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Biógrafo François Dosse conta a história da intelectualidade francesa em um livro monumental

Primeiro volume cobre o período de 1944 até a grande rebelião de 1968

Por Rosane Pavam
Atualização:

Nada mais desesperador do que perder a noção de futuro. É como se nos faltassem os pés ou os pais. Quem nos ajudará a andar, a ser? Depois da ocorrência de duas guerras, homens e mulheres ocidentais sentiram-se assim, órfãos sem chão. A 2ª Guerra, especialmente, havia lhes roubado o bem mais precioso, a crença advinda do século 19, forjada em Hegel e Marx, segundo a qual caminhávamos para o progresso indefinido da humanidade. Em meio à esperança socialista na história, surgira uma pedra no caminho a embaralhar os sentidos, o fascismo, este que até hoje destrói a justiça social, sempre em construção. E não só. Na França, parecia urgente prender-se a alguma convicção. E era bem viva a vitória dos soviéticos contra o exército de Hitler. Os intelectuais se agarraram então a Stalin como a um redentor. Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir ou mesmo Pablo Picasso se entregaram à fé de que a revolução de 1917 ainda vivia até 1956, quando Nikita Kruchev revelou o terror praticado por um campeão totalitário. Neste livro de François Dosse A Saga dos Intelectuais Franceses 1944-1989, do qual recebemos o primeiro volume, À Prova da História, com os eventos até o alvorecer de 1968, todo esse pensamento a caminho da distopia vem desembrulhado com alguma simplicidade e até humor.

Caricatura do escritor franco-argelino Albert Camus Foto: Cido Gonçalves

Aos 71 anos, o parisiense Dosse é professor e escritor de biografias (ele dedica esta a sua esposa estilista). Contudo, seus livros só pinçam os fatos da vida para ilustrar o pensamento dos biografados. Como epistemólogo, especializado em história intelectual, ele já verificou as vidas de Paul Ricoeur, Michel de Certeau, Gilles Deleuze e Félix Guattari, até mesmo de todos os estruturalistas juntos, num estudo à parte, como quem se concentra na sua inteligência. Convenhamos que se trata de tarefa dificílima, da qual Dosse se sai bem na maioria das vezes. E ele faz isso sem nos roubar os anedotários preciosos.  Sartre permeia todo o primeiro volume dessa história. Depois da Revolução Francesa, que ensinou a resistir pelo pensamento, ele foi o mais reconhecido dos intelectuais propensos à ação. Era um homem que corria para compensar a própria tibieza de atitudes no combate aos nazistas. No pós-guerra, um novo filósofo nasceu, capaz de exprimir a necessidade radical de renascimento de uma França desejosa de romper com o passado colaboracionista. “Sartre compreendeu que, vivendo não no absoluto, mas no transitório, deveria renunciar a ser e decidir fazer”, escreveu Beauvoir. Com sua ação, ele destruiu o ideal do intelectual profético, típico do século 20. Principalmente, ensinou que a existência precede a essência. O ser humano não era, tornava-se, numa paráfrase à famosa citação de Beauvoir sobre a mulher. Apoiar-se na existência valia mais do que crer numa improvável essência humana. O existencialismo, acreditava, culminaria em liberdade. Foi Sartre quem levou a filosofia às ruas, aos bares e aos clubes de jazz. O existencialismo tornou-se a expressão da necessidade de viver e ganhou em 1945 uma revista, a Le Temps Modernes, até mesmo contra a rigidez comunista de centrar as análises situacionais em suas próprias publicações, casos de La Nouvelle Critique ou Les Lettres Françaises, sob a estrela do “casal régio” do PCF, os poetas Louis Aragon e Elsa Triolet. Na história da intelectualidade francesa, cada movimento ou subseção deveria apoiar-se em revista própria ou jornal, como foi o caso do Le Monde, criado em 1942 para liquidar o legado de uma imprensa que havia sido demasiadamente condescendente com o ocupante nazista.  Em 29 de outubro de 1945, a conferência O Existencialismo é um Humanismo, organizada pelo clube Maintenant, em Paris, quase resultou em um motim, porque a bilheteria se viu invadida por uma multidão que esperava garantir lugar dentro da sala. Sartre chegou sozinho de metrô e imaginou que a confusão deveria ser uma hostilidade contra ele preparada pelo PCF. Longe disso, porém. Quinze desmaios e trinta cadeiras quebradas depois, a estrela de Sartre nascia para sobreviver muitos anos.  Albert Camus a conhecia. Diretor do jornal Combat, admirava aquele pensador diferente dele, do aporte físico à origem social, até pelo menos o rompimento dos dois, em 1952. Criado pela mãe lavadeira, Camus não se declarava existencialista, embora todo o resto do mundo parecesse desejar que fosse. Sartre era apenas seu amigo, como apontou em 1945: “Nada pode ser explicado unicamente por princípios ou ideologias.” Camus entendia que o mundo intelectual substituíra a crença em Deus por aquela na História: “Compreendo perfeitamente o interesse da solução religiosa e tenho uma percepção bastante particular da importância da história, mas não acredito em nenhuma das duas no sentido absoluto.” Oito anos mais velho que Camus, Sartre admirava o sucesso do amigo no universo feminino, que talvez se devesse tanto a seu humor quanto ao sotaque de francês nascido na Argélia. O próprio Sartre, em 1950, seria acusado pela imprensa comunista (moralista quando lhe convinha) de “víbora lasciva”, como se a alcunha nascida da sua condição de mulherengo o diminuísse. 

