Bolsonaro, Pujol, o Exército e a lembrança de 1964


A polarização da sociedade durante a eleição deve conhecer uma nova batalha em torno de como governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março: golpe de Estado ou uma contrarrevolução?

Por Marcelo Godoy

Caro leitor,

A polarização da sociedade durante a eleição de Jair Bolsonaro retratada pelo jornal deve conhecer uma nova batalha nos próximos dias. Ela se dará em torno de como o governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março e em 1.º de abril de 1964 (leia aqui o especial que o Estado fez nos 50 anos da data). O comandante do Exército, o general Edson Pujol, afirmou aos seus subordinados que qualquer orientação sobre como tratar o fato deve partir do escalão superior, neste caso, o Ministério da Defesa. Se ela faltar, a ordem é manter o padrão dos anos anteriores. Não haverá manifestação do Alto-Comando ou de quem quer que seja na Força. Para o Exército, não há nada de novo que justifique uma mudança daquilo que a instituição faz há muito tempo. A data – um evento histórico, alegam os generais - nunca foi esquecida nas unidades militares. Exemplo disso é o nome da biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme, responsável por formar os futuros oficiais generais: Biblioteca 31 de Março.

O que há de diferente neste ano é a pessoa que ocupa a Presidência da República. Ou seja, Jair Bolsonaro. “O Exército como instituição não vai tapar os olhos para o fato histórico. Dentro do ambiente militar, a percepção sobre 1964 é muito diferente daquela existente, por exemplo, no PSOL”, afirmou um general ao Estado. No Comando do Exército se espera uma manifestação comedida e equilibrada. Não se pretende substituir a visão que “prevaleceu até dois anos atrás”, que tratava como heróis os “falsos defensores da democracia”, por uma visão laudatória. “A minha perspectiva é de que o pêndulo se mova em direção a um ponto de equilíbrio, o que não significa excluir críticas ao 31 de Março”, disse o general. O Exército aguarda a diretriz do ministro e este, por sua vez, a do presidente.

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O presidente Jair Bolsonaro ao lado do general Edson Pujol (à esq.) durante passagem do comando doExército, em janeiro Foto: Marcos Corrêa/PR

O historiador francês Marc Bloch dizia que o passado era, por definição, “um dado que coisa alguma podia modificar”. Era nele que se devia capturar o homem, ou melhor, os homens, o verdadeiro objeto da história. O homem em seu tempo e espaço. Mas, se os fatos não mudam, sua interpretação depende do conhecimento acumulado que, a partir de condições históricas transformadoras, permite o desenvolvimento de perspectivas diferentes a cada geração. Colega de ofício de Bloch, Jacques Le Goff acreditava que a obra de um historiador não sobreviveria por mais de 50 anos (veja aqui sua entrevista ao Estado). Em Memória e História, Le Goff analisa o que há por trás das visões em torno do passado. “Tornar-se senhor da memória ou do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, grupos e indivíduos que dominam e dominaram as sociedades históricas.”

Essa é a disputa que Bolsonaro quer reabrir sobre 1964. A começar pela definição do que houve há 55 anos: um golpe de Estado, uma contrarrevolução, um atentado à democracia ou a afirmação desta diante da ameaça comunista? Nos últimos 30 anos, os governos não tiveram dúvidas sobre o que se passara. A maioria deles na Nova República não hesitou em usar a clássica definição de coup d’état para classificar a ação de civis e militares que derrubou o governo de João Goulart. Trata-se de “um ato realizado por órgãos do próprio Estado” - segundo diz o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio -, levado a cabo por grupos militares ou pelas Forças Armadas como um todo, que pode ou não vir acompanhado de mobilização social. Sua consequência mais comum é a simples mudança da liderança política e, habitualmente, ele é seguido pelo reforço da máquina burocrática e policial e pela dissolução de partidos políticos. O caso brasileiro parece, portanto, encaixar-se na definição da ciência política para golpe de Estado.

