Biotecnologia e escassez ambiental impõem novos desafios à humanidade


Pesquisador defende que a ecologia deve nortear as decisões mundiais, através do desenvolvimento da Bioética e do Biodireiro

Por Agencia Estado

O desenvolvimento acelerado da biotecnologia, justamente no momento em que cresce a consciência em relação à escassez dos recursos naturais, tem renovado as discussões sobre a capacidade da humanidade para resolver problemas crônicos, como a fome, ou até para garantir sua sobrevivência. Mas esta biotecnologia, ao mesmo tempo milagrosa e assustadora, também impõe ao mundo uma nova maneira de pensar e um novo leque de valores, ainda não assimilados. Entender essa realidade e se antecipar às demandas, que virão, são os objetivos do 1o Congresso Brasileiro de Legislação Ambiental, Bioética e Biodireito, que a Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) promove, de 9 a 11 de maio, em Ribeirão Preto. Convencido de que a maior causa dos problemas da humanidade é ambiental, o diretor do Centro de Estudos Ambientais da Unesp, Nivar Gobbi, idealizador do evento, falou à Agência Estado sobre os conceitos, que pretende discutir. Biólogo, bacharel em Direito, mestre e doutor em Genética e livre docente em Ecologia, o pesquisador é o retrato da visão holística, que defende no tratamento do tema. Agência Estado - O que é a Bioética e o que ela vai mudar no campo do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - Não se pode mais falar em meio ambiente da maneira fragmentada e reducionista de séculos atrás. Já temos especialistas em Biodireito nos Estados Unidos e os cursos de Biologia estão discutindo ética. Mas é preciso primeiro mudar nossa forma de pensar. Precisamos de Bioética, porque trabalhamos com a vida. O século passado foi o século da informática e este é, seguramente, o da biotecnologia. Ela vai mudar nossa maneira de ser. E os questionamentos começam com coisas prosaicas, como a forma de utilizar uma cobaia, um determinado tipo de animal ou mesmo o ser humano para aplicação de fármacos ou experimentos genéticos. Vamos chegar à Biomecânica e coisas que jamais se imaginou. Só que nossos códigos Penal e Civil estão muito atrasados. Será que vamos esperar 50 anos para discutir essa questão? A grande crise não é econômica, ideológica ou política, mas puramente ecológica. O homem é um bicho fora dos eixos, que escapou até agora através de vários truques, porém pagamos um preço caro por isso. Assim, temos que discutir a Bioética, que é a ética de como você lida com a vida, e o Biodireito, o direito já ajustado às questões biológicas, que vêm com a biotecnologia e outras coisas que surgirão. AE - Segundo essa teoria, as mudanças em curso na humanidade, devidas à biotecnologia, fazem as questões ambientais, ou biológicas, estarem acima de todas as outras? Nivar Gobbi - Sim. E a próxima legislação ambiental deveria nortear todas as legislações. Ao invés de ter uma legislação penal, uma civil e uma trabalhista, você deveria ter uma grande legislação ambiental que coordenasse essas coisas. Isso não é sonho, nos Estados Unidos, já há muitos advogados trabalhando com Biodireito. É um campo nascente. AE - E no que o Biodireito se diferencia do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - O Direito Ambiental é regulamentador. Regula a caça, a pesca, o funcionamento das indústrias, a colocação de lixão, a manutenção das florestas, a ocupação de solo. O Biodireito não é só isso. Deve dizer o que fazer na hora de patentear um gene, por exemplo. Se você for retirar esse gene de uma vegetação, onde existe uma tribo ou uma reserva ambiental, esse gene pertence a quem? Na verdade, estamos sendo roubados exaustivamente de todas as formas, em nossas flora e fauna. Somos um campo de caça para grandes organizações. Hoje se alguma delas quiser levar uma planta, fala para quem? A quem pertence isso? E quando alguém passar dos limites na manipulação genética? Hoje já manipulamos embriões em gado, para conseguir animais de maior porte, precocidade, mais leite. Quais são os limites? O Biodireito vai ter que resolver. Aí entra a Bioética, para garantir que essa decisão seja da sociedade, pois não deve ser uma decisão de cientistas nem das indústrias. AE - Mas, em termos práticos, que tipo de escolhas a sociedade deverá fazer? Nivar Gobbi - Quando alguém disser que você vai poder escolher o sexo ou a cor dos olhos do seu filho. São as coisas mais comuns, que parecem não ter conseqüências. Mas, em alguns casos, têm. Na China, por exemplo, onde se faz um controle de sexo e o número de homens é muito maior do que o de mulheres. Não temos a menor idéia do que vai acontecer. Não há relato de nenhuma espécie, que tenha uma relação de 20 para um entre os sexos, principalmente entre mamíferos. AE - O Brasil está preparado para essa discussão? Nivar Gobbi - Países democráticos facilitam a discussão. Mas, apesar disso, o Brasil é um país perigoso, por conta da cultura de que há leis que ?pegam? e que ?não pegam?. A lei diz que 20% das propriedades rurais têm que estar florestadas. Não pegou por conta do fator econômico e porque não se pode colocar leis sem discutir com a sociedade. AE - Mas estas não são questões gerais de ética? Por que criar uma nova nomenclatura? Nivar Gobbi - A ética deveria compor tudo, mas tive que usar o termo Bioética para chamar a atenção, é uma bandeira. Quero enfatizar isso. A ética permeia tudo, mas hoje existem coisas que não sei mais se são éticas. Por exemplo, quando você chega em um pedágio, com todos aqueles carros acelerando e liberando uma série de produtos tóxicos. Será que aqueles funcionários que estão ali têm idéia do que estão ingerindo por dia? Alguém já conversou com eles a esse respeito? Isso é ético? É bioético? AE - Estamos então falando em direito à informação, como vem sendo discutido no caso dos transgênicos? Nivar Gobbi - Ficamos muito nos transgênicos, que são sim um caso de direito à informação. Mas a pergunta é: o homem vai parar em um limite? Tenho uma preocupação, pois ele não vai. Nós nos movimentamos pelo lucro e sempre tem alguém que quer ir além. Pesquisadores disputam ferozmente entre eles, para encontrar brechas, que dêem uma sensação de imortalidade, de glória, isso também é perigoso. Tenho a impressão de que vamos avançar sem parar. Mas precisamos de algum tipo de limite. Ou pelo menos, que a sociedade decida até onde vamos. Vamos parar em