Covid-19: Conheça o biólogo caçador de vírus por trás da investigação no mercado de Wuhan


Pesquisa de Edward Holmes sobre o novo coronavírus lhe rendeu reconhecimento internacional, até mesmo o principal prêmio de ciência da Austrália

Por Carl Zimmer
Atualização:

Assim que Edward Holmes viu os olhos escuros dos cães-guaxinim olhando para ele através das barras da jaula de ferro, ele soube que tinha de capturar o momento.

Era outubro de 2014. Holmes, biólogo da Universidade de Sydney, tinha vindo à China para pesquisar centenas de espécies de animais em busca de novos tipos de vírus.

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Em visita a Wuhan, um centro comercial de 11 milhões de pessoas, cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da cidade o levaram ao Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. Nas barraquinhas do espaço mal ventilado, ele viu animais selvagens vivos - cobras, texugos, ratos-almiscarados, pássaros - sendo vendidos como alimento. Mas foram os cães-guaxinim que o fizeram pegar o iPhone.

Um dos maiores especialistas mundiais em evolução de vírus, Holmes tinha uma compreensão íntima de como os vírus podem saltar de uma espécie para outra - às vezes com consequências mortais. O surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês) de 2002 foi causado por um coronavírus de morcego que infectara algum tipo de mamífero selvagem antes de infectar humanos na China. Entre os principais suspeitos de ser esse animal intermediário: o fofo cão-guaxinim.

Edward Holmes, biólogo da Universidade de Sydney Foto: David Maurice Smith/ New York Times
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“Não há exemplo melhor de emergência de doenças esperando para acontecer”, disse Holmes, 57 anos.

O inglês alto e careca fazia o possível para não chamar atenção enquanto tirava a foto dos cães-guaxinim, que parecem guaxinins de pernas compridas, mas estão mais próximos das raposas. Ele tirou mais algumas fotos de outros animais nas suas gaiolas. Quando um vendedor começou a bater em uma das criaturas, Holmes guardou o telefone no bolso e fugiu dali.

As fotos ficaram esquecidas até o último dia de 2019. Navegando pelo Twitter em sua casa em Sydney, Holmes soube de um surto alarmante em Wuhan: uma pneumonia semelhante à SARS, com casos iniciais ligados ao mercado de Huanan. Os cães-guaxinim, pensou ele.

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“Era uma pandemia esperando para acontecer. E aí aconteceu mesmo”, disse ele.

A partir daquele dia, Holmes foi arrastado para um vórtice de descobertas e controvérsias relacionadas às origens do vírus - fazendo-o se sentir “o Forrest Gump da covid”, brincou ele. Holmes e um colega chinês foram os primeiros a compartilhar o genoma do novo coronavírus com o mundo. E desde então ele descobriu pistas cruciais sobre como o patógeno provavelmente evoluíra de coronavírus de morcego.

No controverso debate geopolítico sobre a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório de Wuhan, Holmes se tornou um dos mais fortes defensores de uma teoria oposta: o vírus saltou de um animal selvagem. Junto com colegas nos Estados Unidos, ele publicou recentemente pistas reveladoras de que cães-guaxinins mantidos na gaiola de ferro que ele fotografou em 2014 podem ter desencadeado a pandemia.

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A pesquisa de Holmes sobre a covid lhe rendeu reconhecimento internacional, até mesmo o principal prêmio de ciência da Austrália. Mas também gerou alegações de que sua pesquisa foi supervisionada pelos militares chineses, além de uma enxurrada de ataques nas redes sociais e até ameaças de morte.

Apesar de tudo isso, Holmes continuou publicando uma torrente de estudos sobre a covid. Colegas de longa data atribuem sua produção constante em tempos instáveis a um talento excepcional para formar grandes equipes científicas e à disposição de mergulhar em debates controversos quando ele acha que são importantes.

“Ele é o tipo certo de pessoa com o tipo certo de mentalidade, porque tem uma mente aberta, engajada e pensativa, e não fica na defensiva”, disse Pardis Sabeti, geneticista do Broad Institute do MIT e de Harvard que trabalhou com Holmes no Ebola.

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Imagem fornecida por Edward Holmes do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Caça aos vírus

Criado no oeste da Inglaterra, o jovem Edward Holmes teve um professor de biologia que tinha um pôster de um orangotango na parede, com os dizeres: “Eu não sou seu primo”.

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O professor dizia à classe para não ler aquele lixo sobre evolução no livro didático, o que só deixava o garoto de 14 anos ainda mais ansioso para mergulhar nessas páginas.

Ele começou a estudar a evolução de macacos e humanos, depois se voltou para o estudo dos vírus. Ao longo de três décadas - trabalhando em Edimburgo, Oxford, Pensilvânia e finalmente Sydney - Holmes publicou mais de 600 artigos sobre a evolução de vírus como HIV, influenza e Ebola.

Quando foi convidado a ir para a Universidade de Sydney, em 2012, ele aproveitou a oportunidade para se aproximar da Ásia, onde temia que o comércio de animais selvagens pudesse desencadear uma nova pandemia.

“Ele vai aonde tem fogo”, disse Andrew Read, biólogo evolucionário da Penn State University, que trabalhou com Holmes na época.

Enquanto se preparava para a mudança, Holmes recebeu um e-mail inesperado de um virologista chinês chamado Yong-Zhen Zhang, perguntando se Holmes gostaria de estudar vírus com ele na China. Sua colaboração rapidamente se expandiu para uma busca abrangente por novos vírus em centenas de espécies de animais. Eles estudaram aranhas arrancadas das paredes de cabanas e peixes trazidos do Mar da China Meridional.

