‘Evguiêni Oniéguin’ ganha uma nova tradução

Obra mais conhecida do poeta, cuja versão inglesa de Nabokov foi reprovada chega integral ao Brasil

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Por Paulo Nogueira

É difícil explicar para não russos o pedigree nacional de Evguiêni Oniéguin – simplesmente a obra-prima suprema do cânone literário russo. Como se todo Shakespeare (tragédias, comédias e sonetos) fosse fundido num poema narrativo de mais de cinco mil versos, que os russos instruídos sabem na ponta da língua. Um exemplo é uma passagem famosa nas memórias da escritora Evgenia Ginzburg, em 1937, a bordo de um trem rumo ao Gulag, para uma sentença de 18 anos num campo de concentração. Para matar o tempo naquela jornada infernal, ela declamou versos aos outros presos no vagão lotado. Furioso, um guarda presumiu que Ginzburg estava lendo um livro escondido. E então ela recitou Oniéguin inteirinho: “Enquanto recitava, mantive meus olhos fixos nos dois guardas”.

Por parte de mãe, Aleksandr Púchkin (1799-1837) era bisneto de um negro africano, trazido para a Rússia no reinado de Pedro, o Grande. Foi uma figuraça histrionicamente romântica (tipo Byron). Uma vez compareceu a uma estreia teatral com uma calça transparente e sem nada por baixo. Adorava duelos e zoar com os adversários. Num deles, chegou comendo cerejas e cuspiu os caroços na cara oponente. Em outro, como o rival fazia pontaria errada de propósito, chamou seu padrinho: “Fique aqui comigo, que é mais seguro”. Acabou morrendo num duelo, aos 38 anos, numa história mal contada envolvendo sua esposa.

Pintura de Alexander Pushkin feita em 1827  Foto: Vasily Andreyevich Tropinin

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Púchkin começou a escrever Oniéguin (que Tchaikovski converteu na mais popular ópera russa, que Vladimir Nabokov odiava) aos 24 anos, no exílio, por defender a libertação dos servos e outras impertinências. Levou sete anos para concluir a obra. Compôs os capítulos fora de ordem, e os publicou separadamente para receber dinheiro vivo.

O romance tem oito capítulos, mas com adições (fragmentos só foram descobertos em 1910, e a edição brasileira os inclui). É uma narrativa peripatética, indo de São Petersburgo para a província, depois para Moscou e regressando a então capital russa. A trama é frugal: moça ingênua (Tatiana) apaixona-se por dândi entediado (Oniéguin) e se declara a ele, que a rejeita. Quando reencontra a jovem, agora grande dama da alta sociedade, apaixona-se por ela, mas é tarde: Tatiana está casada. O próprio autor desponta como personagem, assim como alguns amigos envolvidos na “conspiração Dezembrista” contra o czar.

O crítico Belinsky chamou Oniéguin de “uma enciclopédia da vida russa”. Só que não: como notou Andrei Siniavsky, “é um romance sobre nada”. O protagonista é um personagem recorrente na literatura russa: o “homem supérfluo”. Nabokov resmungou: “Não é ‘um retrato da vida russa’, mas de um pequeno grupo de russos, na segunda década do século passado, cruzado com os mais óbvios personagens da literatura da Europa Ocidental e colocados numa Rússia estilizada”.

Púchkin começou a escrever a obra aos 24 e publicou capítulos separados para receber em dinheiro vivo

Como sempre acontece na literatura, o principal é a linguagem. Púchkin criou seu próprio sistema métrico, a “estrofe Onegin”, cuja leveza inebriante já foi comparada à efervescência do champanhe. Como disse alguém, “poesia é o que se perde na tradução”. E como disse outrem (provavelmente machista): “Tradução é como uma amante – ela pode ser ou bela ou fiel, mas não ambas as coisas.” Nabokov, que tinha seus defeitos mas não escrevia (nem lia) nada mal, reclamou que não havia nenhuma versão decente de Oniéguin em inglês. Vera, a mulher dele, exclamou: “Ué, então por que você não faz uma?” O autor de Lolita (que tinha assinado um contrato para traduzir Anna Karienina mas roera a corda) topou no ato – e foi o que fez durante os 14 anos seguintes.

É uma história mirabolante. Primeiro Nabokov enfurnou-se seis meses na biblioteca de Harvard, empilhando 300 alucinadas folhas de anotações. Previu que a tradução de Oniéguin teria 600 páginas. Quando terminou o rascunho, tinha 2500 páginas. Em 1964, ao ser entrevistado para a Playboy por Alvin Toffler, no Montreux Palace, o hotel suíço onde morava, Nabokov mostrou ao entrevistador 36 caixas de sapato, contendo cinco mil cartões com as notas em ordem alfabética. Quando a versão foi publicada, significou o fim da longa e calorosa amizade entre o autor russo e o crítico americano Edmund Wilson (que esculachou a tradução no New York Review of Books). Hoje, o Oniéguin de Nabokov é a mais celebrada e citada reciclagem de Puchkin em inglês.

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Por causa da dificuldade da tradução, a universalidade de Oniéguin não é evidente a nível mundial (aliás, nem mesmo europeu). Haroldo de Campos traduziu trechos para o português. A nova tradução de Rubem Figueiredo segue uma premissa sensata: “Privilegiou a ideia de que se trata, afinal, de um romance em versos e, assim, sem prejuízo do aspecto lírico e dos elaborados efeitos visuais do original, o tradutor teve sempre presente o fato de que o leitor de Evguiêni Oniéguin acompanha uma narrativa, que supõe sequência e fluidez.” A meu ver, o resultado é proficiente, e devemos ser eternamente gratos a Figueiredo. Spassibo, tradutor!

Evguiêni Oniéguin

Aleksandr Puchkin

Penguin Companhia

R$ 54,90

R$ 34,90 (e-book)

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