Legado infame (e meu espião)


Colunista fala sobre livro que conta a história da agência de inteligência americana.

Por Lucas Mendes

Durante 20 anos Tim Weiner, do New York Times, "espionou" os espiões e se tornou o jornalista americano mais bem informado sobre a CIA. A primeira conexão dele foi antes de embarcar para o Afeganistão. Ligou para a CIA e pediu um "briefing" - informações - sobre o país recém-invadido pela União Soviética. Era um serviço de rotina da agência. "Negativo", foi a resposta. Os briefings estão suspensos. Tim Weiner passou três meses no Afeganistão e, menos de 24 horas depois de aterrissar em Washington, recebeu uma chamada da CIA. Queriam um briefing dele. Os americanos estavam mandando armas e dinheiro para os guerrilheiros - mujahedins, talebãs, Al-Qaeda e companhia - mas não sabiam nada sobre os grupos e o Afeganistão. Queriam informações de Tim Weiner. Quando entrou no prédio da CIA, sentiu uma atração irresistível. Tinha encontrado uma missão. Semana passada entrevistei Tim Weiner, autor de Legacy of Ashes (Legado de Cinzas), a história da CIA, o documento mais completo - e mais devastador - sobre a agência americana de espionagem. Deve ser lançado em breve no Brasil. No livro de 800 páginas não há uma fonte anônima, e as transcrições são de memos e documentos oficiais. O título vem de uma frase do presidente Eisenhower já no final do mandato, decepcionado com a CIA: por causa da agência, disse, ia deixar ao sucessor, John Kennedy, um "legado de cinzas". Kennedy era fã do agente 007, devorava os livros de Ian Fleming, mas o fracasso da invasão da Baía dos Porcos destruiu a confiança dele na CIA. E ficou mais desencantado quando a agência apresentou a ele a versão americana do 007: era um gordo com uma bunda de pêra que tomava martinis duplos e ficava inútil depois do almoço. Depois do fracassso da invasão de Cuba, sempre tratou a CIA com desprezo e distância, como a maioria dos presidentes que vieram depois dele. Tim Weiner diz que a CIA, com raras exceções, foi incompetente justamente na espionagem. Sabia contar mísseis e armas soviéticas mas, a pedido do presidente americano, estes números eram exagerados para assombrar o Congresso e o público americano. Graças ao medo, os orçamentos do Pentágono, da CIA e outras agências de espionagem sempre engordavam. No currículo da CIA os dois maiores sucessos foram as operações Ajax, para depor o pesidente do Irã em 53, e a Operação Sucesso, para depor o presidente da Guatemala em 64. O Irã deu no que deu e, na Guatemala, a ditadura militar que assumiu depois do golpe matou mais de 200 mil e até o hoje o país continua torto. E por que a esquerda e também a direita sempre acharam que a CIA estava por trás de tudo que acontecia no mundo? Relações públicas. Sempre foram geniais no marketing, e a imprensa durante muito tempo foi conivente com a CIA. Durante os primeiros anos da Guerra Fria, na década de 50, algumas potências da mídia, entre elas o grupo Time, emprestaram seus correspondentes e suas informações para a CIA. Apesar da fama de competente e bem sucedida, os fracassos cobrem quase todas as 800 páginas do livro: a CIA não antecipou a explosão da bomba atômica soviética em 49, nem a invasão da Coréia do Sul em 1950, nem as rebeliões populares na Europa Oriental da década de 50, a instalação dos mísseis soviéticos em Cuba em 62, a guerra entre árabes e Israel em 73, a invasão soviética do Afeganistão em 79, o colapso da União Soviética, a invasão do Kuwait pelo Iraque em 90, a explosão da bomba atômica indiana em 98. A lista é muito mais longa até chegar nos grandes fracassos mais recentes: não impediu o 11 de setembro e cometeu erros imperdoáveis sobre a existência de armas de destruição de massa no Iraque. Depois vieram as manchas das torturas em Abu Ghraib, Guantánamo e prisões secretas. - Por que tanta incompetência? - Porque a CIA não entende as