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Durante esses anos todos, Jair Bolsonaro demonstrou ter uma leitura diferente. Negava até a existência de uma ditadura no período, coisa que a cúpula do regime nunca refutou, pelo menos desde a promulgação do AI-5 – basta ouvir a gravação da reunião presidencial que decidiu pela adoção do ato institucional. “Às favas com a consciência”, disse o então ministro Jarbas Passarinho, um dos participantes da reunião. Depois, soltava rojões no 31 de Março, enquanto os governos da Nova República determinavam aos quartéis reserva e comedimento na lembrança do fato histórico.

Em 1996, um outro oficial da reserva se manifestou sobre a data. Dizia querer “reequilibrar uma versão da história que só contemplava a visão dos vencidos em 1964”. Era o general Antonio Carlos de Andrada Serpa. Para ele, os militares erraram ao não publicar “um livro verde e amarelo, explicando como esses mesmos esquerdistas que hoje nos governam levaram uma pequena fração da mocidade brasileira ao terrorismo, ao roubo, assaltos, sequestros e justiçamentos”. Serpa prosseguia em seu documento fazendo a crítica dos órgãos de repressão, dizendo: “Como sempre, houve excessos criminosos: caso Rubens Paiva, Herzog, Fiel Filho e outros.

O presidente Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante do 2.º Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, traído por maus auxiliares”. Para Serpa, Geisel teria sido obediente ao “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)".

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O general concluiu então o documento lembrando o exemplo de Caxias. “Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’. Reconhecer o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”, concluiu o general. Para seus colegas de hoje, é “o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Resta saber se Bolsonaro vai mandar ao Ministério da Defesa que cumpra essa tradição ou que inaugure outra, a do conflito, em vez do equilíbrio desejado pelos militares. Vale lembrar que o 31 de Março deste ano cai em um domingo, dia em que Bolsonaro costuma ficar sozinho com o celular e o Twitter à sua disposição.

Leia nas Supercolunas:

Caro leitor,

A polarização da sociedade durante a eleição de Jair Bolsonaro retratada pelo jornal deve conhecer uma nova batalha nos próximos dias. Ela se dará em torno de como o governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março e em 1.º de abril de 1964 (leia aqui o especial que o Estado fez nos 50 anos da data). O comandante do Exército, o general Edson Pujol, afirmou aos seus subordinados que qualquer orientação sobre como tratar o fato deve partir do escalão superior, neste caso, o Ministério da Defesa. Se ela faltar, a ordem é manter o padrão dos anos anteriores. Não haverá manifestação do Alto-Comando ou de quem quer que seja na Força. Para o Exército, não há nada de novo que justifique uma mudança daquilo que a instituição faz há muito tempo. A data – um evento histórico, alegam os generais - nunca foi esquecida nas unidades militares. Exemplo disso é o nome da biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme, responsável por formar os futuros oficiais generais: Biblioteca 31 de Março.

O que há de diferente neste ano é a pessoa que ocupa a Presidência da República. Ou seja, Jair Bolsonaro. “O Exército como instituição não vai tapar os olhos para o fato histórico. Dentro do ambiente militar, a percepção sobre 1964 é muito diferente daquela existente, por exemplo, no PSOL”, afirmou um general ao Estado. No Comando do Exército se espera uma manifestação comedida e equilibrada. Não se pretende substituir a visão que “prevaleceu até dois anos atrás”, que tratava como heróis os “falsos defensores da democracia”, por uma visão laudatória. “A minha perspectiva é de que o pêndulo se mova em direção a um ponto de equilíbrio, o que não significa excluir críticas ao 31 de Março”, disse o general. O Exército aguarda a diretriz do ministro e este, por sua vez, a do presidente.