Eles acabaram encontrando mais de 2 mil espécies de vírus novas para a ciência, com muitas surpresas. Os cientistas costumavam pensar que os vírus da gripe infectavam principalmente pássaros, por exemplo, que poderiam transmiti-los a mamíferos como nós. Mas Holmes e Zhang descobriram que peixes e sapos também contraem gripe.

“Foi bastante esclarecedor”, disse Andrew Rambaut, biólogo evolucionário da Universidade de Edimburgo, que não esteve envolvido nas pesquisas. “A diversidade de vírus que existem por aí é enorme”.

Em uma de suas viagens de pesquisa em 2014, Holmes e Zhang formaram uma parceria com cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Wuhan para pesquisar animais na província vizinha de Hubei. Os cientistas do Centro os levaram ao mercado de Huanan para ver um caso preocupante de comércio de animais selvagens.

Após a visita, Holmes esperava que ele e seus colegas pudessem usar as técnicas de sequenciamento genético que desenvolveram para suas pesquisas com animais para procurar vírus nos animais do mercado. Mas seus colegas estavam mais interessados em procurar vírus em pessoas doentes.

Zhang e Holmes começaram a trabalhar com médicos do Hospital Central de Wuhan, pescando RNA viral em amostras de fluido pulmonar de pessoas com pneumonia. Por causa dessa colaboração, ele foi nomeado professor convidado do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças de 2014 a 2020.

No mês passado, Holmes e seus colegas publicaram seu primeiro relatório sobre o projeto, com base em amostras de 408 pacientes coletados em 2016 e 2017. Muitos estavam doentes com mais de um vírus, e alguns também estavam infectados com bactérias ou fungos. Os pesquisadores viram até evidências de um surto oculto: seis pacientes foram infectados com enterovírus geneticamente idênticos.

Holmes e Zhang também continuaram pesquisando a virosfera, examinando solo, sedimentos e fezes de animais de toda a China. Mas, no final de dezembro de 2019, esse trabalho foi interrompido.

A chegada da covid

Quando Zhang ficou sabendo de uma nova pneumonia em Wuhan, ele pediu a colegas do Hospital Central da cidade que enviassem fluido pulmonar de um paciente. O material chegou em 3 de janeiro e ele usou as técnicas que ele e Holmes haviam aperfeiçoado para procurar vírus. Dois dias depois, a equipe de Zhang completou o genoma de um novo coronavírus, o SARS-CoV-2.

Outras equipes científicas na China também sequenciaram o vírus. Mas nenhuma o tornou público, porque o governo chinês proibira os cientistas de publicar informações a respeito.

Zhang e Holmes começaram a escrever um artigo sobre o genoma, que mais tarde apareceria na revista Nature. Zhang ignorou a proibição e carregou o genoma do vírus em um banco de dados público hospedado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Mas o banco de dados requer uma longa revisão de novos genomas e, por isso, dias se passaram sem que as informações ficassem disponíveis online.

Holmes instou seu colaborador a encontrar outra maneira de compartilhar o genoma com o mundo. “Era algo que tinha que acontecer”, disse Holmes.

Em 10 de janeiro, eles concordaram em compartilhá-lo em um fórum para especialistas em vírus, e Holmes o carregou online.

Essa decisão foi um ponto de virada, de acordo com Jason McLellan, biólogo estrutural da Universidade do Texas em Austin, que trabalhou na tecnologia de RNA mensageiro que possibilitou a vacina da Moderna. Somente com essa sequência genética os pesquisadores poderiam começar a trabalhar em testes, medicamentos e vacinas. Até então, disse McLellan, cientistas como ele eram corredores esperando a largada.

“A corrida começou no momento em que Edward e Yong-Zhen postaram a sequência do genoma”, disse ele. “Imediatamente, o Twitter ficou agitado e e-mails não pararam mais de chegar”.

Mas, de acordo com relatos da mídia chinesa, Zhang pagou um preço por desafiar a proibição de informações de seu país. No dia seguinte ao lançamento da sequência do genoma, seu laboratório no Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai recebeu ordens de fechamento para “retificação”.

Mais tarde, Zhang insistiu com um repórter da Nature que a mudança não era uma punição e que seu laboratório reabriu tempos depois. Os pedidos para Zhang dar declarações para esta reportagem não foram respondidos. Holmes se recusou a comentar sobre a atual situação de Zhang.

Depois que o genoma do coronavírus foi sequenciado, Holmes ficou intrigado ao ver alguns pedaços de material genético que pareciam ter sido colocados lá por meio de engenharia genética.

Em uma conferência telefônica no dia 1º de fevereiro de 2020, Holmes compartilhou suas preocupações com outros especialistas em vírus, entre eles o Dr. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, e o Dr. Anthony Fauci, o principal especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos. Outros cientistas explicaram que essas características do genoma poderiam facilmente ter sido produzidas através da evolução natural dos vírus.

Logo depois, Holmes ajudou pesquisadores da Universidade de Hong Kong a analisar um coronavírus, encontrado em um pangolim, que estava intimamente relacionado ao SARS-CoV-2. O vírus parecia especialmente semelhante em sua proteína de superfície, chamada spike, a qual o vírus usa para entrar nas células.

Encontrar uma assinatura biológica tão distinta em um vírus de um animal selvagem fortaleceu a confiança de Holmes de que o SARS-CoV-2 não era produto da engenharia genética. “De repente, o que parece estranho fica claramente natural”, disse Holmes.

Holmes e seus colegas apresentaram algumas dessas descobertas em uma carta publicada em março de 2020. No mesmo mês, ele publicou algumas de suas fotos de animais enjaulados no mercado de Huanan em um comentário que escreveu com Zhang, sugerindo que poderia ter sido o local de um transbordamento patogênico.

Mas a ideia de que o vírus havia sido projetado em laboratório continuou ganhando força, e Holmes foi atacado por seu trabalho com cientistas chineses.

