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Viagem do alemão Theodor Koch-Grünberg a Roraima revela o mito de Macunaíma

Clássico sobre vida dos indígenas volta às livrarias

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho

É possível, mas vai ser difícil encontrar um livro sobre a cultura dos indígenas do norte do Brasil e sul da Venezuela que tenha inspirado a ficção literária e o cinema como o clássico Do Roraima ao Orinoco, do antropólogo e explorador alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924). Um erudito, morto aos 52 anos, de malária, em Caracaraí, no centro-sul de Roraima, Koch-Grünberg não teve tempo de ver as lendas indígenas por ele recolhidas serem adaptadas pelo modernista Mário de Andrade em seu mais conhecido livro, Macunaíma (1928), depois transposto para o cinema (em 1969) por Joaquim Pedro de Andrade. Muito menos imaginou que um dia Alejo Carpentier viesse a utilizar sua etnografia para escrever o romance Os Passos Perdidos (1985)

Mais recentemente, o cineasta colombiano Ciro Guerra, de 42 anos, retirou da mesma fonte de Koch-Grünberg fragmentos para construir o roteiro de seu premiado filme O Abraço da Serpente (2015), que chegou a concorrer ao Oscar. Se Mário de Andrade buscou inspiração no segundo volume da trilogia do etnólogo alemão, dedicado aos mitos e lendas dos índios Taulipángs e Arekunás, o colombiano Guerra fixou-se no terceiro, mais centrado na etnografia. Tirou dele o tema de seu filme: a viagem de um explorador europeu doente que conta com a ajuda de um xamã para navegar pelo Rio Amazonas em busca de uma lendária flor que possa trazer a cura para sua enfermidade.

O filme colombiano ‘O Abraço da Serpente’, baseado em Koch-Grünberg Foto: Netflix

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Mário de Andrade deixou para a posteridade um livro importante não só pelo conhecimento dos mitos indígenas como por escancarar o “jeitinho” brasileiro de ser. Até por isso o segundo volume pode ser uma leitura mais atraente, pois a lenda de Macunaíma e seus irmãos foi contada a Koch-Grünberg nas horas ociosas junto à fogueira, segundo relato do próprio antropólogo. Mayuluaípu, um índio Taulipáng de 28 anos, filho do mais famoso contador de lendas do alto Majaripi, tinha vivido por vários anos entre os brancos e dominava o português. Muitas das lendas incluídas no livro foram contadas por ele ao alemão, que se encarregou de traduzir para sua língua. A de Makunaíma (nome que significaria “o grande mau”) é a mais tresloucada.

Por sua indiscrição, nota o etnólogo alemão, Makunaíma – que viria a ser o “herói sem nenhum caráter” de Mário – se envolve com frequência em situações complicadas. É criativo, mas também um predador traiçoeiro nato. Violenta a mulher do irmão e, por meio de um feitiço, transporta sua casa para o topo de uma montanha. Segundo narrou Mayuluaípu a Koch-Grünberg, Makunaíma transformava peixes em pedras, arrancava cabeças a torto e a direito e acabou morando do outro lado do Roraima.

Antes mesmo de embarcar na aventura da expedição etnográfica que deu origem aos três livros da série Do Roraima ao Orinoco, Koch-Grünberg já tinha algum conhecimento das culturas das populações indígenas sul-americanas, pois fizera parte da segunda expedição de Hermann Meyer ao Brasil (1898 a 1900). Em sua segunda expedição etnográfica ao País, Koch-Grünberg, depois de pesquisar os grupos Makuxí e Taulipáng, cruzou a fronteira e foi estudar as comunidades indígenas Yekuaná e Guinaú, na Venezuela, mas não chegou a cumprir sua meta final, chegar às nascentes do Rio Orinoco, por falta de recursos – oportunidade que se anunciou com o engajamento do antropólogo na equipe do norte-americano Hamilton Rice na década de 1920. Koch-Grünberg, infelizmente, morreu no começo da viagem.