um tipo de clonagem de órgãos? Hoje me parece meio difícil. Há uns 30 anos, quando se fez o primeiro transplante, parecia uma loucura tirar o coração de uma pessoa para outra. Era ético ou não? Hoje parece uma coisa superada. AE - Esse tipo de discussão aconteceu também quando surgiu o bebê de proveta e, no entanto, hoje é um procedimento normal e bem aceito... Nivar Gobbi - Hoje é uma coisa corriqueira, embora não se saiba ainda qual o efeito a longo prazo. Todas essas coisas poderão nos afetar no futuro e precisamos saber se nossa evolução no campo do comportamento é suficiente para acompanhar a biotecnologia. Outra pergunta a ser feita é: a biotecnologia vai ser boa para quem? Sou geneticista e trabalho com ambiente e sei que essas manipulações gênicas, curas e operações vão ser caríssimas. Quem vai pagar, os planos de saúde? Não, isso terá alcance para uma população pequeníssima, de alta renda. AE - Sabemos que o mundo tecnológico não resolveu questões básicas, como alimentação. Existe uma maneira, através da Bioética, de comprometer a ciência com esse tipo de problema? Nivar Gobbi - Não é utópico, desde que tenhamos o engajamento da sociedade. Quem é que paga o serviço científico? É a sociedade, o imposto não sai do ar. Então ela tem direito de nos cobrar um tipo de comportamento ético. No entanto, hoje existem também as grandes corporações, que contratam cientistas, que não precisam fazer as outras coisas (dar aulas, publicações etc.), por isso andam muito mais rápido do que nós, da universidade, pois tecnologia custa uma fortuna. Isso deverá aumentar ainda mais a distância entre ricos e pobres. Outro agravante são os recursos naturais. Será que os transgênicos ou os melhoramentos genéticos podem minorar a fome? Podem, mas para ter uma revolução agrícola, vai precisar ter cada vez mais água. Se você tem um transgênico que produz mais, precisa ter também mais água, que é o elemento básico. Também precisa de adubo, que vem de petróleo. E quanto tempo vai durar a civilização do petróleo? Ela está na UTI. AE - Se essa tecnologia é muito cara e, além disso, não temos recursos naturais para todos, não corremos o risco de produzir uma sociedade como a do livro Admirável Mundo Novo, com categoria de pessoas? Nivar Gobbi - É evidente que você poderá criar uma categoria de privilegiados. Mas estamos falando em possibilidades. Acho que a manipulação genética em ser humano não tem essa facilidade que se vendeu. Algumas coisas vão mudar, sim, e vai ter um preço, mas não na velocidade que se pensa. AE - Mas poderemos criar uma elite que tenha acesso, por exemplo, à garantia de ter um filho sadio ou que não tenha câncer durante toda a vida? Nivar Gobbi - Ou então vai poder saber quando ele poderá ter câncer. Essa tecnologia poderá ser usada também em termos de trabalho, com um diagnóstico anterior, que diga se a pessoa vai ficar diabética, tem tendência à esquizofrenia ou a ter uma doença de rim. Isso tudo poderá atrapalhar sua contratação para um emprego. E o plano de saúde, como vai ser? Certamente não será o melhor dos mundos. AE - A Justiça brasileira já lida, de alguma forma, com a biotecnologia? Nivar Gobbi - O que se usa hoje, na medicina forense, é o teste de paternidade. É o DNA. Mas a medicina legal, até uns anos atrás, usava critérios como a cor dos olhos, o que já deu muita confusão, já desfez casamentos, com dúvida de adultério, pois se achava que era uma coisa definitiva, em Genética, a questão de recessivo e dominante. Hoje sabemos que a cor do olho depende de vários genes e que duas pessoas de olhos azuis podem ter um filho de olhos castanhos e ninguém pulou a cerca. Mas quanta estupidez não se fez com isso. Agora é o DNA que resolve tudo. Mas tem muito mais, como a entomologia forense, que usa insetos, por exemplo. De acordo com o tipo de larva, que se acha em um cadáver, pode-se dizer quando morreu, de que forma morreu. AE - Além desses usos ?individuais?, a Bioética e o Biodireito deverão definir quando e como usar a biotecnologia em questões mais amplas, como as ambientais? Por exemplo, quando e onde plantar transgênicos ou o quanto uma fábrica pode ser poluidora? Nivar Gobbi - Exatamente, a Bioética e o Biodireito vão ter que estabelecer esses limites. Por exemplo, qual o preço do ar? Até pouco tempo, a água não tinha preço, agora tem. O próximo é o ar. E mesmo hoje é fácil de calcular. É só ir aos hospitais em época de queimada ou de inverno com alta poluição e ver quanto está custando o tratamento de pessoas com asma ou outros distúrbios respiratórios. Essas são questões clássicas de Bioética. AE - Mas esses custos não inviabilizarão os investimentos necessários para resolver os mesmos problemas ambientais que se pretende combater? Nivar Gobbi - Compensação ambiental hoje é uma palavra mágica. Compensar o que? Perdeu-se uma coisa que levou milhões de anos para acontecer. Há alguma coisa que compense isso? Mas pode chegar um momento que vai ser necessário. Temos boa parte da população passando fome. E isso tem jeito de resolver. Mas a legislação ambiental deveria se sobrepor a todas as outras. AE - O senhor está falando da capacidade de suporte ambiental do planeta? Nivar Gobbi - Exato. E isso tem tudo a ver até com criminalidade. Não adianta colocar muitos carros da Rota se não resolver o problema ambiental. Se você pegar o produto bruto do mundo e dividir por 6 bilhões, vai encontrar um valor baixo. Tem alguma coisa errada. Outra coisa é o tamanho das cidades. Estamos vendo todo dia acontecerem enchentes. Se se continuar impermeabilizando cada vez mais o solo, a água vai descer como pode. O rio não tem culpa. Quando você impermeabiliza, a água desce como canhão. Se limpar todos os bueiros, a água vai descer ainda mais rápido. Por isso, tivemos que inventar os piscinões. Não há dinheiro no mundo que vá acertar isso. Por que não decidimos o tamanho das cidades? Mas e como ficará o direito de ir e vir? Se queremos ter uma chance, devemos pensar que o direito ambiental está acima de tudo. É uma nova maneira de pensar. AE - Como isso muda o velho paradigma ?o meu direito termina onde começa o do outro?? Parece cada vez mais difícil estabelecer esses limites, quando se extrapola para uso da água ou do ar. Nivar Gobbi - Realmente. Não dá mais para dizer ?eu vou deixar a torneira aberta, porque é minha e eu pago a conta? ou ?quero cantar uma ópera inteira no chuveiro?. Mudou o paradigma.