Em maio de 2020, o Daily Telegraph, um jornal australiano, o vinculou aos militares chineses com um artigo intitulado “Como o Exército Vermelho supervisionou a pesquisa sobre o coronavírus”.

O jornal baseou sua alegação no fato de que dois cientistas envolvidos no estudo do pangolim tinham afiliações secundárias com um laboratório militar chinês. Holmes, que disse que não conhece os cientistas, observou que eles ajudaram no sequenciamento do RNA do tecido do pangolim.

A Universidade de Sydney respondeu em nome de Holmes com uma declaração: “Defendemos fortemente o direito de nossos pesquisadores de colaborar com cientistas de todo o mundo de acordo com todas as leis australianas e diretrizes governamentais”. A universidade observou que a pesquisa de Holmes foi totalmente apoiada por financiamentos australianos.

No final de 2020, a Organização Mundial da Saúde organizou um grupo de especialistas para viajar à China para investigar a origem do novo coronavírus. Holmes lhes enviou suas fotos do mercado de 2014, mas elas não entraram no relatório da OMS.

“Algumas pessoas da delegação chinesa sugeriram que eu poderia ter fabricado essas fotos”, disse Holmes. (Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance e um dos pesquisadores do relatório da OMS, corroborou este relato: os investigadores chineses disseram que as fotos “não eram verificáveis e poderiam ter sido falsificadas”, disse Daszak).

Imagem fornecida por Edward Holmes mostra cães-guaxinim no mercado Huanan, em Wuhan, em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Evitando transbordamentos futuros

Em relatórios publicados no mês passado, Holmes e mais de 30 colaboradores analisaram os primeiros casos de covid, descobriram que estes se aglomeravam no mercado e examinaram as mutações em amostras iniciais de coronavírus.

Chris Newman, biólogo da vida selvagem da Universidade de Oxford e coautor de um dos estudos, disse que seus colegas chineses viram vários mamíferos selvagens à venda no mercado de Huanan no final de 2019. Qualquer um deles pode ter sido o responsável pela pandemia, disse Holmes.

“Ainda não dá para provar que foram os cães-guaxinins, mas eles certamente são suspeitos”, disse ele.

Alguns críticos questionaram até que ponto Holmes e seus colegas podem ter certeza de que a culpa é de um animal de Huanan. Embora muitos dos primeiros casos de covid tenham sido vinculados ao mercado, é possível que outros casos de pneumonia ainda não tenham sido reconhecidos como casos iniciais de covid.

“Ainda sabemos muito pouco sobre os primeiros casos - e provavelmente existem casos adicionais que nem conhecemos - para tirar conclusões finais”, disse Filippa Lentzos, especialista em biossegurança do King’s College London. “Continuo aberto tanto a transbordamentos naturais quanto a origens relacionadas à pesquisa”.

Outro problema: se os animais infectados de fato iniciaram a pandemia, eles nunca serão encontrados. Em janeiro de 2020, quando pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês chegaram ao mercado para investigar, todos os animais haviam desaparecido.

Mas Holmes argumenta que há evidências mais do que suficientes de que os mercados de animais podem desencadear outra pandemia. No mês passado, ele e colegas chineses publicaram um estudo sobre 18 espécies de animais vendidas com frequência em mercados.

“Os animais estavam completamente cheios de vírus”, disse Holmes.

Mais de 100 vírus que infectam vertebrados vieram à tona, incluindo vários patógenos que podem infectar humanos. E alguns desses vírus haviam recentemente ultrapassado a barreira das espécies - gripe aviária infectando texugos, coronavírus de cães infectando cães-guaxinins. Alguns dos animais também estavam doentes com vírus humanos.

A maneira mais simples de reduzir as chances de futuras pandemias, argumentou Holmes, é realizar estudos como este na interface entre os humanos e a vida selvagem. Sua própria experiência na descoberta de novos vírus o convenceu de que não faz sentido tentar catalogar todas as ameaças potenciais na vida selvagem.

“É impossível colher amostras de todos os vírus existentes e descobrir qual deles pode infectar humanos”, disse Holmes. “Não acho viável.”

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Assim que Edward Holmes viu os olhos escuros dos cães-guaxinim olhando para ele através das barras da jaula de ferro, ele soube que tinha de capturar o momento.

Era outubro de 2014. Holmes, biólogo da Universidade de Sydney, tinha vindo à China para pesquisar centenas de espécies de animais em busca de novos tipos de vírus.

Em visita a Wuhan, um centro comercial de 11 milhões de pessoas, cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da cidade o levaram ao Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. Nas barraquinhas do espaço mal ventilado, ele viu animais selvagens vivos - cobras, texugos, ratos-almiscarados, pássaros - sendo vendidos como alimento. Mas foram os cães-guaxinim que o fizeram pegar o iPhone.

Um dos maiores especialistas mundiais em evolução de vírus, Holmes tinha uma compreensão íntima de como os vírus podem saltar de uma espécie para outra - às vezes com consequências mortais. O surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês) de 2002 foi causado por um coronavírus de morcego que infectara algum tipo de mamífero selvagem antes de infectar humanos na China. Entre os principais suspeitos de ser esse animal intermediário: o fofo cão-guaxinim.

Edward Holmes, biólogo da Universidade de Sydney Foto: David Maurice Smith/ New York Times

“Não há exemplo melhor de emergência de doenças esperando para acontecer”, disse Holmes, 57 anos.

O inglês alto e careca fazia o possível para não chamar atenção enquanto tirava a foto dos cães-guaxinim, que parecem guaxinins de pernas compridas, mas estão mais próximos das raposas. Ele tirou mais algumas fotos de outros animais nas suas gaiolas. Quando um vendedor começou a bater em uma das criaturas, Holmes guardou o telefone no bolso e fugiu dali.

