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Jornalista viaja por 14 países para contar a história da Rússia

Entenda como a fronteira russa deve manter-se um agente ativo na geopolítica mundial dos próximos anos

Por Luiz Henrique Gomes

Nenhum acontecimento geopolítico foi tão importante no ano passado quanto a invasão da Rússia à Ucrânia. A guerra iniciada no dia 24 de fevereiro alterou a ordem política do Ocidente com a Rússia, provocou o maior fluxo migratório da Europa desde a 2.ª Guerra e aumentou as tensões mundiais. Há uma infinidade de análises sobre as causas e o desfecho do conflito, mas compreendê-lo exige, inevitavelmente, olhar para a relação da Rússia com os países em suas fronteiras.

É neste sentido que A Fronteira – Uma Viagem em Torno da Rússia, da antropóloga norueguesa Erika Fatland, recebe uma tradução no Brasil pela editora Âyiné, seis anos depois de ser lançado. O livro nasceu de um sonho da autora, em que ela percorria uma grande linha vermelha traçada sobre um mapa que vinha a ser a fronteira mais extensa do mundo – a russa – com 60.932 quilômetros. Ao despertar, Erika decidiu fazer a viagem e registrá-la em um livro a partir de uma pergunta central: o que significa ter o maior país do mundo como vizinho?

Cidadãos ucranianos lamentam a morte de diversos compatriotas mortos durante conflito com a Rússia Foto: DIMITAR DILKOFF / AFP

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A resposta não é única, como não poderia ser. A Rússia faz fronteira com 14 países, e cada um deles reserva a própria relação com os russos. Com exceção de um, a Noruega, justamente o país da autora, todos sofreram invasões da Rússia nos últimos 500 anos e muitos fizeram parte do Império Russo ou da União Soviética. “Ao escrever sobre a fronteira russa, eu também penso sobre como essas nações vizinhas se desenvolveram após se tornarem independentes e olho para a relação delas com os russos”, diz Erika Fatland ao Estadão.

Em comum, o livro oferece a percepção de que tudo que afeta a Rússia – a queda do império, o surgimento e o declínio da União Soviética, a ascensão de Putin – afeta seus vizinhos, mesmo que sejam nações independentes. Não se trata de um livro apenas sobre a Rússia, mas acerca de diferentes povos que habitam suas fronteiras. Cerca de 25 milhões de russos e falantes de russo como língua materna estão nessas regiões. Muitos simplesmente deixaram de estar no país de uma hora para outra, quando a URSS chegou ao fim.

A exploração da autora sobre as relações ecléticas entre povos e nações aumenta a compreensão sobre a guerra na Ucrânia. Em um dos capítulos, Erika viaja à república separatista de Donetsk, no leste ucraniano. A região, onde hoje se concentra o conflito entre as tropas ucranianas e russas, está em guerra desde a anexação da Crimeia em 2014, e a visita acontece durante o conflito. A jornalista transcreve a conversa com uma moradora que fala sobre o movimento separatista na região e por que muitos não se veem parte da Ucrânia, mesmo tendo nascido ali: “Na TV só falavam ucraniano, na escola tudo passou a ser ucraniano, mas aqui sempre falamos russo”, diz a entrevistada.

Ao escrever sobre a fronteira russa, eu também penso sobre como essas nações vizinhas se desenvolveram após se tornarem independentes e olho para a relação delas com os russos

Erika Fatland

Os relatos da autora durante a viagem são intercalados com a contextualização histórica da Rússia e dos países visitados. A combinação busca tornar o papel da fronteira protagonista para a história do país e construir a ideia de que a Rússia é o que é, inevitavelmente, pela sua expansão territorial. “Ao contrário do Reino Unido ou da França, a Rússia nunca teve colônias em outros continentes. A Rússia era apenas uma terra e o império se expandiu tomando seus vizinhos”, conta a antropóloga norueguesa.

Essa visão acaba por situar o conflito atual da Ucrânia em uma história de centenas de anos em que a Rússia cresceu a partir dos seus vizinhos.