O desenvolvimento acelerado da biotecnologia, justamente no momento em que cresce a consciência em relação à escassez dos recursos naturais, tem renovado as discussões sobre a capacidade da humanidade para resolver problemas crônicos, como a fome, ou até para garantir sua sobrevivência. Mas esta biotecnologia, ao mesmo tempo milagrosa e assustadora, também impõe ao mundo uma nova maneira de pensar e um novo leque de valores, ainda não assimilados. Entender essa realidade e se antecipar às demandas, que virão, são os objetivos do 1o Congresso Brasileiro de Legislação Ambiental, Bioética e Biodireito, que a Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) promove, de 9 a 11 de maio, em Ribeirão Preto. Convencido de que a maior causa dos problemas da humanidade é ambiental, o diretor do Centro de Estudos Ambientais da Unesp, Nivar Gobbi, idealizador do evento, falou à Agência Estado sobre os conceitos, que pretende discutir. Biólogo, bacharel em Direito, mestre e doutor em Genética e livre docente em Ecologia, o pesquisador é o retrato da visão holística, que defende no tratamento do tema. Agência Estado - O que é a Bioética e o que ela vai mudar no campo do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - Não se pode mais falar em meio ambiente da maneira fragmentada e reducionista de séculos atrás. Já temos especialistas em Biodireito nos Estados Unidos e os cursos de Biologia estão discutindo ética. Mas é preciso primeiro mudar nossa forma de pensar. Precisamos de Bioética, porque trabalhamos com a vida. O século passado foi o século da informática e este é, seguramente, o da biotecnologia. Ela vai mudar nossa maneira de ser. E os questionamentos começam com coisas prosaicas, como a forma de utilizar uma cobaia, um determinado tipo de animal ou mesmo o ser humano para aplicação de fármacos ou experimentos genéticos. Vamos chegar à Biomecânica e coisas que jamais se imaginou. Só que nossos códigos Penal e Civil estão muito atrasados. Será que vamos esperar 50 anos para discutir essa questão? A grande crise não é econômica, ideológica ou política, mas puramente ecológica. O homem é um bicho fora dos eixos, que escapou até agora através de vários truques, porém pagamos um preço caro por isso. Assim, temos que discutir a Bioética, que é a ética de como você lida com a vida, e o Biodireito, o direito já ajustado às questões biológicas, que vêm com a biotecnologia e outras coisas que surgirão. AE - Segundo essa teoria, as mudanças em curso na humanidade, devidas à biotecnologia, fazem as questões ambientais, ou biológicas, estarem acima de todas as outras? Nivar Gobbi - Sim. E a próxima legislação ambiental deveria nortear todas as legislações. Ao invés de ter uma legislação penal, uma civil e uma trabalhista, você deveria ter uma grande legislação ambiental que coordenasse essas coisas. Isso não é sonho, nos Estados Unidos, já há muitos advogados trabalhando com Biodireito. É um campo nascente. AE - E no que o Biodireito se diferencia do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - O Direito Ambiental é regulamentador. Regula a caça, a pesca, o funcionamento das indústrias, a colocação de lixão, a manutenção das florestas, a ocupação de solo. O Biodireito não é só isso. Deve dizer o que fazer na hora de patentear um gene, por exemplo. Se você for retirar esse gene de uma vegetação, onde existe uma tribo ou uma reserva ambiental, esse gene pertence a quem? Na verdade, estamos sendo roubados exaustivamente de todas as formas, em nossas flora e fauna. Somos um campo de caça para grandes organizações. Hoje se alguma delas quiser levar uma planta, fala para quem? A quem pertence isso? E quando alguém passar dos limites na manipulação genética? Hoje já manipulamos embriões em gado, para conseguir animais de maior porte, precocidade, mais leite. Quais são os limites? O Biodireito vai ter que resolver. Aí entra a Bioética, para garantir que essa decisão seja da sociedade, pois não deve ser uma decisão de cientistas nem das indústrias. AE - Mas, em termos práticos, que tipo de escolhas a sociedade deverá fazer? Nivar Gobbi - Quando alguém disser que você vai poder escolher o sexo ou a cor dos olhos do seu filho. São as coisas mais comuns, que parecem não ter conseqüências. Mas, em alguns casos, têm. Na China, por exemplo, onde se faz um controle de sexo e o número de homens é muito maior do que o de mulheres. Não temos a menor idéia do que vai acontecer. Não há relato de nenhuma espécie, que tenha uma relação de 20 para um entre os sexos, principalmente entre mamíferos. AE - O Brasil está preparado para essa discussão? Nivar Gobbi - Países democráticos facilitam a discussão. Mas, apesar disso, o Brasil é um país perigoso, por conta da cultura de que há leis que ?pegam? e que ?não pegam?. A lei diz que 20% das propriedades rurais têm que estar florestadas. Não pegou por conta do fator econômico e porque não se pode colocar leis sem discutir com a sociedade. AE - Mas estas não são questões gerais de ética? Por que criar uma nova nomenclatura? Nivar Gobbi - A ética deveria compor tudo, mas tive que usar o termo Bioética para chamar a atenção, é uma bandeira. Quero enfatizar isso. A ética permeia tudo, mas hoje existem coisas que não sei mais se são éticas. Por exemplo, quando você chega em um pedágio, com todos aqueles carros acelerando e liberando uma série de produtos tóxicos. Será que aqueles funcionários que estão ali têm idéia do que estão ingerindo por dia? Alguém já conversou com eles a esse respeito? Isso é ético? É bioético? AE - Estamos então falando em direito à informação, como vem sendo discutido no caso dos transgênicos? Nivar Gobbi - Ficamos muito nos transgênicos, que são sim um caso de direito à informação. Mas a pergunta é: o homem vai parar em um limite? Tenho uma preocupação, pois ele não vai. Nós nos movimentamos pelo lucro e sempre tem alguém que quer ir além. Pesquisadores disputam ferozmente entre eles, para encontrar brechas, que dêem uma sensação de imortalidade, de glória, isso também é perigoso. Tenho a impressão de que vamos avançar sem parar. Mas precisamos de algum tipo de limite. Ou pelo menos, que a sociedade decida até onde vamos. Vamos parar em um tipo de clonagem de órgãos? Hoje me parece meio difícil. Há uns 30 anos, quando se fez o primeiro