As fotos ficaram esquecidas até o último dia de 2019. Navegando pelo Twitter em sua casa em Sydney, Holmes soube de um surto alarmante em Wuhan: uma pneumonia semelhante à SARS, com casos iniciais ligados ao mercado de Huanan. Os cães-guaxinim, pensou ele.

“Era uma pandemia esperando para acontecer. E aí aconteceu mesmo”, disse ele.

A partir daquele dia, Holmes foi arrastado para um vórtice de descobertas e controvérsias relacionadas às origens do vírus - fazendo-o se sentir “o Forrest Gump da covid”, brincou ele. Holmes e um colega chinês foram os primeiros a compartilhar o genoma do novo coronavírus com o mundo. E desde então ele descobriu pistas cruciais sobre como o patógeno provavelmente evoluíra de coronavírus de morcego.

No controverso debate geopolítico sobre a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório de Wuhan, Holmes se tornou um dos mais fortes defensores de uma teoria oposta: o vírus saltou de um animal selvagem. Junto com colegas nos Estados Unidos, ele publicou recentemente pistas reveladoras de que cães-guaxinins mantidos na gaiola de ferro que ele fotografou em 2014 podem ter desencadeado a pandemia.

A pesquisa de Holmes sobre a covid lhe rendeu reconhecimento internacional, até mesmo o principal prêmio de ciência da Austrália. Mas também gerou alegações de que sua pesquisa foi supervisionada pelos militares chineses, além de uma enxurrada de ataques nas redes sociais e até ameaças de morte.

Apesar de tudo isso, Holmes continuou publicando uma torrente de estudos sobre a covid. Colegas de longa data atribuem sua produção constante em tempos instáveis a um talento excepcional para formar grandes equipes científicas e à disposição de mergulhar em debates controversos quando ele acha que são importantes.

“Ele é o tipo certo de pessoa com o tipo certo de mentalidade, porque tem uma mente aberta, engajada e pensativa, e não fica na defensiva”, disse Pardis Sabeti, geneticista do Broad Institute do MIT e de Harvard que trabalhou com Holmes no Ebola.

Imagem fornecida por Edward Holmes do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Caça aos vírus

Criado no oeste da Inglaterra, o jovem Edward Holmes teve um professor de biologia que tinha um pôster de um orangotango na parede, com os dizeres: “Eu não sou seu primo”.

O professor dizia à classe para não ler aquele lixo sobre evolução no livro didático, o que só deixava o garoto de 14 anos ainda mais ansioso para mergulhar nessas páginas.

Ele começou a estudar a evolução de macacos e humanos, depois se voltou para o estudo dos vírus. Ao longo de três décadas - trabalhando em Edimburgo, Oxford, Pensilvânia e finalmente Sydney - Holmes publicou mais de 600 artigos sobre a evolução de vírus como HIV, influenza e Ebola.

Quando foi convidado a ir para a Universidade de Sydney, em 2012, ele aproveitou a oportunidade para se aproximar da Ásia, onde temia que o comércio de animais selvagens pudesse desencadear uma nova pandemia.

“Ele vai aonde tem fogo”, disse Andrew Read, biólogo evolucionário da Penn State University, que trabalhou com Holmes na época.

Enquanto se preparava para a mudança, Holmes recebeu um e-mail inesperado de um virologista chinês chamado Yong-Zhen Zhang, perguntando se Holmes gostaria de estudar vírus com ele na China. Sua colaboração rapidamente se expandiu para uma busca abrangente por novos vírus em centenas de espécies de animais. Eles estudaram aranhas arrancadas das paredes de cabanas e peixes trazidos do Mar da China Meridional.

Eles acabaram encontrando mais de 2 mil espécies de vírus novas para a ciência, com muitas surpresas. Os cientistas costumavam pensar que os vírus da gripe infectavam principalmente pássaros, por exemplo, que poderiam transmiti-los a mamíferos como nós. Mas Holmes e Zhang descobriram que peixes e sapos também contraem gripe.

“Foi bastante esclarecedor”, disse Andrew Rambaut, biólogo evolucionário da Universidade de Edimburgo, que não esteve envolvido nas pesquisas. “A diversidade de vírus que existem por aí é enorme”.

Em uma de suas viagens de pesquisa em 2014, Holmes e Zhang formaram uma parceria com cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Wuhan para pesquisar animais na província vizinha de Hubei. Os cientistas do Centro os levaram ao mercado de Huanan para ver um caso preocupante de comércio de animais selvagens.

Após a visita, Holmes esperava que ele e seus colegas pudessem usar as técnicas de sequenciamento genético que desenvolveram para suas pesquisas com animais para procurar vírus nos animais do mercado. Mas seus colegas estavam mais interessados em procurar vírus em pessoas doentes.

Zhang e Holmes começaram a trabalhar com médicos do Hospital Central de Wuhan, pescando RNA viral em amostras de fluido pulmonar de pessoas com pneumonia. Por causa dessa colaboração, ele foi nomeado professor convidado do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças de 2014 a 2020.

No mês passado, Holmes e seus colegas publicaram seu primeiro relatório sobre o projeto, com base em amostras de 408 pacientes coletados em 2016 e 2017. Muitos estavam doentes com mais de um vírus, e alguns também estavam infectados com bactérias ou fungos. Os pesquisadores viram até evidências de um surto oculto: seis pacientes foram infectados com enterovírus geneticamente idênticos.

Holmes e Zhang também continuaram pesquisando a virosfera, examinando solo, sedimentos e fezes de animais de toda a China. Mas, no final de dezembro de 2019, esse trabalho foi interrompido.

A chegada da covid

Quando Zhang ficou sabendo de uma nova pneumonia em Wuhan, ele pediu a colegas do Hospital Central da cidade que enviassem fluido pulmonar de um paciente. O material chegou em 3 de janeiro e ele usou as técnicas que ele e Holmes haviam aperfeiçoado para procurar vírus. Dois dias depois, a equipe de Zhang completou o genoma de um novo coronavírus, o SARS-CoV-2.