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do general Edson Pujol (à esq.) durante passagem do comando doExército, em janeiro Foto: Marcos Corrêa/PR

O historiador francês Marc Bloch dizia que o passado era, por definição, “um dado que coisa alguma podia modificar”. Era nele que se devia capturar o homem, ou melhor, os homens, o verdadeiro objeto da história. O homem em seu tempo e espaço. Mas, se os fatos não mudam, sua interpretação depende do conhecimento acumulado que, a partir de condições históricas transformadoras, permite o desenvolvimento de perspectivas diferentes a cada geração. Colega de ofício de Bloch, Jacques Le Goff acreditava que a obra de um historiador não sobreviveria por mais de 50 anos (veja aqui sua entrevista ao Estado). Em Memória e História, Le Goff analisa o que há por trás das visões em torno do passado. “Tornar-se senhor da memória ou do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, grupos e indivíduos que dominam e dominaram as sociedades históricas.”

Essa é a disputa que Bolsonaro quer reabrir sobre 1964. A começar pela definição do que houve há 55 anos: um golpe de Estado, uma contrarrevolução, um atentado à democracia ou a afirmação desta diante da ameaça comunista? Nos últimos 30 anos, os governos não tiveram dúvidas sobre o que se passara. A maioria deles na Nova República não hesitou em usar a clássica definição de coup d’état para classificar a ação de civis e militares que derrubou o governo de João Goulart. Trata-se de “um ato realizado por órgãos do próprio Estado” - segundo diz o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio -, levado a cabo por grupos militares ou pelas Forças Armadas como um todo, que pode ou não vir acompanhado de mobilização social. Sua consequência mais comum é a simples mudança da liderança política e, habitualmente, ele é seguido pelo reforço da máquina burocrática e policial e pela dissolução de partidos políticos. O caso brasileiro parece, portanto, encaixar-se na definição da ciência política para golpe de Estado.

Durante esses anos todos, Jair Bolsonaro demonstrou ter uma leitura diferente. Negava até a existência de uma ditadura no período, coisa que a cúpula do regime nunca refutou, pelo menos desde a promulgação do AI-5 – basta ouvir a gravação da reunião presidencial que decidiu pela adoção do ato institucional. “Às favas com a consciência”, disse o então ministro Jarbas Passarinho, um dos participantes da reunião. Depois, soltava rojões no 31 de Março, enquanto os governos da Nova República determinavam aos quartéis reserva e comedimento na lembrança do fato histórico.

Em 1996, um outro oficial da reserva se manifestou sobre a data. Dizia querer “reequilibrar uma versão da história que só contemplava a visão dos vencidos em 1964”. Era o general Antonio Carlos de Andrada Serpa. Para ele, os militares erraram ao não publicar “um livro verde e amarelo, explicando como esses mesmos esquerdistas que hoje nos governam levaram uma pequena fração da mocidade brasileira ao terrorismo, ao roubo, assaltos, sequestros e justiçamentos”. Serpa prosseguia em seu documento fazendo a crítica dos órgãos de repressão, dizendo: “Como sempre, houve excessos criminosos: caso Rubens Paiva, Herzog, Fiel Filho e outros.

O presidente Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante do 2.º Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, traído por maus auxiliares”. Para Serpa, Geisel teria sido obediente ao “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)".

O general concluiu então o documento lembrando o exemplo de Caxias. “Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’. Reconhecer o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”, concluiu o general. Para seus colegas de hoje, é “o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Resta saber se Bolsonaro vai mandar ao Ministério da Defesa que cumpra essa tradição ou que inaugure outra, a do conflito, em vez do equilíbrio desejado pelos militares. Vale lembrar que o 31 de Março deste ano cai em um domingo, dia em que Bolsonaro costuma ficar sozinho com o celular e o Twitter à sua disposição.

