Salmo das dívidas
Ilka Brunhilde Laurito
Para Cecília e Drumond, poetas meus que jazem em cédulas
Não há lírios. Não há campos. Que posso olhar, Senhor, nesta aridez urbana, senão a lívida floração dos bancos? Eles vicejam em cada canto em que o clamor da moeda, mais que a voz do poeta, se alevanta.
Senhor, tenho valores: não se vendem(mas também não compram). O que farei com estes papéis sem conta onde os meus versos -- tão inoperantes! -- gratuitamente cantam?...
Senhor, estou em estado de cheque. Eu sei que deste a César. E o que era meu, a quem será que deste?... Longa é a distância entre o meu saldo médio e o horizonte de meus débitos. César, porque é César, vai em contínua romaria às argentárias catedrais suíças. Eu pouco avanço nestas provincianas e módicas poupanças, enquanto desfio o rosário das peregrinações cotidianas.
Partir?... Bem que eu queria, não fora tão caro hospedar exílios. E para o bem geral (e o mal de mim) eu digo ao povo que sou povo. E fico.
Não há mais lírios, Senhor, principalmente brancos. Mas há bancos, alvos bancos: E os teus campos?... Serão estes perversos campos onde a flor inodora do dinheiro nunca pode ser colhida pelas mãos do jardineiro?... onde o ouro encacheado em espigas foge ao lavrador que semeou o trigo? onde o pão-ágio de cada dia quem amassa é o diabo que estufa a cotação inflávelda farinha?...
Senhor, teu pai nosso de hoje já não perdoa os devedores. Quem me perdoa, então, se a oração é a mesma, mas a letra é outra?... Ah! um novo sermão da montanha -- no topo de um ararat arquitetônico -- a esta legião de mal-aventurados que escalam o cume do cansaço sobre o chão escarpadodo trabalho! AH!...
(Férias perenes na estação da morte?... Céus de glória?...) Senhor! Nada de salários póstumos nem de postergados prêmios. Senhor, atende-me: venha a nós o nosso reino.
(Originalmente publicado no suplemento Cultura de O Estado de S.Paulo em 13/7/1991)
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