Outras equipes científicas na China também sequenciaram o vírus. Mas nenhuma o tornou público, porque o governo chinês proibira os cientistas de publicar informações a respeito.

Zhang e Holmes começaram a escrever um artigo sobre o genoma, que mais tarde apareceria na revista Nature. Zhang ignorou a proibição e carregou o genoma do vírus em um banco de dados público hospedado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Mas o banco de dados requer uma longa revisão de novos genomas e, por isso, dias se passaram sem que as informações ficassem disponíveis online.

Holmes instou seu colaborador a encontrar outra maneira de compartilhar o genoma com o mundo. “Era algo que tinha que acontecer”, disse Holmes.

Em 10 de janeiro, eles concordaram em compartilhá-lo em um fórum para especialistas em vírus, e Holmes o carregou online.

Essa decisão foi um ponto de virada, de acordo com Jason McLellan, biólogo estrutural da Universidade do Texas em Austin, que trabalhou na tecnologia de RNA mensageiro que possibilitou a vacina da Moderna. Somente com essa sequência genética os pesquisadores poderiam começar a trabalhar em testes, medicamentos e vacinas. Até então, disse McLellan, cientistas como ele eram corredores esperando a largada.

“A corrida começou no momento em que Edward e Yong-Zhen postaram a sequência do genoma”, disse ele. “Imediatamente, o Twitter ficou agitado e e-mails não pararam mais de chegar”.

Mas, de acordo com relatos da mídia chinesa, Zhang pagou um preço por desafiar a proibição de informações de seu país. No dia seguinte ao lançamento da sequência do genoma, seu laboratório no Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai recebeu ordens de fechamento para “retificação”.

Mais tarde, Zhang insistiu com um repórter da Nature que a mudança não era uma punição e que seu laboratório reabriu tempos depois. Os pedidos para Zhang dar declarações para esta reportagem não foram respondidos. Holmes se recusou a comentar sobre a atual situação de Zhang.

Depois que o genoma do coronavírus foi sequenciado, Holmes ficou intrigado ao ver alguns pedaços de material genético que pareciam ter sido colocados lá por meio de engenharia genética.

Em uma conferência telefônica no dia 1º de fevereiro de 2020, Holmes compartilhou suas preocupações com outros especialistas em vírus, entre eles o Dr. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, e o Dr. Anthony Fauci, o principal especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos. Outros cientistas explicaram que essas características do genoma poderiam facilmente ter sido produzidas através da evolução natural dos vírus.

Logo depois, Holmes ajudou pesquisadores da Universidade de Hong Kong a analisar um coronavírus, encontrado em um pangolim, que estava intimamente relacionado ao SARS-CoV-2. O vírus parecia especialmente semelhante em sua proteína de superfície, chamada spike, a qual o vírus usa para entrar nas células.

Encontrar uma assinatura biológica tão distinta em um vírus de um animal selvagem fortaleceu a confiança de Holmes de que o SARS-CoV-2 não era produto da engenharia genética. “De repente, o que parece estranho fica claramente natural”, disse Holmes.

Holmes e seus colegas apresentaram algumas dessas descobertas em uma carta publicada em março de 2020. No mesmo mês, ele publicou algumas de suas fotos de animais enjaulados no mercado de Huanan em um comentário que escreveu com Zhang, sugerindo que poderia ter sido o local de um transbordamento patogênico.

Mas a ideia de que o vírus havia sido projetado em laboratório continuou ganhando força, e Holmes foi atacado por seu trabalho com cientistas chineses.

Em maio de 2020, o Daily Telegraph, um jornal australiano, o vinculou aos militares chineses com um artigo intitulado “Como o Exército Vermelho supervisionou a pesquisa sobre o coronavírus”.

O jornal baseou sua alegação no fato de que dois cientistas envolvidos no estudo do pangolim tinham afiliações secundárias com um laboratório militar chinês. Holmes, que disse que não conhece os cientistas, observou que eles ajudaram no sequenciamento do RNA do tecido do pangolim.

A Universidade de Sydney respondeu em nome de Holmes com uma declaração: “Defendemos fortemente o direito de nossos pesquisadores de colaborar com cientistas de todo o mundo de acordo com todas as leis australianas e diretrizes governamentais”. A universidade observou que a pesquisa de Holmes foi totalmente apoiada por financiamentos australianos.

No final de 2020, a Organização Mundial da Saúde organizou um grupo de especialistas para viajar à China para investigar a origem do novo coronavírus. Holmes lhes enviou suas fotos do mercado de 2014, mas elas não entraram no relatório da OMS.

“Algumas pessoas da delegação chinesa sugeriram que eu poderia ter fabricado essas fotos”, disse Holmes. (Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance e um dos pesquisadores do relatório da OMS, corroborou este relato: os investigadores chineses disseram que as fotos “não eram verificáveis e poderiam ter sido falsificadas”, disse Daszak).

Imagem fornecida por Edward Holmes mostra cães-guaxinim no mercado Huanan, em Wuhan, em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Evitando transbordamentos futuros

Em relatórios publicados no mês passado, Holmes e mais de 30 colaboradores analisaram os primeiros casos de covid, descobriram que estes se aglomeravam no mercado e examinaram as mutações em amostras iniciais de coronavírus.

Chris Newman, biólogo da vida selvagem da Universidade de Oxford e coautor de um dos estudos, disse que seus colegas chineses viram vários mamíferos selvagens à venda no mercado de Huanan no final de 2019. Qualquer um deles pode ter sido o responsável pela pandemia, disse Holmes.

“Ainda não dá para provar que foram os cães-guaxinins, mas eles certamente são suspeitos”, disse ele.