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Caro leitor,

A polarização da sociedade durante a eleição de Jair Bolsonaro retratada pelo jornal deve conhecer uma nova batalha nos próximos dias. Ela se dará em torno de como o governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março e em 1.º de abril de 1964 (leia aqui o especial que o Estado fez nos 50 anos da data). O comandante do Exército, o general Edson Pujol, afirmou aos seus subordinados que qualquer orientação sobre como tratar o fato deve partir do escalão superior, neste caso, o Ministério da Defesa. Se ela faltar, a ordem é manter o padrão dos anos anteriores. Não haverá manifestação do Alto-Comando ou de quem quer que seja na Força. Para o Exército, não há nada de novo que justifique uma mudança daquilo que a instituição faz há muito tempo. A data – um evento histórico, alegam os generais - nunca foi esquecida nas unidades militares. Exemplo disso é o nome da biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme, responsável por formar os futuros oficiais generais: Biblioteca 31 de Março.

O que há de diferente neste ano é a pessoa que ocupa a Presidência da República. Ou seja, Jair Bolsonaro. “O Exército como instituição não vai tapar os olhos para o fato histórico. Dentro do ambiente militar, a percepção sobre 1964 é muito diferente daquela existente, por exemplo, no PSOL”, afirmou um general ao Estado. No Comando do Exército se espera uma manifestação comedida e equilibrada. Não se pretende substituir a visão que “prevaleceu até dois anos atrás”, que tratava como heróis os “falsos defensores da democracia”, por uma visão laudatória. “A minha perspectiva é de que o pêndulo se mova em direção a um ponto de equilíbrio, o que não significa excluir críticas ao 31 de Março”, disse o general. O Exército aguarda a diretriz do ministro e este, por sua vez, a do presidente.

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do general Edson Pujol (à esq.) durante passagem do comando doExército, em janeiro Foto: Marcos Corrêa/PR

O historiador francês Marc Bloch dizia que o passado era, por definição, “um dado que coisa alguma podia modificar”. Era nele que se devia capturar o homem, ou melhor, os homens, o verdadeiro objeto da história. O homem em seu tempo e espaço. Mas, se os fatos não mudam, sua interpretação depende do conhecimento acumulado que, a partir de condições históricas transformadoras, permite o desenvolvimento de perspectivas diferentes a cada geração. Colega de ofício de Bloch, Jacques Le Goff acreditava que a obra de um historiador não sobreviveria por mais de 50 anos (veja aqui sua entrevista ao Estado). Em Memória e História, Le Goff analisa o que há por trás das visões em torno do passado. “Tornar-se senhor da memória ou do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, grupos e indivíduos que dominam e dominaram as sociedades históricas.”

Essa é a disputa que Bolsonaro quer reabrir sobre 1964. A começar pela definição do que houve há 55 anos: um golpe de Estado, uma contrarrevolução, um atentado à democracia ou a afirmação desta diante da ameaça comunista? Nos últimos 30 anos, os governos não tiveram dúvidas sobre o que se passara. A maioria deles na Nova República não hesitou em usar a clássica definição de coup d’état para classificar a ação de civis e militares que derrubou o governo de João Goulart. Trata-se de “um ato realizado por órgãos do próprio Estado” - segundo diz o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio -, levado a cabo por grupos militares ou pelas Forças Armadas como um todo, que pode ou não vir acompanhado de mobilização social. Sua consequência mais comum é a simples mudança da liderança política e, habitualmente, ele é seguido pelo reforço da máquina burocrática e policial e pela dissolução de partidos políticos. O caso brasileiro parece, portanto, encaixar-se na definição da ciência política para golpe de Estado.

Durante esses anos todos, Jair Bolsonaro demonstrou ter uma leitura diferente. Negava até a existência de uma ditadura no período, coisa que a cúpula do regime nunca refutou, pelo menos desde a promulgação do AI-5 – basta ouvir a gravação da reunião presidencial que decidiu pela adoção do ato institucional. “Às favas com a consciência”, disse o então ministro Jarbas Passarinho, um dos participantes da reunião. Depois, soltava rojões no 31 de Março, enquanto os governos da Nova República determinavam aos quartéis reserva e comedimento na lembrança do fato histórico.