culturas dos outros, não fala as línguas e acha que podemos compensar estas fraquezas com tecnologia. Um império precisa ser bem informado. A função da agência de espionagem é espionar, e não planejar golpes ou torturar. A maioria dos agentes sabem disto. Mais importante, os presidentes americanos, com raras exceções como o primeiro Bush, ex-diretor da CIA, nunca souberam como usar a CIA. O Brasil merece apenas duas páginas no calhamaço de Tim Weiner. Quando John Kennedy mandou instalar o sistema de gravação na Casa Branca, sua primeira conversa com o embaixador Lincoln Gordon. Queria saber como andavam as manobras dos militares brasileiros para derrubar Jango. A CIA não merece o crédito. PS: Meu espião Na década de 60, em Belo Horizonte, eramos maleteiros. Estudantes, intelectuais, artistas, políticos e bêbados que freqüentavam os bares e restaurantes do recém-inaugurado conjunto Anchangelo Maleta, na rua da Bahia, artéria tradicional da boemia de BH. No segundo andar ficava o Sagarana, um bar freqüentado por esquerdistas e direitistas, mas não havia ainda militância armada. Um músico tímido chamado Milton Nascimento, mais conhecido como Bituca, fazia esforço para ser ouvido naquele bate-boca político-existencial. Fernando Gabeira aparecia com freqüência e ficava numa mesa do fundo. Foi lá que recebi dele meu primeiro convite para trabalhar em jornal, o Correio de Minas. Aceitei e durou um dia. O dono do Sagarana, o advogado João Batista, ultraconservador, era um generoso anfitrião, liberal nos créditos. Entre os freqüentadores havia um gringo alto, boa pinta, desengonçado chamado Lawrance Laser. Como trabalhava no consulado americano, foi apelidado de Espião. Nosso homem na CIA, era o deboche. Quando o Sagarana fechava, nosso grupo, inclusive o Espião, ia paquerar as moças que tinham terminado o trabalho nos bordéis e esticavam a noite no dancing Almanara. Depois saíamos com elas pela madrugada adentro. Poucos anos mais tarde, ele servia no Rio, descobri que o Espião era mesmo espião da CIA. Ele nunca admitiu, mas eu trabalhava na Fatos e Fotos, marcamos um almoço no Centro. Ele me disse que o embaixador americano quicava de ódio quando os estudantes quebravam as janelas da embaixada. Eram caríssimas. Este era o grande problema dele. Queria saber quando os estudantes iam protestar na frente da embaixada. Nossa redação tinha bons contatos com Vladimir Palmeira e outros líderes estudantis. Disse ao Espião que encaminharia o pedido dele aos estudantes, mas em troca de não quebrar as janelas da embaixada ele usaria o prestígio da CIA para impedir que o maluco do Coronel Bournier usasse aviões da Força Aérea Brasileira para lançar estudantes e líderes sindicais no mar. Conversa de bêbados martinizados em puteiro. O Espião também serviu em Brasília. Quando vim para os Estados Unidos, consegui o endereço e fui visitá-lo na Flórida, à mineira, sem aviso. Fugiu de mim como o diabo da cruz. Por onde anda o Espião? BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

Durante 20 anos Tim Weiner, do New York Times, "espionou" os espiões e se tornou o jornalista americano mais bem informado sobre a CIA. A primeira conexão dele foi antes de embarcar para o Afeganistão. Ligou para a CIA e pediu um "briefing" - informações - sobre o país recém-invadido pela União Soviética. Era um serviço de rotina da agência. "Negativo", foi a resposta. Os briefings estão suspensos. Tim Weiner passou três meses no Afeganistão e, menos de 24 horas depois de aterrissar em Washington, recebeu uma chamada da CIA. Queriam um briefing dele. Os americanos estavam mandando armas e dinheiro para os guerrilheiros - mujahedins, talebãs, Al-Qaeda e companhia - mas não sabiam nada sobre os grupos e o Afeganistão. Queriam informações de Tim Weiner. Quando entrou no prédio da CIA, sentiu uma atração irresistível. Tinha encontrado uma missão. Semana passada entrevistei Tim