Alguns críticos questionaram até que ponto Holmes e seus colegas podem ter certeza de que a culpa é de um animal de Huanan. Embora muitos dos primeiros casos de covid tenham sido vinculados ao mercado, é possível que outros casos de pneumonia ainda não tenham sido reconhecidos como casos iniciais de covid.

“Ainda sabemos muito pouco sobre os primeiros casos - e provavelmente existem casos adicionais que nem conhecemos - para tirar conclusões finais”, disse Filippa Lentzos, especialista em biossegurança do King’s College London. “Continuo aberto tanto a transbordamentos naturais quanto a origens relacionadas à pesquisa”.

Outro problema: se os animais infectados de fato iniciaram a pandemia, eles nunca serão encontrados. Em janeiro de 2020, quando pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês chegaram ao mercado para investigar, todos os animais haviam desaparecido.

Mas Holmes argumenta que há evidências mais do que suficientes de que os mercados de animais podem desencadear outra pandemia. No mês passado, ele e colegas chineses publicaram um estudo sobre 18 espécies de animais vendidas com frequência em mercados.

“Os animais estavam completamente cheios de vírus”, disse Holmes.

Mais de 100 vírus que infectam vertebrados vieram à tona, incluindo vários patógenos que podem infectar humanos. E alguns desses vírus haviam recentemente ultrapassado a barreira das espécies - gripe aviária infectando texugos, coronavírus de cães infectando cães-guaxinins. Alguns dos animais também estavam doentes com vírus humanos.

A maneira mais simples de reduzir as chances de futuras pandemias, argumentou Holmes, é realizar estudos como este na interface entre os humanos e a vida selvagem. Sua própria experiência na descoberta de novos vírus o convenceu de que não faz sentido tentar catalogar todas as ameaças potenciais na vida selvagem.

“É impossível colher amostras de todos os vírus existentes e descobrir qual deles pode infectar humanos”, disse Holmes. “Não acho viável.”

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Assim que Edward Holmes viu os olhos escuros dos cães-guaxinim olhando para ele através das barras da jaula de ferro, ele soube que tinha de capturar o momento.

Era outubro de 2014. Holmes, biólogo da Universidade de Sydney, tinha vindo à China para pesquisar centenas de espécies de animais em busca de novos tipos de vírus.

Em visita a Wuhan, um centro comercial de 11 milhões de pessoas, cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da cidade o levaram ao Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. Nas barraquinhas do espaço mal ventilado, ele viu animais selvagens vivos - cobras, texugos, ratos-almiscarados, pássaros - sendo vendidos como alimento. Mas foram os cães-guaxinim que o fizeram pegar o iPhone.

Um dos maiores especialistas mundiais em evolução de vírus, Holmes tinha uma compreensão íntima de como os vírus podem saltar de uma espécie para outra - às vezes com consequências mortais. O surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês) de 2002 foi causado por um coronavírus de morcego que infectara algum tipo de mamífero selvagem antes de infectar humanos na China. Entre os principais suspeitos de ser esse animal intermediário: o fofo cão-guaxinim.

Edward Holmes, biólogo da Universidade de Sydney Foto: David Maurice Smith/ New York Times

“Não há exemplo melhor de emergência de doenças esperando para acontecer”, disse Holmes, 57 anos.

O inglês alto e careca fazia o possível para não chamar atenção enquanto tirava a foto dos cães-guaxinim, que parecem guaxinins de pernas compridas, mas estão mais próximos das raposas. Ele tirou mais algumas fotos de outros animais nas suas gaiolas. Quando um vendedor começou a bater em uma das criaturas, Holmes guardou o telefone no bolso e fugiu dali.

As fotos ficaram esquecidas até o último dia de 2019. Navegando pelo Twitter em sua casa em Sydney, Holmes soube de um surto alarmante em Wuhan: uma pneumonia semelhante à SARS, com casos iniciais ligados ao mercado de Huanan. Os cães-guaxinim, pensou ele.

“Era uma pandemia esperando para acontecer. E aí aconteceu mesmo”, disse ele.

A partir daquele dia, Holmes foi arrastado para um vórtice de descobertas e controvérsias relacionadas às origens do vírus - fazendo-o se sentir “o Forrest Gump da covid”, brincou ele. Holmes e um colega chinês foram os primeiros a compartilhar o genoma do novo coronavírus com o mundo. E desde então ele descobriu pistas cruciais sobre como o patógeno provavelmente evoluíra de coronavírus de morcego.

No controverso debate geopolítico sobre a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório de Wuhan, Holmes se tornou um dos mais fortes defensores de uma teoria oposta: o vírus saltou de um animal selvagem. Junto com colegas nos Estados Unidos, ele publicou recentemente pistas reveladoras de que cães-guaxinins mantidos na gaiola de ferro que ele fotografou em 2014 podem ter desencadeado a pandemia.

A pesquisa de Holmes sobre a covid lhe rendeu reconhecimento internacional, até mesmo o principal prêmio de ciência da Austrália. Mas também gerou alegações de que sua pesquisa foi supervisionada pelos militares chineses, além de uma enxurrada de ataques nas redes sociais e até ameaças de morte.

Apesar de tudo isso, Holmes continuou publicando uma torrente de estudos sobre a covid. Colegas de longa data atribuem sua produção constante em tempos instáveis a um talento excepcional para formar grandes equipes científicas e à disposição de mergulhar em debates controversos quando ele acha que são importantes.

“Ele é o tipo certo de pessoa com o tipo certo de mentalidade, porque tem uma mente aberta, engajada e pensativa, e não fica na defensiva”, disse Pardis Sabeti, geneticista do Broad Institute do MIT e de Harvard que trabalhou com Holmes no Ebola.