transplante, parecia uma loucura tirar o coração de uma pessoa para outra. Era ético ou não? Hoje parece uma coisa superada. AE - Esse tipo de discussão aconteceu também quando surgiu o bebê de proveta e, no entanto, hoje é um procedimento normal e bem aceito... Nivar Gobbi - Hoje é uma coisa corriqueira, embora não se saiba ainda qual o efeito a longo prazo. Todas essas coisas poderão nos afetar no futuro e precisamos saber se nossa evolução no campo do comportamento é suficiente para acompanhar a biotecnologia. Outra pergunta a ser feita é: a biotecnologia vai ser boa para quem? Sou geneticista e trabalho com ambiente e sei que essas manipulações gênicas, curas e operações vão ser caríssimas. Quem vai pagar, os planos de saúde? Não, isso terá alcance para uma população pequeníssima, de alta renda. AE - Sabemos que o mundo tecnológico não resolveu questões básicas, como alimentação. Existe uma maneira, através da Bioética, de comprometer a ciência com esse tipo de problema? Nivar Gobbi - Não é utópico, desde que tenhamos o engajamento da sociedade. Quem é que paga o serviço científico? É a sociedade, o imposto não sai do ar. Então ela tem direito de nos cobrar um tipo de comportamento ético. No entanto, hoje existem também as grandes corporações, que contratam cientistas, que não precisam fazer as outras coisas (dar aulas, publicações etc.), por isso andam muito mais rápido do que nós, da universidade, pois tecnologia custa uma fortuna. Isso deverá aumentar ainda mais a distância entre ricos e pobres. Outro agravante são os recursos naturais. Será que os transgênicos ou os melhoramentos genéticos podem minorar a fome? Podem, mas para ter uma revolução agrícola, vai precisar ter cada vez mais água. Se você tem um transgênico que produz mais, precisa ter também mais água, que é o elemento básico. Também precisa de adubo, que vem de petróleo. E quanto tempo vai durar a civilização do petróleo? Ela está na UTI. AE - Se essa tecnologia é muito cara e, além disso, não temos recursos naturais para todos, não corremos o risco de produzir uma sociedade como a do livro Admirável Mundo Novo, com categoria de pessoas? Nivar Gobbi - É evidente que você poderá criar uma categoria de privilegiados. Mas estamos falando em possibilidades. Acho que a manipulação genética em ser humano não tem essa facilidade que se vendeu. Algumas coisas vão mudar, sim, e vai ter um preço, mas não na velocidade que se pensa. AE - Mas poderemos criar uma elite que tenha acesso, por exemplo, à garantia de ter um filho sadio ou que não tenha câncer durante toda a vida? Nivar Gobbi - Ou então vai poder saber quando ele poderá ter câncer. Essa tecnologia poderá ser usada também em termos de trabalho, com um diagnóstico anterior, que diga se a pessoa vai ficar diabética, tem tendência à esquizofrenia ou a ter uma doença de rim. Isso tudo poderá atrapalhar sua contratação para um emprego. E o plano de saúde, como vai ser? Certamente não será o melhor dos mundos. AE - A Justiça brasileira já lida, de alguma forma, com a biotecnologia? Nivar Gobbi - O que se usa hoje, na medicina forense, é o teste de paternidade. É o DNA. Mas a medicina legal, até uns anos atrás, usava critérios como a cor dos olhos, o que já deu muita confusão, já desfez casamentos, com dúvida de adultério, pois se achava que era uma coisa definitiva, em Genética, a questão de recessivo e dominante. Hoje sabemos que a cor do olho depende de vários genes e que duas pessoas de olhos azuis podem ter um filho de olhos castanhos e ninguém pulou a cerca. Mas quanta estupidez não se fez com isso. Agora é o DNA que resolve tudo. Mas tem muito mais, como a entomologia forense, que usa insetos, por exemplo. De acordo com o tipo de larva, que se acha em um cadáver, pode-se dizer quando morreu, de que forma morreu. AE - Além desses usos ?individuais?, a Bioética e o Biodireito deverão definir quando e como usar a biotecnologia em questões mais amplas, como as ambientais? Por exemplo, quando e onde plantar transgênicos ou o quanto uma fábrica pode ser poluidora? Nivar Gobbi - Exatamente, a Bioética e o Biodireito vão ter que estabelecer esses limites. Por exemplo, qual o preço do ar? Até pouco tempo, a água não tinha preço, agora tem. O próximo é o ar. E mesmo hoje é fácil de calcular. É só ir aos hospitais em época de queimada ou de inverno com alta poluição e ver quanto está custando o tratamento de pessoas com asma ou outros distúrbios respiratórios. Essas são questões clássicas de Bioética. AE - Mas esses custos não inviabilizarão os investimentos necessários para resolver os mesmos problemas ambientais que se pretende combater? Nivar Gobbi - Compensação ambiental hoje é uma palavra mágica. Compensar o que? Perdeu-se uma coisa que levou milhões de anos para acontecer. Há alguma coisa que compense isso? Mas pode chegar um momento que vai ser necessário. Temos boa parte da população passando fome. E isso tem jeito de resolver. Mas a legislação ambiental deveria se sobrepor a todas as outras. AE - O senhor está falando da capacidade de suporte ambiental do planeta? Nivar Gobbi - Exato. E isso tem tudo a ver até com criminalidade. Não adianta colocar muitos carros da Rota se não resolver o problema ambiental. Se você pegar o produto bruto do mundo e dividir por 6 bilhões, vai encontrar um valor baixo. Tem alguma coisa errada. Outra coisa é o tamanho das cidades. Estamos vendo todo dia acontecerem enchentes. Se se continuar impermeabilizando cada vez mais o solo, a água vai descer como pode. O rio não tem culpa. Quando você impermeabiliza, a água desce como canhão. Se limpar todos os bueiros, a água vai descer ainda mais rápido. Por isso, tivemos que inventar os piscinões. Não há dinheiro no mundo que vá acertar isso. Por que não decidimos o tamanho das cidades? Mas e como ficará o direito de ir e vir? Se queremos ter uma chance, devemos pensar que o direito ambiental está acima de tudo. É uma nova maneira de pensar. AE - Como isso muda o velho paradigma ?o meu direito termina onde começa o do outro?? Parece cada vez mais difícil estabelecer esses limites, quando se extrapola para uso da água ou do ar. Nivar Gobbi - Realmente. Não dá mais para dizer ?eu vou deixar a torneira aberta, porque é minha e eu pago a conta? ou ?quero cantar uma ópera inteira no chuveiro?. Mudou o paradigma.