Weiner, autor de Legacy of Ashes (Legado de Cinzas), a história da CIA, o documento mais completo - e mais devastador - sobre a agência americana de espionagem. Deve ser lançado em breve no Brasil. No livro de 800 páginas não há uma fonte anônima, e as transcrições são de memos e documentos oficiais. O título vem de uma frase do presidente Eisenhower já no final do mandato, decepcionado com a CIA: por causa da agência, disse, ia deixar ao sucessor, John Kennedy, um "legado de cinzas". Kennedy era fã do agente 007, devorava os livros de Ian Fleming, mas o fracasso da invasão da Baía dos Porcos destruiu a confiança dele na CIA. E ficou mais desencantado quando a agência apresentou a ele a versão americana do 007: era um gordo com uma bunda de pêra que tomava martinis duplos e ficava inútil depois do almoço. Depois do fracassso da invasão de Cuba, sempre tratou a CIA com desprezo e distância, como a maioria dos presidentes que vieram depois dele. Tim Weiner diz que a CIA, com raras exceções, foi incompetente justamente na espionagem. Sabia contar mísseis e armas soviéticas mas, a pedido do presidente americano, estes números eram exagerados para assombrar o Congresso e o público americano. Graças ao medo, os orçamentos do Pentágono, da CIA e outras agências de espionagem sempre engordavam. No currículo da CIA os dois maiores sucessos foram as operações Ajax, para depor o pesidente do Irã em 53, e a Operação Sucesso, para depor o presidente da Guatemala em 64. O Irã deu no que deu e, na Guatemala, a ditadura militar que assumiu depois do golpe matou mais de 200 mil e até o hoje o país continua torto. E por que a esquerda e também a direita sempre acharam que a CIA estava por trás de tudo que acontecia no mundo? Relações públicas. Sempre foram geniais no marketing, e a imprensa durante muito tempo foi conivente com a CIA. Durante os primeiros anos da Guerra Fria, na década de 50, algumas potências da mídia, entre elas o grupo Time, emprestaram seus correspondentes e suas informações para a CIA. Apesar da fama de competente e bem sucedida, os fracassos cobrem quase todas as 800 páginas do livro: a CIA não antecipou a explosão da bomba atômica soviética em 49, nem a invasão da Coréia do Sul em 1950, nem as rebeliões populares na Europa Oriental da década de 50, a instalação dos mísseis soviéticos em Cuba em 62, a guerra entre árabes e Israel em 73, a invasão soviética do Afeganistão em 79, o colapso da União Soviética, a invasão do Kuwait pelo Iraque em 90, a explosão da bomba atômica indiana em 98. A lista é muito mais longa até chegar nos grandes fracassos mais recentes: não impediu o 11 de setembro e cometeu erros imperdoáveis sobre a existência de armas de destruição de massa no Iraque. Depois vieram as manchas das torturas em Abu Ghraib, Guantánamo e prisões secretas. - Por que tanta incompetência? - Porque a CIA não entende as culturas dos outros, não fala as línguas e acha que podemos compensar estas fraquezas com tecnologia. Um império precisa ser bem informado. A função da agência de espionagem é espionar, e não planejar golpes ou torturar. A maioria dos agentes sabem disto. Mais importante, os presidentes americanos, com raras exceções como o primeiro Bush, ex-diretor da CIA, nunca souberam como usar a CIA. O Brasil merece apenas duas páginas no calhamaço de Tim Weiner. Quando John Kennedy mandou instalar o sistema de gravação na Casa Branca, sua primeira conversa com o embaixador Lincoln Gordon. Queria saber como andavam as manobras dos militares brasileiros para derrubar Jango. A CIA não merece o crédito. PS: Meu espião Na década de 60, em Belo Horizonte, eramos maleteiros. Estudantes, intelectuais, artistas, políticos e bêbados que freqüentavam os bares e restaurantes do recém-inaugurado conjunto Anchangelo Maleta, na rua da Bahia, artéria tradicional da boemia de BH. No segundo andar ficava o Sagarana, um bar freqüentado