Em 1996, um outro oficial da reserva se manifestou sobre a data. Dizia querer “reequilibrar uma versão da história que só contemplava a visão dos vencidos em 1964”. Era o general Antonio Carlos de Andrada Serpa. Para ele, os militares erraram ao não publicar “um livro verde e amarelo, explicando como esses mesmos esquerdistas que hoje nos governam levaram uma pequena fração da mocidade brasileira ao terrorismo, ao roubo, assaltos, sequestros e justiçamentos”. Serpa prosseguia em seu documento fazendo a crítica dos órgãos de repressão, dizendo: “Como sempre, houve excessos criminosos: caso Rubens Paiva, Herzog, Fiel Filho e outros.

O presidente Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante do 2.º Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, traído por maus auxiliares”. Para Serpa, Geisel teria sido obediente ao “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)".

O general concluiu então o documento lembrando o exemplo de Caxias. “Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’. Reconhecer o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”, concluiu o general. Para seus colegas de hoje, é “o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Resta saber se Bolsonaro vai mandar ao Ministério da Defesa que cumpra essa tradição ou que inaugure outra, a do conflito, em vez do equilíbrio desejado pelos militares. Vale lembrar que o 31 de Março deste ano cai em um domingo, dia em que Bolsonaro costuma ficar sozinho com o celular e o Twitter à sua disposição.

Leia nas Supercolunas:

Caro leitor,

A polarização da sociedade durante a eleição de Jair Bolsonaro retratada pelo jornal deve conhecer uma nova batalha nos próximos dias. Ela se dará em torno de como o governo lembrará os fatos acontecidos em 31 de março e em 1.º de abril de 1964 (leia aqui o especial que o Estado fez nos 50 anos da data). O comandante do Exército, o general Edson Pujol, afirmou aos seus subordinados que qualquer orientação sobre como tratar o fato deve partir do escalão superior, neste caso, o Ministério da Defesa. Se ela faltar, a ordem é manter o padrão dos anos anteriores. Não haverá manifestação do Alto-Comando ou de quem quer que seja na Força. Para o Exército, não há nada de novo que justifique uma mudança daquilo que a instituição faz há muito tempo. A data – um evento histórico, alegam os generais - nunca foi esquecida nas unidades militares. Exemplo disso é o nome da biblioteca da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, a Eceme, responsável por formar os futuros oficiais generais: Biblioteca 31 de Março.

O que há de diferente neste ano é a pessoa que ocupa a Presidência da República. Ou seja, Jair Bolsonaro. “O Exército como instituição não vai tapar os olhos para o fato histórico. Dentro do ambiente militar, a percepção sobre 1964 é muito diferente daquela existente, por exemplo, no PSOL”, afirmou um general ao Estado. No Comando do Exército se espera uma manifestação comedida e equilibrada. Não se pretende substituir a visão que “prevaleceu até dois anos atrás”, que tratava como heróis os “falsos defensores da democracia”, por uma visão laudatória. “A minha perspectiva é de que o pêndulo se mova em direção a um ponto de equilíbrio, o que não significa excluir críticas ao 31 de Março”, disse o general. O Exército aguarda a diretriz do ministro e este, por sua vez, a do presidente.

O presidente Jair Bolsonaro ao lado do general Edson Pujol (à esq.) durante passagem do comando doExército, em janeiro Foto: Marcos Corrêa/PR

O historiador francês Marc Bloch dizia que o passado era, por definição, “um dado que coisa alguma podia modificar”. Era nele que se devia capturar o homem, ou melhor, os homens, o verdadeiro objeto da história. O homem em seu tempo e espaço. Mas, se os fatos não mudam, sua interpretação depende do conhecimento acumulado que, a partir de condições históricas transformadoras, permite o desenvolvimento de perspectivas diferentes a cada geração. Colega de ofício de Bloch, Jacques Le Goff acreditava que a obra de um historiador não sobreviveria por mais de 50 anos (veja aqui sua entrevista ao Estado). Em Memória e História, Le Goff analisa o que há por trás das visões em torno do passado. “Tornar-se senhor da memória ou do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, grupos e indivíduos que dominam e dominaram as sociedades históricas.”