O desenvolvimento acelerado da biotecnologia, justamente no momento em que cresce a consciência em relação à escassez dos recursos naturais, tem renovado as discussões sobre a capacidade da humanidade para resolver problemas crônicos, como a fome, ou até para garantir sua sobrevivência. Mas esta biotecnologia, ao mesmo tempo milagrosa e assustadora, também impõe ao mundo uma nova maneira de pensar e um novo leque de valores, ainda não assimilados. Entender essa realidade e se antecipar às demandas, que virão, são os objetivos do 1o Congresso Brasileiro de Legislação Ambiental, Bioética e Biodireito, que a Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) promove, de 9 a 11 de maio, em Ribeirão Preto. Convencido de que a maior causa dos problemas da humanidade é ambiental, o diretor do Centro de Estudos Ambientais da Unesp, Nivar Gobbi, idealizador do evento, falou à Agência Estado sobre os conceitos, que pretende discutir. Biólogo, bacharel em Direito, mestre e doutor em Genética e livre docente em Ecologia, o pesquisador é o retrato da visão holística, que defende no tratamento do tema. Agência Estado - O que é a Bioética e o que ela vai mudar no campo do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - Não se pode mais falar em meio ambiente da maneira fragmentada e reducionista de séculos atrás. Já temos especialistas em Biodireito nos Estados Unidos e os cursos de Biologia estão discutindo ética. Mas é preciso primeiro mudar nossa forma de pensar. Precisamos de Bioética, porque trabalhamos com a vida. O século passado foi o século da informática e este é, seguramente, o da biotecnologia. Ela vai mudar nossa maneira de ser. E os questionamentos começam com coisas prosaicas, como a forma de utilizar uma cobaia, um determinado tipo de animal ou mesmo o ser humano para aplicação de fármacos ou experimentos genéticos. Vamos chegar à Biomecânica e coisas que jamais se imaginou. Só que nossos códigos Penal e Civil estão muito atrasados. Será que vamos esperar 50 anos para discutir essa questão? A grande crise não é econômica, ideológica ou política, mas puramente ecológica. O homem é um bicho fora dos eixos, que escapou até agora através de vários truques, porém pagamos um preço caro por isso. Assim, temos que discutir a Bioética, que é a ética de como você lida com a vida, e o Biodireito, o direito já ajustado às questões biológicas, que vêm com a biotecnologia e outras coisas que surgirão. AE - Segundo essa teoria, as mudanças em curso na humanidade, devidas à biotecnologia, fazem as questões ambientais, ou biológicas, estarem acima de todas as outras? Nivar Gobbi - Sim. E a próxima legislação ambiental deveria nortear todas as legislações. Ao invés de ter uma legislação penal, uma civil e uma trabalhista, você deveria ter uma grande legislação ambiental que coordenasse essas coisas. Isso não é sonho, nos Estados Unidos, já há muitos advogados trabalhando com Biodireito. É um campo nascente. AE - E no que o Biodireito se diferencia do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - O Direito Ambiental é regulamentador. Regula a caça, a pesca, o funcionamento das indústrias, a colocação de lixão, a manutenção das florestas, a ocupação de solo. O Biodireito não é só isso. Deve dizer o que fazer na hora de patentear um gene, por exemplo. Se você for retirar esse gene de uma vegetação, onde existe uma tribo ou uma reserva ambiental, esse gene pertence a quem? Na verdade, estamos sendo roubados exaustivamente de todas as formas, em nossas flora e fauna. Somos um campo de caça para grandes organizações. Hoje se alguma delas quiser levar uma planta, fala para quem? A quem pertence isso? E quando alguém passar dos limites na manipulação genética? Hoje já manipulamos embriões em gado, para conseguir animais de maior porte, precocidade, mais leite. Quais são os limites? O Biodireito vai ter que resolver. Aí entra a Bioética, para garantir que essa decisão seja da sociedade, pois não deve ser uma decisão de cientistas nem das indústrias. AE - Mas, em termos práticos, que tipo de escolhas a sociedade deverá fazer? Nivar Gobbi - Quando alguém disser que você vai poder escolher o sexo ou a cor dos olhos do seu filho. São as coisas mais comuns, que parecem não ter conseqüências. Mas, em alguns casos, têm. Na China, por exemplo, onde se faz um controle de sexo e o número de homens é muito maior do que o de mulheres. Não temos a menor idéia do que vai acontecer. Não há relato de nenhuma espécie, que tenha uma relação de 20 para um entre os sexos, principalmente entre mamíferos. AE - O Brasil está preparado para essa discussão? Nivar Gobbi - Países democráticos facilitam a discussão. Mas, apesar disso, o Brasil é um país perigoso, por conta da cultura de que há leis que ?pegam? e que ?não pegam?. A lei diz que 20% das propriedades rurais têm que estar florestadas. Não pegou por conta do fator econômico e porque não se pode colocar leis sem discutir com a sociedade. AE - Mas estas não são questões gerais de ética? Por que criar uma nova nomenclatura? Nivar Gobbi - A ética deveria compor tudo, mas tive que usar o termo Bioética para chamar a atenção, é uma bandeira. Quero enfatizar isso. A ética permeia tudo, mas hoje existem coisas que não sei mais se são éticas. Por exemplo, quando você chega em um pedágio, com todos aqueles carros acelerando e liberando uma série de produtos tóxicos. Será que aqueles funcionários que estão ali têm idéia do que estão ingerindo por dia? Alguém já conversou com eles a esse respeito? Isso é ético? É bioético? AE - Estamos então falando em direito à informação, como vem sendo discutido no caso dos transgênicos? Nivar Gobbi - Ficamos muito nos transgênicos, que são sim um caso de direito à informação. Mas a pergunta é: o homem vai parar em um limite? Tenho uma preocupação, pois ele não vai. Nós nos movimentamos pelo lucro e sempre tem alguém que quer ir além. Pesquisadores disputam ferozmente entre eles, para encontrar brechas, que dêem uma sensação de imortalidade, de glória, isso também é perigoso. Tenho a impressão de que vamos avançar sem parar. Mas precisamos de algum tipo de limite. Ou pelo menos, que a sociedade decida até onde vamos. Vamos parar em um tipo de clonagem de órgãos? Hoje me parece meio difícil. Há uns 30 anos, quando se fez o primeiro