por esquerdistas e direitistas, mas não havia ainda militância armada. Um músico tímido chamado Milton Nascimento, mais conhecido como Bituca, fazia esforço para ser ouvido naquele bate-boca político-existencial. Fernando Gabeira aparecia com freqüência e ficava numa mesa do fundo. Foi lá que recebi dele meu primeiro convite para trabalhar em jornal, o Correio de Minas. Aceitei e durou um dia. O dono do Sagarana, o advogado João Batista, ultraconservador, era um generoso anfitrião, liberal nos créditos. Entre os freqüentadores havia um gringo alto, boa pinta, desengonçado chamado Lawrance Laser. Como trabalhava no consulado americano, foi apelidado de Espião. Nosso homem na CIA, era o deboche. Quando o Sagarana fechava, nosso grupo, inclusive o Espião, ia paquerar as moças que tinham terminado o trabalho nos bordéis e esticavam a noite no dancing Almanara. Depois saíamos com elas pela madrugada adentro. Poucos anos mais tarde, ele servia no Rio, descobri que o Espião era mesmo espião da CIA. Ele nunca admitiu, mas eu trabalhava na Fatos e Fotos, marcamos um almoço no Centro. Ele me disse que o embaixador americano quicava de ódio quando os estudantes quebravam as janelas da embaixada. Eram caríssimas. Este era o grande problema dele. Queria saber quando os estudantes iam protestar na frente da embaixada. Nossa redação tinha bons contatos com Vladimir Palmeira e outros líderes estudantis. Disse ao Espião que encaminharia o pedido dele aos estudantes, mas em troca de não quebrar as janelas da embaixada ele usaria o prestígio da CIA para impedir que o maluco do Coronel Bournier usasse aviões da Força Aérea Brasileira para lançar estudantes e líderes sindicais no mar. Conversa de bêbados martinizados em puteiro. O Espião também serviu em Brasília. Quando vim para os Estados Unidos, consegui o endereço e fui visitá-lo na Flórida, à mineira, sem aviso. Fugiu de mim como o diabo da cruz. Por onde anda o Espião? BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

Durante 20 anos Tim Weiner, do New York Times, "espionou" os espiões e se tornou o jornalista americano mais bem informado sobre a CIA. A primeira conexão dele foi antes de embarcar para o Afeganistão. Ligou para a CIA e pediu um "briefing" - informações - sobre o país recém-invadido pela União Soviética. Era um serviço de rotina da agência. "Negativo", foi a resposta. Os briefings estão suspensos. Tim Weiner passou três meses no Afeganistão e, menos de 24 horas depois de aterrissar em Washington, recebeu uma chamada da CIA. Queriam um briefing dele. Os americanos estavam mandando armas e dinheiro para os guerrilheiros - mujahedins, talebãs, Al-Qaeda e companhia - mas não sabiam nada sobre os grupos e o Afeganistão. Queriam informações de Tim Weiner. Quando entrou no prédio da CIA, sentiu uma atração irresistível. Tinha encontrado uma missão. Semana passada entrevistei Tim Weiner, autor de Legacy of Ashes (Legado de Cinzas), a história da CIA, o documento mais completo - e mais devastador - sobre a agência americana de espionagem. Deve ser lançado em breve no Brasil. No livro de 800 páginas não há uma fonte anônima, e as transcrições são de memos e documentos oficiais. O título vem de uma frase do presidente Eisenhower já no final do mandato, decepcionado com a CIA: por causa da agência, disse, ia deixar ao sucessor, John Kennedy, um "legado de cinzas". Kennedy era fã do agente 007, devorava os livros de Ian Fleming, mas o fracasso da invasão da Baía dos Porcos destruiu a confiança dele na CIA. E ficou mais desencantado quando a agência apresentou a ele a versão americana do 007: era um gordo com uma bunda de pêra que tomava martinis duplos e ficava inútil depois do almoço. Depois do fracassso da invasão de Cuba, sempre tratou a CIA com desprezo e distância, como a maioria dos presidentes que vieram depois dele. Tim Weiner diz que a CIA, com raras exceções, foi incompetente