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Lévi-Strauss analisa a cultura do antípoda no livro ‘Antropologia Estrutural Zero’

No livro’, escrito durante exílio em Nova York, ele fala dos povos indígenas do Brasil

Por Sérgio Medeiros
Atualização:

Nascido em 1908 na Bélgica, o antropólogo Claude Lévi-Strauss fez sua carreira acadêmica na França e se considerava “francês de origem judaica”. Nos anos 1930, lecionou no Brasil, ensinando sociologia na Universidade de São Paulo, e viajou pelo interior do país, entrando em contato com populações indígenas do Centro-Oeste. Voltou para a França, mas, perseguido por ser judeu, passou os anos de guerra nos Estados Unidos, onde, acolhido por uma tia, rapidamente aprendeu inglês. Os ensaios reunidos no recém-lançado Antropologia Estrutural Zero foram escritos em Nova York durante o exílio norte-americano. Conforme se lê no excelente prefácio assinado por Vincent Debaene, o objetivo desta obra póstuma é “tornar de novo disponíveis textos importantes, muitas vezes pouco conhecidos, publicados inicialmente em inglês e em revistas variadas, textos que para muitos se tornaram até certo ponto inacessíveis”.

Os 17 artigos mostram Lévi-Strauss como especialista na América do Sul dialogando com antropólogos do Hemisfério Norte, ao mesmo tempo que “desenham uma pré-história da antropologia estrutural” e lançam as bases de estudos clássicos do autor, que revolucionaram os métodos das ciências sociais da segunda metade do século 20, como Antropologia Estrutural (1958) e Antropologia Estrutural 2 (1973). Caberia citar que saiu recentemente no Brasil outro livro póstumo de Lévi-Strauss, Somos Todos Canibais, com as crônicas que o antropólogo escreveu na velhice.

O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss  Foto: Editora Zahar

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Acessível e saboroso, Somos Todos Canibais é muito diferente do denso e repetitivo Antropologia Estrutural Zero, que contém, além de artigos e resenhas, notas muitas vezes de valor meramente histórico. O volume só se torna interessante, a meu ver, a partir do meio, quando o autor passa a discutir “as pequenas unidades sociais que constituem a América indígena”, com destaque para os “nhambiquaras” de Mato Grosso, que habitam um planalto coberto por uma espécie de savana e cuja cultura, segundo ele, “é das mais rudimentares da América do Sul”.

A descrição que faz o jovem antropólogo dos habitantes desse ambiente desolado rouba a cena e, ouso afirmar, torna Antropologia Estrutural Zero bem mais atraente para o leitor de hoje. Entre outros aspectos relevantes dessa sociedade seminômade, a guerra e o comércio são atividades que não podem ser estudadas separadamente: “As trocas comerciais representam guerras potenciais resolvidas pacificamente, enquanto as guerras são resultantes de transações malsucedidas”. O chefe nhambiquara é escolhido pela comunidade e dele se espera grande generosidade, fato que caracterizaria o regime indígena, na opinião do estudioso, como uma “democracia primitiva”. Por isso, o chefe é sempre pobre, pois deve oferecer aos outros tudo o que possui enquanto estiver no poder. “Essa avidez coletiva”, pondera Lévi-Strauss, “muitas vezes põe o chefe numa posição desesperada”.

No entanto, a poligamia é um privilégio do chefe, a qual não é apenas uma compensação, mas também, e sobretudo, um meio para cumprir suas pesadas obrigações. O direito do chefe a ter várias mulheres, a maioria jovens, pode acarretar para os jovens a falta de noivas na aldeia, afastando-os do casamento. Esse problema é temporariamente resolvido por relações homossexuais, que os nhambiquaras chamam de “amar-mentira”: “Essas relações são frequentes entre jovens e ocorrem de maneira muito mais pública do que as heterossexuais”, avalia o antropólogo. “Diferentemente da maioria dos adultos, os parceiros não se isolam na mata, mas se instalam perto de uma fogueira de acampamento, sob os olhares divertidos dos vizinhos”.

Os momentos mais tocantes deste volume são os dedicados à arte indígena, a respeito da qual o autor fala, porém, apenas brevemente. Da arte gráfica dos cadiuéus do Pantanal, por exemplo, Lévi-Strauss destaca a “maquiagem” feminina: “O rosto – e com frequência o corpo inteiro – é coberto por uma rede de arabescos assimétricos, alternados com motivos de sutil geometria”, o que, segundo o autor, aumenta o encanto das mulheres indígenas. E ele conclui: “De fato, nunca o efeito erótico dos cosméticos foi explorado de forma tão sistemática e, sem dúvida, tão consciente. Quando comparado a tais feitos, o realismo grosseiro de nossas maquiagens parece um esforço pueril”.

Pintura do índio Joseca Yanomami retrata homem de seu povo ianomâmi Foto: Masp

A arte narrativa indígena também merece comentário elogioso de Lévi-Strauss, ele próprio um grande escritor que assina, entre outros livros monumentais, Tristes Trópicos, um clássico da literatura francesa. Ao analisar um mito da costa noroeste da América do Norte, ele afirma: “Quando se compara a lenda grosseira de Pigmalião a esse conto sensível e pudico [que narra a relação de um viúvo com a estátua da esposa morta], dotado de sutil discrição e pujante poesia, acaso não são os gregos que fazem papel de bárbaros e não os pobres selvagens do Alasca que podem pretender à mais pura compreensão da beleza?”

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