transplante, parecia uma loucura tirar o coração de uma pessoa para outra. Era ético ou não? Hoje parece uma coisa superada. AE - Esse tipo de discussão aconteceu também quando surgiu o bebê de proveta e, no entanto, hoje é um procedimento normal e bem aceito... Nivar Gobbi - Hoje é uma coisa corriqueira, embora não se saiba ainda qual o efeito a longo prazo. Todas essas coisas poderão nos afetar no futuro e precisamos saber se nossa evolução no campo do comportamento é suficiente para acompanhar a biotecnologia. Outra pergunta a ser feita é: a biotecnologia vai ser boa para quem? Sou geneticista e trabalho com ambiente e sei que essas manipulações gênicas, curas e operações vão ser caríssimas. Quem vai pagar, os planos de saúde? Não, isso terá alcance para uma população pequeníssima, de alta renda. AE - Sabemos que o mundo tecnológico não resolveu questões básicas, como alimentação. Existe uma maneira, através da Bioética, de comprometer a ciência com esse tipo de problema? Nivar Gobbi - Não é utópico, desde que tenhamos o engajamento da sociedade. Quem é que paga o serviço científico? É a sociedade, o imposto não sai do ar. Então ela tem direito de nos cobrar um tipo de comportamento ético. No entanto, hoje existem também as grandes corporações, que contratam cientistas, que não precisam fazer as outras coisas (dar aulas, publicações etc.), por isso andam muito mais rápido do que nós, da universidade, pois tecnologia custa uma fortuna. Isso deverá aumentar ainda mais a distância entre ricos e pobres. Outro agravante são os recursos naturais. Será que os transgênicos ou os melhoramentos genéticos podem minorar a fome? Podem, mas para ter uma revolução agrícola, vai precisar ter cada vez mais água. Se você tem um transgênico que produz mais, precisa ter também mais água, que é o elemento básico. Também precisa de adubo, que vem de petróleo. E quanto tempo vai durar a civilização do petróleo? Ela está na UTI. AE - Se essa tecnologia é muito cara e, além disso, não temos recursos naturais para todos, não corremos o risco de produzir uma sociedade como a do livro Admirável Mundo Novo, com categoria de pessoas? Nivar Gobbi - É evidente que você poderá criar uma categoria de privilegiados. Mas estamos falando em possibilidades. Acho que a manipulação genética em ser humano não tem essa facilidade que se vendeu. Algumas coisas vão mudar, sim, e vai ter um preço, mas não na velocidade que se pensa. AE - Mas poderemos criar uma elite que tenha acesso, por exemplo, à garantia de ter um filho sadio ou que não tenha câncer durante toda a vida? Nivar Gobbi - Ou então vai poder saber quando ele poderá ter câncer. Essa tecnologia poderá ser usada também em termos de trabalho, com um diagnóstico anterior, que diga se a pessoa vai ficar diabética, tem tendência à esquizofrenia ou a ter uma doença de rim. Isso tudo poderá atrapalhar sua contratação para um emprego. E o plano de saúde, como vai ser? Certamente não será o melhor dos mundos. AE - A Justiça brasileira já lida, de alguma forma, com a biotecnologia? Nivar Gobbi - O que se usa hoje, na medicina forense, é o teste de paternidade. É o DNA. Mas a medicina legal, até uns anos atrás, usava critérios como a cor dos olhos, o que já deu muita confusão, já desfez casamentos, com dúvida de adultério, pois se achava que era uma coisa definitiva, em Genética, a questão de recessivo e dominante. Hoje sabemos que a cor do olho depende de vários genes e que duas pessoas de olhos azuis podem ter um filho de olhos castanhos e ninguém pulou a cerca. Mas quanta estupidez não se fez com isso. Agora é o DNA que resolve tudo. Mas tem muito mais, como a entomologia forense, que usa insetos, por exemplo. De acordo com o tipo de larva, que se acha em um cadáver, pode-se dizer quando morreu, de que forma morreu. AE - Além desses usos ?individuais?, a Bioética e o Biodireito deverão definir quando e como usar a biotecnologia em questões mais amplas, como as ambientais? Por exemplo, quando e onde plantar transgênicos ou o quanto uma fábrica pode ser poluidora? Nivar Gobbi - Exatamente, a Bioética e o Biodireito vão ter que estabelecer esses limites. Por exemplo, qual o preço do ar? Até pouco tempo, a água não tinha preço, agora tem. O próximo é o ar. E mesmo hoje é fácil de calcular. É só ir aos hospitais em época de queimada ou de inverno com alta poluição e ver quanto está custando o tratamento de pessoas com asma ou outros distúrbios respiratórios. Essas são questões clássicas de Bioética. AE - Mas esses custos não inviabilizarão os investimentos necessários para resolver os mesmos problemas ambientais que se pretende combater? Nivar Gobbi - Compensação ambiental hoje é uma palavra mágica. Compensar o que? Perdeu-se uma coisa que levou milhões de anos para acontecer. Há alguma coisa que compense isso? Mas pode chegar um momento que vai ser necessário. Temos boa parte da população passando fome. E isso tem jeito de resolver. Mas a legislação ambiental deveria se sobrepor a todas as outras. AE - O senhor está falando da capacidade de suporte ambiental do planeta? Nivar Gobbi - Exato. E isso tem tudo a ver até com criminalidade. Não adianta colocar muitos carros da Rota se não resolver o problema ambiental. Se você pegar o produto bruto do mundo e dividir por 6 bilhões, vai encontrar um valor baixo. Tem alguma coisa errada. Outra coisa é o tamanho das cidades. Estamos vendo todo dia acontecerem enchentes. Se se continuar impermeabilizando cada vez mais o solo, a água vai descer como pode. O rio não tem culpa. Quando você impermeabiliza, a água desce como canhão. Se limpar todos os bueiros, a água vai descer ainda mais rápido. Por isso, tivemos que inventar os piscinões. Não há dinheiro no mundo que vá acertar isso. Por que não decidimos o tamanho das cidades? Mas e como ficará o direito de ir e vir? Se queremos ter uma chance, devemos pensar que o direito ambiental está acima de tudo. É uma nova maneira de pensar. AE - Como isso muda o velho paradigma ?o meu direito termina onde começa o do outro?? Parece cada vez mais difícil estabelecer esses limites, quando se extrapola para uso da água ou do ar. Nivar Gobbi - Realmente. Não dá mais para dizer ?eu vou deixar a torneira aberta, porque é minha e eu pago a conta? ou ?quero cantar uma ópera inteira no chuveiro?. Mudou o paradigma.

