi-lo - a tudo que epidermicamente se percebe (os substantivos concretos, a contenção da linguagem, a supressão da primeira pessoa). A partir de poucos elementos, pode-se fazer um poema "à la Cabral", que, pretendendo ser a favor do poeta, ao continuá-lo, acaba sendo contra o poeta, ao diluí-lo. Melhor, portanto, lê-lo "no original", sem lastimarmos que a grandeza de sua obra não tenha deixado herdeiros consequentes. Antonio Carlos Secchin é poeta, professor titular da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras. Autor de João Cabral: A Poesia do Menos (TopBooks), organizou Poesia Completa e Prosa de João Cabral de Melo Neto (Nova Aguilar) e Primeiros Poemas de João Cabral de Melo Neto (UFRJ)

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