justamente na espionagem. Sabia contar mísseis e armas soviéticas mas, a pedido do presidente americano, estes números eram exagerados para assombrar o Congresso e o público americano. Graças ao medo, os orçamentos do Pentágono, da CIA e outras agências de espionagem sempre engordavam. No currículo da CIA os dois maiores sucessos foram as operações Ajax, para depor o pesidente do Irã em 53, e a Operação Sucesso, para depor o presidente da Guatemala em 64. O Irã deu no que deu e, na Guatemala, a ditadura militar que assumiu depois do golpe matou mais de 200 mil e até o hoje o país continua torto. E por que a esquerda e também a direita sempre acharam que a CIA estava por trás de tudo que acontecia no mundo? Relações públicas. Sempre foram geniais no marketing, e a imprensa durante muito tempo foi conivente com a CIA. Durante os primeiros anos da Guerra Fria, na década de 50, algumas potências da mídia, entre elas o grupo Time, emprestaram seus correspondentes e suas informações para a CIA. Apesar da fama de competente e bem sucedida, os fracassos cobrem quase todas as 800 páginas do livro: a CIA não antecipou a explosão da bomba atômica soviética em 49, nem a invasão da Coréia do Sul em 1950, nem as rebeliões populares na Europa Oriental da década de 50, a instalação dos mísseis soviéticos em Cuba em 62, a guerra entre árabes e Israel em 73, a invasão soviética do Afeganistão em 79, o colapso da União Soviética, a invasão do Kuwait pelo Iraque em 90, a explosão da bomba atômica indiana em 98. A lista é muito mais longa até chegar nos grandes fracassos mais recentes: não impediu o 11 de setembro e cometeu erros imperdoáveis sobre a existência de armas de destruição de massa no Iraque. Depois vieram as manchas das torturas em Abu Ghraib, Guantánamo e prisões secretas. - Por que tanta incompetência? - Porque a CIA não entende as culturas dos outros, não fala as línguas e acha que podemos compensar estas fraquezas com tecnologia. Um império precisa ser bem informado. A função da agência de espionagem é espionar, e não planejar golpes ou torturar. A maioria dos agentes sabem disto. Mais importante, os presidentes americanos, com raras exceções como o primeiro Bush, ex-diretor da CIA, nunca souberam como usar a CIA. O Brasil merece apenas duas páginas no calhamaço de Tim Weiner. Quando John Kennedy mandou instalar o sistema de gravação na Casa Branca, sua primeira conversa com o embaixador Lincoln Gordon. Queria saber como andavam as manobras dos militares brasileiros para derrubar Jango. A CIA não merece o crédito. PS: Meu espião Na década de 60, em Belo Horizonte, eramos maleteiros. Estudantes, intelectuais, artistas, políticos e bêbados que freqüentavam os bares e restaurantes do recém-inaugurado conjunto Anchangelo Maleta, na rua da Bahia, artéria tradicional da boemia de BH. No segundo andar ficava o Sagarana, um bar freqüentado por esquerdistas e direitistas, mas não havia ainda militância armada. Um músico tímido chamado Milton Nascimento, mais conhecido como Bituca, fazia esforço para ser ouvido naquele bate-boca político-existencial. Fernando Gabeira aparecia com freqüência e ficava numa mesa do fundo. Foi lá que recebi dele meu primeiro convite para trabalhar em jornal, o Correio de Minas. Aceitei e durou um dia. O dono do Sagarana, o advogado João Batista, ultraconservador, era um generoso anfitrião, liberal nos créditos. Entre os freqüentadores havia um gringo alto, boa pinta, desengonçado chamado Lawrance Laser. Como trabalhava no consulado americano, foi apelidado de Espião. Nosso homem na CIA, era o deboche. Quando o Sagarana fechava, nosso grupo, inclusive o Espião, ia paquerar as moças que tinham terminado o trabalho nos bordéis e esticavam a noite no dancing Almanara. Depois saíamos com elas pela madrugada adentro. Poucos anos mais tarde, ele servia no Rio, descobri que o Espião era mesmo espião da CIA. Ele nunca