O desenvolvimento acelerado da biotecnologia, justamente no momento em que cresce a consciência em relação à escassez dos recursos naturais, tem renovado as discussões sobre a capacidade da humanidade para resolver problemas crônicos, como a fome, ou até para garantir sua sobrevivência. Mas esta biotecnologia, ao mesmo tempo milagrosa e assustadora, também impõe ao mundo uma nova maneira de pensar e um novo leque de valores, ainda não assimilados. Entender essa realidade e se antecipar às demandas, que virão, são os objetivos do 1o Congresso Brasileiro de Legislação Ambiental, Bioética e Biodireito, que a Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) promove, de 9 a 11 de maio, em Ribeirão Preto. Convencido de que a maior causa dos problemas da humanidade é ambiental, o diretor do Centro de Estudos Ambientais da Unesp, Nivar Gobbi, idealizador do evento, falou à Agência Estado sobre os conceitos, que pretende discutir. Biólogo, bacharel em Direito, mestre e doutor em Genética e livre docente em Ecologia, o pesquisador é o retrato da visão holística, que defende no tratamento do tema. Agência Estado - O que é a Bioética e o que ela vai mudar no campo do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - Não se pode mais falar em meio ambiente da maneira fragmentada e reducionista de séculos atrás. Já temos especialistas em Biodireito nos Estados Unidos e os cursos de Biologia estão discutindo ética. Mas é preciso primeiro mudar nossa forma de pensar. Precisamos de Bioética, porque trabalhamos com a vida. O século passado foi o século da informática e este é, seguramente, o da biotecnologia. Ela vai mudar nossa maneira de ser. E os questionamentos começam com coisas prosaicas, como a forma de utilizar uma cobaia, um determinado tipo de animal ou mesmo o ser humano para aplicação de fármacos ou experimentos genéticos. Vamos chegar à Biomecânica e coisas que jamais se imaginou. Só que nossos códigos Penal e Civil estão muito atrasados. Será que vamos esperar 50 anos para discutir essa questão? A grande crise não é econômica, ideológica ou política, mas puramente ecológica. O homem é um bicho fora dos eixos, que escapou até agora através de vários truques, porém pagamos um preço caro por isso. Assim, temos que discutir a Bioética, que é a ética de como você lida com a vida, e o Biodireito, o direito já ajustado às questões biológicas, que vêm com a biotecnologia e outras coisas que surgirão. AE - Segundo essa teoria, as mudanças em curso na humanidade, devidas à biotecnologia, fazem as questões ambientais, ou biológicas, estarem acima de todas as outras? Nivar Gobbi - Sim. E a próxima legislação ambiental deveria nortear todas as legislações. Ao invés de ter uma legislação penal, uma civil e uma trabalhista, você deveria ter uma grande legislação ambiental que coordenasse essas coisas. Isso não é sonho, nos Estados Unidos, já há muitos advogados trabalhando com Biodireito. É um campo nascente. AE - E no que o Biodireito se diferencia do Direito Ambiental? Nivar Gobbi - O Direito Ambiental é regulamentador. Regula a caça, a pesca, o funcionamento das indústrias, a colocação de lixão, a manutenção das florestas, a ocupação de solo. O Biodireito não é só isso. Deve dizer o que fazer na hora de patentear um gene, por exemplo. Se você for retirar esse gene de uma vegetação, onde existe uma tribo ou uma reserva ambiental, esse gene pertence a quem? Na verdade, estamos sendo roubados exaustivamente de todas as formas, em nossas flora e fauna. Somos um campo de caça para grandes organizações. Hoje se alguma delas quiser levar uma planta, fala para quem? A quem pertence isso? E quando alguém passar dos limites na manipulação genética? Hoje já manipulamos embriões em gado, para conseguir animais de maior porte, precocidade, mais leite. Quais são os limites? O Biodireito vai ter que resolver. Aí entra a Bioética, para garantir que essa decisão seja da sociedade, pois não deve ser uma decisão de cientistas nem das indústrias. AE - Mas, em termos práticos, que tipo de escolhas a sociedade deverá fazer? Nivar Gobbi - Quando alguém disser que você vai poder escolher o sexo ou a cor dos olhos do seu filho. São as coisas mais comuns, que parecem não ter conseqüências. Mas, em alguns casos, têm. Na China, por exemplo, onde se faz um controle de sexo e o número de homens é muito maior do que o de mulheres. Não temos a menor idéia do que vai acontecer. Não há relato de nenhuma espécie, que tenha uma relação de 20 para um entre os sexos, principalmente entre mamíferos. AE - O Brasil está preparado para essa discussão? Nivar Gobbi - Países democráticos facilitam a discussão. Mas, apesar disso, o Brasil é um país perigoso, por conta da cultura de que há leis que ?pegam? e que ?não pegam?. A lei diz que 20% das propriedades rurais têm que estar florestadas. Não pegou por conta do fator econômico e porque não se pode colocar leis sem discutir com a sociedade. AE - Mas estas não são questões gerais de ética? Por que criar uma nova nomenclatura? Nivar Gobbi - A ética deveria compor tudo, mas tive que usar o termo Bioética para chamar a atenção, é uma bandeira. Quero enfatizar isso. A ética permeia tudo, mas hoje existem coisas que não sei mais se são éticas. Por exemplo, quando você chega em um pedágio, com todos aqueles carros acelerando e liberando uma série de produtos tóxicos. Será que aqueles funcionários que estão ali têm idéia do que estão ingerindo por dia? Alguém já conversou com eles a esse respeito? Isso é ético? É bioético? AE - Estamos então falando em direito à informação, como vem sendo discutido no caso dos transgênicos? Nivar Gobbi - Ficamos muito nos transgênicos, que são sim um caso de direito à informação. Mas a pergunta é: o homem vai parar em um limite? Tenho uma preocupação, pois ele não vai. Nós nos movimentamos pelo lucro e sempre tem alguém que quer ir além. Pesquisadores disputam ferozmente entre eles, para encontrar brechas, que dêem uma sensação de imortalidade, de glória, isso também é perigoso. Tenho a impressão de que vamos avançar sem parar. Mas precisamos de algum tipo de limite. Ou pelo menos, que a sociedade decida até onde vamos. Vamos parar em um tipo de clonagem de órgãos? Hoje me parece meio difícil. Há uns 30 anos, quando se fez o primeiro transplante, parecia uma loucura tirar o