Imagem fornecida por Edward Holmes do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Caça aos vírus

Criado no oeste da Inglaterra, o jovem Edward Holmes teve um professor de biologia que tinha um pôster de um orangotango na parede, com os dizeres: “Eu não sou seu primo”.

O professor dizia à classe para não ler aquele lixo sobre evolução no livro didático, o que só deixava o garoto de 14 anos ainda mais ansioso para mergulhar nessas páginas.

Ele começou a estudar a evolução de macacos e humanos, depois se voltou para o estudo dos vírus. Ao longo de três décadas - trabalhando em Edimburgo, Oxford, Pensilvânia e finalmente Sydney - Holmes publicou mais de 600 artigos sobre a evolução de vírus como HIV, influenza e Ebola.

Quando foi convidado a ir para a Universidade de Sydney, em 2012, ele aproveitou a oportunidade para se aproximar da Ásia, onde temia que o comércio de animais selvagens pudesse desencadear uma nova pandemia.

“Ele vai aonde tem fogo”, disse Andrew Read, biólogo evolucionário da Penn State University, que trabalhou com Holmes na época.

Enquanto se preparava para a mudança, Holmes recebeu um e-mail inesperado de um virologista chinês chamado Yong-Zhen Zhang, perguntando se Holmes gostaria de estudar vírus com ele na China. Sua colaboração rapidamente se expandiu para uma busca abrangente por novos vírus em centenas de espécies de animais. Eles estudaram aranhas arrancadas das paredes de cabanas e peixes trazidos do Mar da China Meridional.

Eles acabaram encontrando mais de 2 mil espécies de vírus novas para a ciência, com muitas surpresas. Os cientistas costumavam pensar que os vírus da gripe infectavam principalmente pássaros, por exemplo, que poderiam transmiti-los a mamíferos como nós. Mas Holmes e Zhang descobriram que peixes e sapos também contraem gripe.

“Foi bastante esclarecedor”, disse Andrew Rambaut, biólogo evolucionário da Universidade de Edimburgo, que não esteve envolvido nas pesquisas. “A diversidade de vírus que existem por aí é enorme”.

Em uma de suas viagens de pesquisa em 2014, Holmes e Zhang formaram uma parceria com cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Wuhan para pesquisar animais na província vizinha de Hubei. Os cientistas do Centro os levaram ao mercado de Huanan para ver um caso preocupante de comércio de animais selvagens.

Após a visita, Holmes esperava que ele e seus colegas pudessem usar as técnicas de sequenciamento genético que desenvolveram para suas pesquisas com animais para procurar vírus nos animais do mercado. Mas seus colegas estavam mais interessados em procurar vírus em pessoas doentes.

Zhang e Holmes começaram a trabalhar com médicos do Hospital Central de Wuhan, pescando RNA viral em amostras de fluido pulmonar de pessoas com pneumonia. Por causa dessa colaboração, ele foi nomeado professor convidado do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças de 2014 a 2020.

No mês passado, Holmes e seus colegas publicaram seu primeiro relatório sobre o projeto, com base em amostras de 408 pacientes coletados em 2016 e 2017. Muitos estavam doentes com mais de um vírus, e alguns também estavam infectados com bactérias ou fungos. Os pesquisadores viram até evidências de um surto oculto: seis pacientes foram infectados com enterovírus geneticamente idênticos.

Holmes e Zhang também continuaram pesquisando a virosfera, examinando solo, sedimentos e fezes de animais de toda a China. Mas, no final de dezembro de 2019, esse trabalho foi interrompido.

A chegada da covid

Quando Zhang ficou sabendo de uma nova pneumonia em Wuhan, ele pediu a colegas do Hospital Central da cidade que enviassem fluido pulmonar de um paciente. O material chegou em 3 de janeiro e ele usou as técnicas que ele e Holmes haviam aperfeiçoado para procurar vírus. Dois dias depois, a equipe de Zhang completou o genoma de um novo coronavírus, o SARS-CoV-2.

Outras equipes científicas na China também sequenciaram o vírus. Mas nenhuma o tornou público, porque o governo chinês proibira os cientistas de publicar informações a respeito.

Zhang e Holmes começaram a escrever um artigo sobre o genoma, que mais tarde apareceria na revista Nature. Zhang ignorou a proibição e carregou o genoma do vírus em um banco de dados público hospedado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Mas o banco de dados requer uma longa revisão de novos genomas e, por isso, dias se passaram sem que as informações ficassem disponíveis online.

Holmes instou seu colaborador a encontrar outra maneira de compartilhar o genoma com o mundo. “Era algo que tinha que acontecer”, disse Holmes.

Em 10 de janeiro, eles concordaram em compartilhá-lo em um fórum para especialistas em vírus, e Holmes o carregou online.

Essa decisão foi um ponto de virada, de acordo com Jason McLellan, biólogo estrutural da Universidade do Texas em Austin, que trabalhou na tecnologia de RNA mensageiro que possibilitou a vacina da Moderna. Somente com essa sequência genética os pesquisadores poderiam começar a trabalhar em testes, medicamentos e vacinas. Até então, disse McLellan, cientistas como ele eram corredores esperando a largada.

“A corrida começou no momento em que Edward e Yong-Zhen postaram a sequência do genoma”, disse ele. “Imediatamente, o Twitter ficou agitado e e-mails não pararam mais de chegar”.

Mas, de acordo com relatos da mídia chinesa, Zhang pagou um preço por desafiar a proibição de informações de seu país. No dia seguinte ao lançamento da sequência do genoma, seu laboratório no Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai recebeu ordens de fechamento para “retificação”.

Mais tarde, Zhang insistiu com um repórter da Nature que a mudança não era uma punição e que seu laboratório reabriu tempos depois. Os pedidos para Zhang dar declarações para esta reportagem não foram respondidos. Holmes se recusou a comentar sobre a atual situação de Zhang.

