‘Miss Macunaíma’ é o encontro de Mário de Andrade com sua criatura

Romance de Alexandre Rabelo recria cartas do escritor paulista a amigos, como Tarsila e Bandeira

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Por Matheus Lopes Quirino
Atualização:

Mário de Andrade teve sua vida pessoal soterrada. Diferente de Oswald, conhecido pelos excessos e pelas paixões (foi casado com a pintora Tarsila do Amaral, depois se relacionou com Pagu), a intimidade do autor de Amar, Verbo Intransitivo, foi reduzida a fofocas e comentários maldosos, falados na surdina.

No ano de 2015, quando Mário foi o autor homenageado na Festa Literária Internacional de Paraty, o jornalista mineiro Marcelo Bortoloti descobriu uma carta do autor paulista ao poeta Manuel Bandeira, em que Mário revelava sua homossexualidade em uma confissão para o amigo. O documento, que ficou em sigilo por décadas em um cofre na Fundação Casa de Rui Barbosa, foi acessado pela Lei de Acesso à Informação, desagradando, inclusive, herdeiros do espólio do escritor.

O escritor Mário de Andrade, autor de 'Amar, verbo intransitivo' e 'Contos Novos' Foto: Acervo Estadão

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O episódio trouxe à tona, à época, o debate sobre a importância da orientação sexual dos autores na literatura. Nos últimos anos, com o mercado editorial aquecido e empenhado em relançar autores que fazem parte de minorias, como a causa LGBT+, Mário volta à tona.

Um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, Mário de Andrade passou por um processo de embranquecimento, da mesma forma que Machado de Assis teve sua origem miscigenada ocultada. Em Miss Macunaíma, uma espécie de romance epistolar recria o livro homônimo do escritor paulista, Alexandre Rabelo busca cria uma voz para um Mário de Andrade liberto das amarras sociais do século passado, em que o escritor discute de forma direta, por meio do humor e da ironia, suas origens africanas e a sexualidade.

Alexandre, qual foi o insight para escrever ‘Miss Macunaíma’?

Eu procurava uma história que olhasse para a questão da ascensão social no Brasil, esse processo de envelhecimento, de se tornar cínico para ser aceito numa máquina violenta, como nas histórias de Balzac e outros clássicos. Quando a gente pensa em exemplos dessa tradição literária no Brasil, o caso de Macunaíma logo se impõe, inclusive no que ele falha em preencher os requisitos dessa linhagem de personagens, já que acaba sempre dando volta em círculos e dinheiro nunca é o suficiente para tirá-lo do limbo.

Como foi a seleção das cartas do autor? A primeira é a missiva (famosa já) a Manuel Bandeira, em que ele expõe sua homossexualidade. Por que criar uma ficção em cima deste documento que ficou anos em sigilo?

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A ideia inicial foi selecionar destinatários específicos para cada questão que preocupava Mário em seus últimos anos de vida. Por exemplo, Drummond para falar do estado da arte, Tarsila para fofocar sobre Oswald, e assim por diante. Desde o começo eu sabia que a primeira carta remetida pelo Mário deveria ser pro Manu (Manuel Bandeira), um dos poucos com quem o mestre paulista falava de igual pra igual, sem medo de expor seus medos e crendices, seu estupor meio místico, suas alegrias miúdas do cotidiano e, como sabemos hoje, uma abertura confessional maior que lhe permitiu falar para o amigo, mesmo que de forma ambígua, sobre sua homossexualidade. Quis amplificar esse conflito em cartas ficcionais que levassem em conta algumas novas e raras pesquisas e biografias sobre Mário atentas às questões de raça e sexualidade em sua vida e obra. Quis mexer nessas feridas enquadrando essas questões na moldura de um conflito de classes que expõe ainda mais esses apagamentos.

O escritor Alexandre Rabelo, autor de 'Miss Macunaíma', uma ficção sobre o autor Mário de Andrade  Foto: Editora Record

Você traz para o primeiro plano a questão racial em Mário de Andrade. O autor, inclusive, era registrado como branco. Como Mário se posicionou a respeito das suas origens africanas (ele cita os antepassados escravos) e como você fez para transportar isso para a literatura de forma explícita?

Apenas nos últimos anos pesquisadores começam a estudar a trajetória dos pais e avós de Mário. As duas avós, materna e paterna, são escravas livres que vivem das margens de um crescente meio gráfico e jornalístico ao redor do triângulo histórico do centro paulista, têm relações com líderes abolicionistas, com o movimento estudantil do Largo São Francisco e até laços de parentesco com líderes do importante movimento social organizado em torno da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Observei pelos poucos indícios que os dois ramos da família de Mário enfrentam um processo de embranquecimento social para se inserir no setor de serviços e na política. Esse foi o caminho de Mário também, nesse horizonte higienista e eugenista da primeira metade do século 20. Não havia a discussão do racismo como há hoje, o que não o impediu de se interessar vivamente por registrar casos de hibridismos sociais e identidades meio borradas como a dele próprio em muitas de suas obras literárias, poemas e estudos críticos. Ele não olhava tanto para a ideia de raça pura, estava mais interessado em registrar o que hoje chamaríamos de apagamentos e assimilações. Em Macunaíma, o uso dessas raças borradas é intencional e atinge efeitos críticos ainda pouco estudados à luz das questões atuais. Quis trazer tudo isso pra dentro do romance, afinal Mário vira personagem, homem comum.