admitiu, mas eu trabalhava na Fatos e Fotos, marcamos um almoço no Centro. Ele me disse que o embaixador americano quicava de ódio quando os estudantes quebravam as janelas da embaixada. Eram caríssimas. Este era o grande problema dele. Queria saber quando os estudantes iam protestar na frente da embaixada. Nossa redação tinha bons contatos com Vladimir Palmeira e outros líderes estudantis. Disse ao Espião que encaminharia o pedido dele aos estudantes, mas em troca de não quebrar as janelas da embaixada ele usaria o prestígio da CIA para impedir que o maluco do Coronel Bournier usasse aviões da Força Aérea Brasileira para lançar estudantes e líderes sindicais no mar. Conversa de bêbados martinizados em puteiro. O Espião também serviu em Brasília. Quando vim para os Estados Unidos, consegui o endereço e fui visitá-lo na Flórida, à mineira, sem aviso. Fugiu de mim como o diabo da cruz. Por onde anda o Espião? BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

Durante 20 anos Tim Weiner, do New York Times, "espionou" os espiões e se tornou o jornalista americano mais bem informado sobre a CIA. A primeira conexão dele foi antes de embarcar para o Afeganistão. Ligou para a CIA e pediu um "briefing" - informações - sobre o país recém-invadido pela União Soviética. Era um serviço de rotina da agência. "Negativo", foi a resposta. Os briefings estão suspensos. Tim Weiner passou três meses no Afeganistão e, menos de 24 horas depois de aterrissar em Washington, recebeu uma chamada da CIA. Queriam um briefing dele. Os americanos estavam mandando armas e dinheiro para os guerrilheiros - mujahedins, talebãs, Al-Qaeda e companhia - mas não sabiam nada sobre os grupos e o Afeganistão. Queriam informações de Tim Weiner. Quando entrou no prédio da CIA, sentiu uma atração irresistível. Tinha encontrado uma missão. Semana passada entrevistei Tim Weiner, autor de Legacy of Ashes (Legado de Cinzas), a história da CIA, o documento mais completo - e mais devastador - sobre a agência americana de espionagem. Deve ser lançado em breve no Brasil. No livro de 800 páginas não há uma fonte anônima, e as transcrições são de memos e documentos oficiais. O título vem de uma frase do presidente Eisenhower já no final do mandato, decepcionado com a CIA: por causa da agência, disse, ia deixar ao sucessor, John Kennedy, um "legado de cinzas". Kennedy era fã do agente 007, devorava os livros de Ian Fleming, mas o fracasso da invasão da Baía dos Porcos destruiu a confiança dele na CIA. E ficou mais desencantado quando a agência apresentou a ele a versão americana do 007: era um gordo com uma bunda de pêra que tomava martinis duplos e ficava inútil depois do almoço. Depois do fracassso da invasão de Cuba, sempre tratou a CIA com desprezo e distância, como a maioria dos presidentes que vieram depois dele. Tim Weiner diz que a CIA, com raras exceções, foi incompetente justamente na espionagem. Sabia contar mísseis e armas soviéticas mas, a pedido do presidente americano, estes números eram exagerados para assombrar o Congresso e o público americano. Graças ao medo, os orçamentos do Pentágono, da CIA e outras agências de espionagem sempre engordavam. No currículo da CIA os dois maiores sucessos foram as operações Ajax, para depor o pesidente do Irã em 53, e a Operação Sucesso, para depor o presidente da Guatemala em 64. O Irã deu no que deu e, na Guatemala, a ditadura militar que assumiu depois do golpe matou mais de 200 mil e até o hoje o país continua torto. E por que a esquerda e também a direita sempre acharam que a CIA estava por trás de tudo que acontecia no mundo? Relações públicas. Sempre foram geniais no marketing, e a imprensa durante muito tempo foi conivente com a CIA. Durante os primeiros anos da Guerra Fria, na década de 50, algumas potências da mídia, entre elas o grupo Time, emprestaram seus correspondentes e suas informações para a CIA. Apesar da fama de