Caricatura do filósofo francês Jean-Paul Sartre Foto: Cido Gonçalves

As três estrelas do pensamento, Camus, Sartre e Beauvoir, frequentavam juntas Saint-Germain-des-Prés. Mas Beauvoir e Camus tinham ciúme um do outro. Segundo ela própria, eram “parecidos a dois cães em torno de um osso (Sartre)”. Dosse sustenta que ela teria desejado manter uma relação duradoura com o protegido de Sartre, mas que, diante da rejeição, tornou-se sua confidente. No início de 1946, Camus aproveitou que enviara Sartre a uma reportagem nos Estados Unidos, pelo jornal Combat, para jantar sozinho com Beauvoir. O encontro terminou às três da madrugada no hotel em que ele se hospedava, o La Louisiane. Um dia, contudo, o apetite pela ação libertária, que muitas vezes se chocava com as diretrizes neocolonialistas de Charles de Gaulle, já não cativava os intelectuais franceses. Quando o estruturalismo chegou, por meio de perfis no mais das vezes ascéticos como o do antropólogo Claude Lévi-Strauss, o mundo havia mudado de perspectiva. O stalinismo não enganava mais ninguém, especialmente da forma com que tripudiara os existencialistas. Agora, a ordem se situava em descobrir aquilo que nos unia a todos os homens, mesmo os ditos primitivos e distantes. Era preciso encontrar as tais estruturas comuns de pensamento, sem se deixar enganar pelas aparentes diferenças. Mais ciência, por favor. Na Argélia, no Brasil ou na França, o homem era um só. Roland Barthes, Jacques Lacan e Louis Althusser promoveram o retorno aos estudos respectivamente da linguagem de Saussure, da psicanálise de Freud e da teoria política de Marx. Eram intelectuais em busca de recuperar a bússola extraviada. E agiam na direção contrária da paixão desmedida que paradoxalmente resultara no apoio à ditadura soviética. Sua grande luta, pela qual foram aplaudidos, era mudar a rigidez acadêmica que rejeitava os novos estudos. Os muitos filhos do ‘baby boom’ a partir dos anos 1940 agora se preocupavam com o feminismo estudado por Beauvoir e suas seguidoras. Propagavam a literatura de Françoise Sagan tanto quanto o cinema de Jean-Luc Godard. Queriam estar na universidade, desde que ela os libertasse de modelos antigos.  Estruturalista era tudo, tanto a tática de uma seleção futebolística quanto a compreensão do mecanismo de um relógio. “O estruturalismo é essencialmente uma atividade”, escreveu Barthes em 1964. “O objetivo de qualquer atividade estruturalista consiste em reconstituir um objeto, a fim de manifestar nessa reconstrução as regras de funcionamento desse objeto. Portanto, a estrutura é, de fato, um simulacro do objeto”. Em 1966, Michel Foucault afirmou o desaparecimento da filosofia e sua dissipação em outras atividades do pensamento. “Estamos chegando a uma época que é talvez a do pensamento puro, do pensamento em ato, e uma disciplina tão abstrata e geral quanto a linguística, tão fundamental quanto a lógica, ou ainda a literatura desde Joyce. Elas fazem as vezes da filosofia, não por tomarem o lugar desta, mas por serem o próprio desenvolvimento do que era outrora a filosofia”.  Complicado? Isto porque ainda não se chegou ao ponto fulcral dos estruturalistas, que era rejeitar o humanismo da banda existencial. Foucault apontava o desaparecimento do ser humano como sujeito de sua história e consciente da própria ação: “O homem não é, decerto, nada mais do que uma brecha na ordem das coisas. Não passa de uma invenção recente, uma figura que não conta mais de dois séculos, uma simples inflexão em nosso saber”. Ou como escreveu o jornalista Gilles Lapouge em 1986, ao ilustrar, não sem deliciosa ironia, um espírito de época: “Eu sentia orgulho de minha ciência como um piolho na cabeça do papa. Chamava-me estruturalista, mas não proclamava isso aos quatro ventos porque meu saber era ainda pouco desenvolvido, friável, e teria sido disperso por uma simples brisa. Utilizava as noites para aprender sozinho, às escondidas, os princípios da linguística e estava muito satisfeito. Eu me empanturrava de sintagmas e de morfemas. Se eu estivesse debatendo com um humanista, eu o esborrachava com um golpe de episteme”.  Em pouco tempo esse logocentrismo seria derrubado elegantemente por figuras como Jacques Derrida, mas esta é uma outra história. Ou História, essa maldita Geni continuamente recuperada pelos intelectuais órfãos de um projeto de sociedade.  *ROSANE PAVAM É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

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