Muita gente ainda não sabe que Mário de Andrade era gay. Mário é um autor consagrado, leitura de vestibular, enfim, um nome vistoso. Por que é importante demarcar a orientação sexual do autor?

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É interessante notar que desde que ele “saiu do armário” em 2015 na famosa carta para o Manu, não foi mais tão considerado nas escolhas dos vestibulares mais importantes do país. Eu ainda peguei essa fase mais forte, nos anos 90 e 2000. Como um adolescente dessa época, era explícito para mim o quanto Mario deveria ser gay. Ele deixou vários indícios. Ficava chocado em perceber esse silêncio, queria entender o porquê. Existe um discurso sub-reptício que diz que a sexualidade não é importante para a formação do escritor. Mas é bem evidente o quanto essa força dionisíaca das ruas, fora das casas, das caixinhas, é o que alimenta Mário desde seus primeiros livros como a Pauliceia Desvairada. Não podemos negar o quanto a sexualidade é importante para os temas e estilos de autores gays notáveis como James Baldwin ou Jean Genet, Wilde, Gide, mesmo o nosso João do Rio. Está na hora de considerarmos as sexualidades dissidentes como uma força crítica que pode somar para a formação de uma perspectiva artística ampla.

Como você acha que a homofobia impactou a obra do Mário?

É muito significativo que após a crônica homofóbica do Oswald de Andrade em 1929, que dá título ao meu romance, o Mário nunca mais tenha querido falar com ele até morrer. No mínimo é porque essa relação chegou num limite e esse texto foi a gota d’água. Eu não sei se a homofobia limitou a vontade artística do Mário, pois ele sempre foi provocativo na maneira de mostrar personagens afeminados, mesmo que de forma pontual, em seu panteão imenso de personagens. Hoje temos evidências e pesquisas que demonstram que ele sofreu ataques homofóbicos nos jornais desde o seu primeiro livro, e que essa era uma tônica comum nas caricaturas dirigidas a ele. Teve o seu chefe na universidade do Rio que o chamava na cara dura de mulato viado. Então, ele não estava protegido de nenhum lado. Acabou tendo muita dificuldade financeira a vida toda, sempre pulando de grupo em grupo para tentar sobreviver. A homofobia atingiu mais diretamente o Mário no básico, na estrutura material, na sobrevivência, mas como artista ele sempre se manteve muito corajoso.

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Retrato de Mário de Andrade por Lasar Segall Foto: IEB USP

Fala-se muito do tom professoral, de uma pessoa formal, mas nas cartas você parodia isso, digo, surge um Mário mais desbocado. Essa escolha pelo humor (com críticas embutidas, claro) surgiu como?

Tentei observar o humor do Mário, ele tem uma coisa de quebrar o drama com uma avaliação bem humorada em tom popular, um chiste. Essa também é uma das características centrais do seu modernismo, na quebra do romantismo e do realismo. É um modo de ver o mundo, uma crítica à estrutura do melodrama burguês, catártico, de hipervalorização dos sentimentos, da intimidade e do mundo interior, então o Mário acaba fazendo muitas ironias consigo mesmo, o que é muito engraçado para o leitor de suas cartas. Eu acabei encontrando um Mário bastante pessoal e fluido, que inclusive escreve um português mais próximo do nosso nas ruas hoje do que muitos escritores contemporâneos. Mário sabe pegar gírias e vocábulos de diversos grupos sociais entre os quais circula, desde os becos, parques, estações de trem, bares, universidades, conservatórios de moças, reuniões de artistas, jornalistas e políticos, grandes jantares e cerimônias de coluna social, além de festas no mato, em diferentes regiões do Brasil.

Seu livro traz um Mário de Andrade já no fim da vida, bastante ruminante, mas que conserva toda uma devoção à arte. Ao lidar com essa perspectiva de fim, como você se sentiu escrevendo? Quais angústias se revelaram?

O tempo histórico de Mário, esse dos Estados totalitários em guerra, é um tempo amargo, assim como era para Virginia Woolf, um caso mais conhecido, já retratado no livro/filme As Hora, que me inspira muito. De muitos modos, estamos revivendo esses tempos de extremismos, é notório até para uma criança. Também acho muito atraente essa sensação de que a proximidade da morte traz um esforço supremo da memória e do sonho em direção ao futuro. Tive muitas mortes ao meu redor durante a escritura desse livro, como a do meu pai e a de dois amigos bem jovens. E fiquei muito impressionado com a disposição do Mário para o trabalho até o último dia de vida, mesmo tão doente. Isso me ajudou a sobreviver a esses lutos, mesmo trancado sozinho na pandemia. Mário tem uma visão superior da arte, ligada ao mistério da vida, suas causas não são mundanas, embora tenha o olhar apurado para o lado casca grossa da vida. Ele busca transcendência em tudo ao mesmo tempo em que joga as oficialidades na lama. É uma força muito poderosa que tem me alimentado bastante.

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