competente e bem sucedida, os fracassos cobrem quase todas as 800 páginas do livro: a CIA não antecipou a explosão da bomba atômica soviética em 49, nem a invasão da Coréia do Sul em 1950, nem as rebeliões populares na Europa Oriental da década de 50, a instalação dos mísseis soviéticos em Cuba em 62, a guerra entre árabes e Israel em 73, a invasão soviética do Afeganistão em 79, o colapso da União Soviética, a invasão do Kuwait pelo Iraque em 90, a explosão da bomba atômica indiana em 98. A lista é muito mais longa até chegar nos grandes fracassos mais recentes: não impediu o 11 de setembro e cometeu erros imperdoáveis sobre a existência de armas de destruição de massa no Iraque. Depois vieram as manchas das torturas em Abu Ghraib, Guantánamo e prisões secretas. - Por que tanta incompetência? - Porque a CIA não entende as culturas dos outros, não fala as línguas e acha que podemos compensar estas fraquezas com tecnologia. Um império precisa ser bem informado. A função da agência de espionagem é espionar, e não planejar golpes ou torturar. A maioria dos agentes sabem disto. Mais importante, os presidentes americanos, com raras exceções como o primeiro Bush, ex-diretor da CIA, nunca souberam como usar a CIA. O Brasil merece apenas duas páginas no calhamaço de Tim Weiner. Quando John Kennedy mandou instalar o sistema de gravação na Casa Branca, sua primeira conversa com o embaixador Lincoln Gordon. Queria saber como andavam as manobras dos militares brasileiros para derrubar Jango. A CIA não merece o crédito. PS: Meu espião Na década de 60, em Belo Horizonte, eramos maleteiros. Estudantes, intelectuais, artistas, políticos e bêbados que freqüentavam os bares e restaurantes do recém-inaugurado conjunto Anchangelo Maleta, na rua da Bahia, artéria tradicional da boemia de BH. No segundo andar ficava o Sagarana, um bar freqüentado por esquerdistas e direitistas, mas não havia ainda militância armada. Um músico tímido chamado Milton Nascimento, mais conhecido como Bituca, fazia esforço para ser ouvido naquele bate-boca político-existencial. Fernando Gabeira aparecia com freqüência e ficava numa mesa do fundo. Foi lá que recebi dele meu primeiro convite para trabalhar em jornal, o Correio de Minas. Aceitei e durou um dia. O dono do Sagarana, o advogado João Batista, ultraconservador, era um generoso anfitrião, liberal nos créditos. Entre os freqüentadores havia um gringo alto, boa pinta, desengonçado chamado Lawrance Laser. Como trabalhava no consulado americano, foi apelidado de Espião. Nosso homem na CIA, era o deboche. Quando o Sagarana fechava, nosso grupo, inclusive o Espião, ia paquerar as moças que tinham terminado o trabalho nos bordéis e esticavam a noite no dancing Almanara. Depois saíamos com elas pela madrugada adentro. Poucos anos mais tarde, ele servia no Rio, descobri que o Espião era mesmo espião da CIA. Ele nunca admitiu, mas eu trabalhava na Fatos e Fotos, marcamos um almoço no Centro. Ele me disse que o embaixador americano quicava de ódio quando os estudantes quebravam as janelas da embaixada. Eram caríssimas. Este era o grande problema dele. Queria saber quando os estudantes iam protestar na frente da embaixada. Nossa redação tinha bons contatos com Vladimir Palmeira e outros líderes estudantis. Disse ao Espião que encaminharia o pedido dele aos estudantes, mas em troca de não quebrar as janelas da embaixada ele usaria o prestígio da CIA para impedir que o maluco do Coronel Bournier usasse aviões da Força Aérea Brasileira para lançar estudantes e líderes sindicais no mar. Conversa de bêbados martinizados em puteiro. O Espião também serviu em Brasília. Quando vim para os Estados Unidos, consegui o endereço e fui visitá-lo na Flórida, à mineira, sem aviso. Fugiu de mim como o diabo da cruz. Por onde anda o Espião? BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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