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O país de hoje não é tão diferente, nesse quesito, do império dos Romanovs. Erika defende que a Rússia é constituída ainda hoje como império ao governar outros povos no Cáucaso e na Sibéria e por nunca deixar de provocar tensões para expandir seu território, exceto por um breve momento após a queda da URSS, quando precisou se reconstruir.

Kharkiv é uma das regiões ucranianas que o Estado aumentou a vigilância  Foto: Vyacheslav Madiyevskyy/ REUTERS

Mesmo em zonas desertas e desabitadas, a autora vê sinais que revelam algo sobre a Rússia. Na passagem pelo Mar do Ártico, por exemplo, barris de petróleo da época da URSS servem como símbolo de uma presença que deixou de existir e se resume a um rastro. O Cabo Djeniov, o ponto mais a leste da Rússia, representa a ambição da época dos Romanovs de expandir seus domínios.

Esses sinais também são catapultas para a autora refletir sobre o futuro da fronteira. Ainda no Mar Ártico, ela se depara com o degelo decorrente das mudanças climáticas e ensaia o que isso pode significar para a indústria naval e petrolífera e o Estado russo. “O Ártico detém aproximadamente um quinto das reservas mundiais de petróleo e gás, e estas ficam bem mais disponíveis quando o gelo derrete”, escreve, sugerindo que a Rússia pode beneficiar-se em breve com a situação. O livro une elementos de diário de viagem, reportagem e história e, como é da natureza do diário, está cheio de impressões pessoais, indispensáveis para construir os sentidos da fronteira russa.

Entretanto, em alguns trechos a autora parece cair na armadilha de tomar a própria percepção como um saber sobre outro povo e apresenta sua visão como um fato. No capítulo reservado à Coreia do Norte, por exemplo, ela atribui sentidos a expressões e gestos dos coreanos na tentativa de desvendar algo que está oculto pela ditadura do país e chega a escrever que tudo o que viu, “incluindo as pessoas”, não passa de ilusão.

Autora mistura elementos da narrativa de viagens, experiências pessoais, além de pesquisa de campo

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Ao se colocar no livro, ela também se utiliza da própria vivência na viagem para expandir a realidade existente na fronteira russa, como o temor vivido ao precisar se trancar em um quarto para escapar de bêbados que a perseguem. Esse estilo mostra a fronteira por uma ótica abrangente, tanto pessoal quanto histórica, e havia sido utilizado pela autora no seu livro anterior, Soviestão, no qual viaja pela Ásia para testemunhar e compreender os processos que Turcomenistão, Casaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Usbequistão vivem após o fim da URSS.

Originalmente publicado em 2017, A Fronteira é um livro que testemunha as diferentes manifestações da fronteira russa, desde o papel exercido pela Rússia em relação à Coreia do Norte na atualidade, passando pela paisagem gélida do Mar Ártico e indo até os conflitos no leste ucraniano. Nesse percurso, a pergunta central do início do livro – o que significa ter o maior país do mundo como vizinho? – permanece como guia e revela os riscos que há em estar nessa posição. Quando realizou a viagem, antes da guerra, mesmo sem um conflito direto com a Ucrânia, como o atual, a invasão da Geórgia em 2008 e a anexação da Crimeia em 2014 foram sinais de alerta. “A Europa soube naquele momento que a Rússia era uma vizinha perigosa”, afirma a autora.

A fronteira russa deve manter-se um agente ativo na geopolítica mundial dos próximos anos, como é há séculos. O que o livro nos mostra é que ela é parte crucial da história russa, conta suas vitórias, suas ambições imperialistas, as suas derrotas e as sequelas dos atos de seus governantes.

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A FRONTEIRA: UMA VIAGEM EM TORNO DA RÚSSIA

AUTORA: ERIKA FATLAND

TRADUÇÃO DE LEONARDO PINTO SILVA

EDITORA AYINÉ

692 PÁGINAS. R$ 159,90 OU R$ 119,90 (E-BOOK)

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