coração de uma pessoa para outra. Era ético ou não? Hoje parece uma coisa superada. AE - Esse tipo de discussão aconteceu também quando surgiu o bebê de proveta e, no entanto, hoje é um procedimento normal e bem aceito... Nivar Gobbi - Hoje é uma coisa corriqueira, embora não se saiba ainda qual o efeito a longo prazo. Todas essas coisas poderão nos afetar no futuro e precisamos saber se nossa evolução no campo do comportamento é suficiente para acompanhar a biotecnologia. Outra pergunta a ser feita é: a biotecnologia vai ser boa para quem? Sou geneticista e trabalho com ambiente e sei que essas manipulações gênicas, curas e operações vão ser caríssimas. Quem vai pagar, os planos de saúde? Não, isso terá alcance para uma população pequeníssima, de alta renda. AE - Sabemos que o mundo tecnológico não resolveu questões básicas, como alimentação. Existe uma maneira, através da Bioética, de comprometer a ciência com esse tipo de problema? Nivar Gobbi - Não é utópico, desde que tenhamos o engajamento da sociedade. Quem é que paga o serviço científico? É a sociedade, o imposto não sai do ar. Então ela tem direito de nos cobrar um tipo de comportamento ético. No entanto, hoje existem também as grandes corporações, que contratam cientistas, que não precisam fazer as outras coisas (dar aulas, publicações etc.), por isso andam muito mais rápido do que nós, da universidade, pois tecnologia custa uma fortuna. Isso deverá aumentar ainda mais a distância entre ricos e pobres. Outro agravante são os recursos naturais. Será que os transgênicos ou os melhoramentos genéticos podem minorar a fome? Podem, mas para ter uma revolução agrícola, vai precisar ter cada vez mais água. Se você tem um transgênico que produz mais, precisa ter também mais água, que é o elemento básico. Também precisa de adubo, que vem de petróleo. E quanto tempo vai durar a civilização do petróleo? Ela está na UTI. AE - Se essa tecnologia é muito cara e, além disso, não temos recursos naturais para todos, não corremos o risco de produzir uma sociedade como a do livro Admirável Mundo Novo, com categoria de pessoas? Nivar Gobbi - É evidente que você poderá criar uma categoria de privilegiados. Mas estamos falando em possibilidades. Acho que a manipulação genética em ser humano não tem essa facilidade que se vendeu. Algumas coisas vão mudar, sim, e vai ter um preço, mas não na velocidade que se pensa. AE - Mas poderemos criar uma elite que tenha acesso, por exemplo, à garantia de ter um filho sadio ou que não tenha câncer durante toda a vida? Nivar Gobbi - Ou então vai poder saber quando ele poderá ter câncer. Essa tecnologia poderá ser usada também em termos de trabalho, com um diagnóstico anterior, que diga se a pessoa vai ficar diabética, tem tendência à esquizofrenia ou a ter uma doença de rim. Isso tudo poderá atrapalhar sua contratação para um emprego. E o plano de saúde, como vai ser? Certamente não será o melhor dos mundos. AE - A Justiça brasileira já lida, de alguma forma, com a biotecnologia? Nivar Gobbi - O que se usa hoje, na medicina forense, é o teste de paternidade. É o DNA. Mas a medicina legal, até uns anos atrás, usava critérios como a cor dos olhos, o que já deu muita confusão, já desfez casamentos, com dúvida de adultério, pois se achava que era uma coisa definitiva, em Genética, a questão de recessivo e dominante. Hoje sabemos que a cor do olho depende de vários genes e que duas pessoas de olhos azuis podem ter um filho de olhos castanhos e ninguém pulou a cerca. Mas quanta estupidez não se fez com isso. Agora é o DNA que resolve tudo. Mas tem muito mais, como a entomologia forense, que usa insetos, por exemplo. De acordo com o tipo de larva, que se acha em um cadáver, pode-se dizer quando morreu, de que forma morreu. AE - Além desses usos ?individuais?, a Bioética e o Biodireito deverão definir quando e como usar a biotecnologia em questões mais amplas, como as ambientais? Por exemplo, quando e onde plantar transgênicos ou o quanto uma fábrica pode ser poluidora? Nivar Gobbi - Exatamente, a Bioética e o Biodireito vão ter que estabelecer esses limites. Por exemplo, qual o preço do ar? Até pouco tempo, a água não tinha preço, agora tem. O próximo é o ar. E mesmo hoje é fácil de calcular. É só ir aos hospitais em época de queimada ou de inverno com alta poluição e ver quanto está custando o tratamento de pessoas com asma ou outros distúrbios respiratórios. Essas são questões clássicas de Bioética. AE - Mas esses custos não inviabilizarão os investimentos necessários para resolver os mesmos problemas ambientais que se pretende combater? Nivar Gobbi - Compensação ambiental hoje é uma palavra mágica. Compensar o que? Perdeu-se uma coisa que levou milhões de anos para acontecer. Há alguma coisa que compense isso? Mas pode chegar um momento que vai ser necessário. Temos boa parte da população passando fome. E isso tem jeito de resolver. Mas a legislação ambiental deveria se sobrepor a todas as outras. AE - O senhor está falando da capacidade de suporte ambiental do planeta? Nivar Gobbi - Exato. E isso tem tudo a ver até com criminalidade. Não adianta colocar muitos carros da Rota se não resolver o problema ambiental. Se você pegar o produto bruto do mundo e dividir por 6 bilhões, vai encontrar um valor baixo. Tem alguma coisa errada. Outra coisa é o tamanho das cidades. Estamos vendo todo dia acontecerem enchentes. Se se continuar impermeabilizando cada vez mais o solo, a água vai descer como pode. O rio não tem culpa. Quando você impermeabiliza, a água desce como canhão. Se limpar todos os bueiros, a água vai descer ainda mais rápido. Por isso, tivemos que inventar os piscinões. Não há dinheiro no mundo que vá acertar isso. Por que não decidimos o tamanho das cidades? Mas e como ficará o direito de ir e vir? Se queremos ter uma chance, devemos pensar que o direito ambiental está acima de tudo. É uma nova maneira de pensar. AE - Como isso muda o velho paradigma ?o meu direito termina onde começa o do outro?? Parece cada vez mais difícil estabelecer esses limites, quando se extrapola para uso da água ou do ar. Nivar Gobbi - Realmente. Não dá mais para dizer ?eu vou deixar a torneira aberta, porque é minha e eu pago a conta? ou ?quero cantar uma ópera inteira no chuveiro?. Mudou o paradigma.

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