Bafejado pelas recentes pesquisas na área da literatura gay ou queer, o antigo leitor de Em Busca do Tempo Perdido foi convidado a avaliar - com interesse crítico semelhante ao dispensado ao primeiro volume da obra, publicado antes da 1.ª Grande Guerra - a perspectiva aberta. O filme O Tempo Redescoberto, de Raoul Ruiz, exibe a imagem da leitura alternativa. A tela se abre para o espectador por tomada panorâmica em que, sobre a mesa, repousam manuscritos compostos à maneira de ininteligível colcha de retalhos. Acamado e à beira da morte, Proust dita à fiel Celeste algumas linhas, que logo serão corrigidas por ele. Como o crítico Feuillerat na década de 1930, Ruiz filma o romance pelo seu lado de dentro. Ao contrário de Feuillerat, concede primazia aos personagens que vivem o erotismo à flor da pele, como o barão de Charlus (John Malkovich) e Albertine (Chiara Mastroianni).
Dentro dos estudos de gênero (gender, em inglês) que abordam a temática lésbica, há acentuado interesse pela literatura escrita por, entre outras, Gertrude Stein e Virginia Woolf. O volume Sodoma e Gomorra, de Proust, era uma pedra no meio do caminho. Em crítica literária, a visibilidade lésbica negligenciara um aspecto importante da história das relações entre mulheres: a representação do homoerotismo feminino nos textos de autores masculinos. Para sanar a "negligência" na bibliografia crítica, a professora Elisabeth Ladenson (Columbia University) escreve Proust’s Lesbianism, ensaio que passou batido entre nós. No entanto, sua tradução ao francês traz prefácio de Antoine Compagnon, aclamado especialista em Proust e emérito professor no Collège de France. Previne Compagnon: o ensaio não deixará de perturbar (troubler) os proustianos franceses. Em seguida, afiança que também os convencerá da acuidade e da qualidade crítica da leitura de Ladenson.
As cidades emblemáticas de Sodoma e de Gomorra são objeto da curiosidade de Marcel, narrador de Em Busca do Tempo Perdido. A dissimetria entre elas - e não sua simetria bíblica - parte dum ponto comum: o voyeurismo do narrador. Ao mesmo tempo em que ele representa a homossexualidade masculina (Sodoma) como se em "salão transparente" (a expressão descreve o bordel de Maineville, frequentado por Charlus e Morel) e a dá como "segredo conhecido de todos", ergue barreira concreta (a cortina que baixa) e textual que cerceia a representação da homossexualidade feminina (Gomorra). A senhorita Vinteuil e sua amiga acreditam que "serem vistas acrescenta perversidade ao prazer" e, por isso, interditam o voyeurismo do narrador. Amam-se em segredo. Marcel sofre pela proibição, que lhe causa angústia. Não pode ver o casal amar, não pode descrever "a palpitação específica do prazer feminino", entrevista por ele apenas na "dança de seios contra seios" de Albertine e Andrée.
Segundo Ladenson, a dissimetria entre Sodoma e Gomorra se afiança pelo segredo a ocultar - ou não - o prazer sexual entre semelhantes. No texto de Proust, a cidade das mulheres "é a versão única de uma sexualidade capaz de guardar o controle de sua própria representação". Ao interditar o olhar de Marcel, a lésbica escapa ao modelo fálico. No entanto, o falocentrismo domina a cidade dos homens, cujo vocabulário não toca o lesbianismo proustiano. Domina ainda a inversão: busca-se um homem-homem, depara-se com um homem-mulher. Domina também as representações pornográficas (v. os filmes do canal GNT à meia-noite) do lesbianismo. Nestas, o prazer entre mulheres se representa para a lascívia masculina. A modelagem das cenas é direcionada pelo desejo fálico.
No romance Em Busca do Tempo Perdido, o lesbianismo é, segundo Ladenson, pedra de toque a avaliar a verdade do desejo do semelhante pelo semelhante. Não há inversões, não há modelagens fálicas e, assim sendo, a cidade das mulheres é "modelo único do desejo recíproco". Pela narrativa não-falocêntrica de Gomorra, vaga "o impossível fantasma do desejo recíproco". Esclarece a ensaísta: "começaremos a compreender o lugar da feminilidade e, portanto, da sexualidade em geral, se considerarmos os personagens lésbicos como estão descritos na obra de Proust". Por outro lado, acrescenta ela, o modo como o lesbianismo é representado nos textos dos demais autores masculinos só serve para nos dizer como se constroem, na cultura atual do Ocidente, os "estereótipos" de masculinidade e de feminilidade.
A mulher não é, pois, definida por uma "falta" (lack), como acreditava Freud. É antes dotada de "plenitude autossuficiente". Na economia sexual de Em Busca do Tempo Perdido, o sodomita, por ter sido representado em transparência e pela figura da inversão, acaba por afundar-se e se reconhecer na dramatização heterossexual do desejo e do amor. Por estar fora do ponto de visão de Marcel (narrador do romance, insista-se), o lesbianismo representa, na qualidade de "ponto cego epistemológico", a verdade da homossexualidade. O romance Em Busca do Tempo Perdido modela-se por uma "sensibilidade erótica fundada numa estética da mesmice (sameness), cujo modelo único é o do desejo recíproco".