Essa é a disputa que Bolsonaro quer reabrir sobre 1964. A começar pela definição do que houve há 55 anos: um golpe de Estado, uma contrarrevolução, um atentado à democracia ou a afirmação desta diante da ameaça comunista? Nos últimos 30 anos, os governos não tiveram dúvidas sobre o que se passara. A maioria deles na Nova República não hesitou em usar a clássica definição de coup d’état para classificar a ação de civis e militares que derrubou o governo de João Goulart. Trata-se de “um ato realizado por órgãos do próprio Estado” - segundo diz o Dicionário de Política, organizado por Norberto Bobbio -, levado a cabo por grupos militares ou pelas Forças Armadas como um todo, que pode ou não vir acompanhado de mobilização social. Sua consequência mais comum é a simples mudança da liderança política e, habitualmente, ele é seguido pelo reforço da máquina burocrática e policial e pela dissolução de partidos políticos. O caso brasileiro parece, portanto, encaixar-se na definição da ciência política para golpe de Estado.

Durante esses anos todos, Jair Bolsonaro demonstrou ter uma leitura diferente. Negava até a existência de uma ditadura no período, coisa que a cúpula do regime nunca refutou, pelo menos desde a promulgação do AI-5 – basta ouvir a gravação da reunião presidencial que decidiu pela adoção do ato institucional. “Às favas com a consciência”, disse o então ministro Jarbas Passarinho, um dos participantes da reunião. Depois, soltava rojões no 31 de Março, enquanto os governos da Nova República determinavam aos quartéis reserva e comedimento na lembrança do fato histórico.

Em 1996, um outro oficial da reserva se manifestou sobre a data. Dizia querer “reequilibrar uma versão da história que só contemplava a visão dos vencidos em 1964”. Era o general Antonio Carlos de Andrada Serpa. Para ele, os militares erraram ao não publicar “um livro verde e amarelo, explicando como esses mesmos esquerdistas que hoje nos governam levaram uma pequena fração da mocidade brasileira ao terrorismo, ao roubo, assaltos, sequestros e justiçamentos”. Serpa prosseguia em seu documento fazendo a crítica dos órgãos de repressão, dizendo: “Como sempre, houve excessos criminosos: caso Rubens Paiva, Herzog, Fiel Filho e outros.

O presidente Geisel puniu os abusos ao demitir o comandante do 2.º Exército, general Ednardo D'Ávila Mello, traído por maus auxiliares”. Para Serpa, Geisel teria sido obediente ao “princípio militar de que o chefe é responsável por tudo o que fizer ou deixar de fazer (C 101-5, Estado-Maior e Ordens)".

O general concluiu então o documento lembrando o exemplo de Caxias. “Quando solicitado a comemorar a vitória sobre os farrapos, em 1845, (Caxias) respondeu: ‘Não, antes rezemos um Te Deum pelas almas dos imperiais e farroupilhas, pois eram brasileiros’. Reconhecer o idealismo equivocado dos terroristas e os excessos da repressão será um convite à verdadeira Anistia e Justiça”, concluiu o general. Para seus colegas de hoje, é “o espírito de Caxias que deve prevalecer, pois essa é a tradição do Exército”. Resta saber se Bolsonaro vai mandar ao Ministério da Defesa que cumpra essa tradição ou que inaugure outra, a do conflito, em vez do equilíbrio desejado pelos militares. Vale lembrar que o 31 de Março deste ano cai em um domingo, dia em que Bolsonaro costuma ficar sozinho com o celular e o Twitter à sua disposição.

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