Mayuluaípu dita mitos dos Taulipángs ao antropólogo  Foto: Fotógrafo desconhecido/Editora Unesp

No primeiro volume, em que narra a expedição chefiada por ele, Koch-Grünberg nota que alguns indígenas, como os Wapischána, uma tribo Aruak de língua singular, já viviam em grupos dispersos. “Os Wapischána diminuíram muito em número, estão degenerados e desmoralizados sob a servidão dos brancos”, observou, concluindo ainda que gozavam de má fama “por causa de suas vigarices”. Parece familiar um século depois? É só ver o que aconteceu com indígenas de outras etnias, que viraram párias alcoolizados vagando pelas praças após contato com o branco.

Por vezes, o antropólogo fala de uma tribo de modo um tanto genérico, dizendo que “o índio tem uma acentuada disposição para o humor, para a zombaria”. Um chefe Taulipáng – foi o alemão quem descobriu o nome da tribo, antes chamada de Yarikúna – o atormentava, fazendo-o repetir palavras e frases corretamente, inclusive coisas picantes, que levavam os indígenas a soltar sonoras gargalhadas. Em contrapartida, eles ficavam desconfiados quando o alemão gravava suas vozes e canções no fonógrafo. Nem tanto quando fotografava. Koch-Grünberg diz que os indígenas reconheciam seus parentes até nos negativos e ficavam encantados com as chapas fotográficas do antropólogo.

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Ainda no primeiro volume, ele chega a sugerir que uma “dama muito resoluta”, durante uma festa com muita dança e bebida, chegou a se aproximar dele com segundas intenções. “Mas sou inflexível”, tratou de dizer, livrando-se do seu canto de sereia e uma bela confusão com o marido da beldade. Mas são poucos os comentários sobre o erotismo do antípoda. O antropólogo trata da vida sexual dos indígenas em outro volume, mas não resiste e conta o “barraco” armado por uma Wapischána ao descobrir que uma cozinheira mimava seu marido, a quem sempre servia chibé (bebida feita com farinha de mandioca).

Dois nativos do Rio Arapóris Foto: Linden-Museum de Stuttgart

No segundo volume, que traz a história de Makunaíma e seus irmãos, Koch-Grünberg busca uma correspondência analógica entre os mitos da criação dos indígenas e as histórias bíblicas do Velho Testamento, incluindo aí o dilúvio universal – e a grande enchente, segundo a narração do Taulipáng Mayuluaípu ao alemão, teria sido provocada pela teimosia de Makunaíma. Depois dela, quando ficou tudo seco, veio um grande fogo e Makunaíma, como um demiurgo, criou pessoas de cera que derretiam ao sol – só então o “herói sem nenhum caráter” considerou criar o homem do barro.

Uma das histórias mais engraçadas desse segundo volume, também narrada por Mayuluaípu, explica como os animais e os homens receberam o ânus, chamado de Pú'yito, que andava por aí soltando pum na cara dos bichos e das pessoas. Então, os bichos o perseguiram e o esquartejaram. A anta pediu um pedaço para ela (o maior, o que explica as dimensões de seu orifício anal). A rã pediu um pedaço e os papagaios o atiraram em suas costas (o que explica sua anatomia incômoda). Detalhe: antes disso, os homens evacuavam pela boca, segundo a lenda. Um pouco escatológica, mas uma curiosa metáfora.

O terceiro e último volume é o mais ambicioso, pois nele Koch-Grünberg relata o que aprendeu sobre a cultura material e espiritual de tribos do Brasil e da Venezuela. Quando o alemão chegou por aqui existiam algo entre 1 mil e 1.500 Taulipángs, que eram tão numerosos como os Makuxís. A varíola e outras epidemias levadas pelo homem branco trataram de dizimá-los. Essa é a principal lição que o antropólogo deixou para um Brasil que vê morrer os Yanomamis: respeitar as diferenças também é manter distância de uma cultura que não conseguimos absorver, sequer entender.

DO RORAIMA AO ORINOCO

Theodor Koch-Grünberg

Unesp/UEA

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Cristina Alberts-Franco

1.085 páginas, R$ 480

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