Depois que o genoma do coronavírus foi sequenciado, Holmes ficou intrigado ao ver alguns pedaços de material genético que pareciam ter sido colocados lá por meio de engenharia genética.

Em uma conferência telefônica no dia 1º de fevereiro de 2020, Holmes compartilhou suas preocupações com outros especialistas em vírus, entre eles o Dr. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, e o Dr. Anthony Fauci, o principal especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos. Outros cientistas explicaram que essas características do genoma poderiam facilmente ter sido produzidas através da evolução natural dos vírus.

Logo depois, Holmes ajudou pesquisadores da Universidade de Hong Kong a analisar um coronavírus, encontrado em um pangolim, que estava intimamente relacionado ao SARS-CoV-2. O vírus parecia especialmente semelhante em sua proteína de superfície, chamada spike, a qual o vírus usa para entrar nas células.

Encontrar uma assinatura biológica tão distinta em um vírus de um animal selvagem fortaleceu a confiança de Holmes de que o SARS-CoV-2 não era produto da engenharia genética. “De repente, o que parece estranho fica claramente natural”, disse Holmes.

Holmes e seus colegas apresentaram algumas dessas descobertas em uma carta publicada em março de 2020. No mesmo mês, ele publicou algumas de suas fotos de animais enjaulados no mercado de Huanan em um comentário que escreveu com Zhang, sugerindo que poderia ter sido o local de um transbordamento patogênico.

Mas a ideia de que o vírus havia sido projetado em laboratório continuou ganhando força, e Holmes foi atacado por seu trabalho com cientistas chineses.

Em maio de 2020, o Daily Telegraph, um jornal australiano, o vinculou aos militares chineses com um artigo intitulado “Como o Exército Vermelho supervisionou a pesquisa sobre o coronavírus”.

O jornal baseou sua alegação no fato de que dois cientistas envolvidos no estudo do pangolim tinham afiliações secundárias com um laboratório militar chinês. Holmes, que disse que não conhece os cientistas, observou que eles ajudaram no sequenciamento do RNA do tecido do pangolim.

A Universidade de Sydney respondeu em nome de Holmes com uma declaração: “Defendemos fortemente o direito de nossos pesquisadores de colaborar com cientistas de todo o mundo de acordo com todas as leis australianas e diretrizes governamentais”. A universidade observou que a pesquisa de Holmes foi totalmente apoiada por financiamentos australianos.

No final de 2020, a Organização Mundial da Saúde organizou um grupo de especialistas para viajar à China para investigar a origem do novo coronavírus. Holmes lhes enviou suas fotos do mercado de 2014, mas elas não entraram no relatório da OMS.

“Algumas pessoas da delegação chinesa sugeriram que eu poderia ter fabricado essas fotos”, disse Holmes. (Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance e um dos pesquisadores do relatório da OMS, corroborou este relato: os investigadores chineses disseram que as fotos “não eram verificáveis e poderiam ter sido falsificadas”, disse Daszak).

Imagem fornecida por Edward Holmes mostra cães-guaxinim no mercado Huanan, em Wuhan, em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Evitando transbordamentos futuros

Em relatórios publicados no mês passado, Holmes e mais de 30 colaboradores analisaram os primeiros casos de covid, descobriram que estes se aglomeravam no mercado e examinaram as mutações em amostras iniciais de coronavírus.

Chris Newman, biólogo da vida selvagem da Universidade de Oxford e coautor de um dos estudos, disse que seus colegas chineses viram vários mamíferos selvagens à venda no mercado de Huanan no final de 2019. Qualquer um deles pode ter sido o responsável pela pandemia, disse Holmes.

“Ainda não dá para provar que foram os cães-guaxinins, mas eles certamente são suspeitos”, disse ele.

Alguns críticos questionaram até que ponto Holmes e seus colegas podem ter certeza de que a culpa é de um animal de Huanan. Embora muitos dos primeiros casos de covid tenham sido vinculados ao mercado, é possível que outros casos de pneumonia ainda não tenham sido reconhecidos como casos iniciais de covid.

“Ainda sabemos muito pouco sobre os primeiros casos - e provavelmente existem casos adicionais que nem conhecemos - para tirar conclusões finais”, disse Filippa Lentzos, especialista em biossegurança do King’s College London. “Continuo aberto tanto a transbordamentos naturais quanto a origens relacionadas à pesquisa”.

Outro problema: se os animais infectados de fato iniciaram a pandemia, eles nunca serão encontrados. Em janeiro de 2020, quando pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês chegaram ao mercado para investigar, todos os animais haviam desaparecido.

Mas Holmes argumenta que há evidências mais do que suficientes de que os mercados de animais podem desencadear outra pandemia. No mês passado, ele e colegas chineses publicaram um estudo sobre 18 espécies de animais vendidas com frequência em mercados.

“Os animais estavam completamente cheios de vírus”, disse Holmes.

Mais de 100 vírus que infectam vertebrados vieram à tona, incluindo vários patógenos que podem infectar humanos. E alguns desses vírus haviam recentemente ultrapassado a barreira das espécies - gripe aviária infectando texugos, coronavírus de cães infectando cães-guaxinins. Alguns dos animais também estavam doentes com vírus humanos.

A maneira mais simples de reduzir as chances de futuras pandemias, argumentou Holmes, é realizar estudos como este na interface entre os humanos e a vida selvagem. Sua própria experiência na descoberta de novos vírus o convenceu de que não faz sentido tentar catalogar todas as ameaças potenciais na vida selvagem.

“É impossível colher amostras de todos os vírus existentes e descobrir qual deles pode infectar humanos”, disse Holmes. “Não acho viável.”

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Assim que Edward Holmes viu os olhos escuros dos cães-guaxinim olhando para ele através das barras da jaula de ferro, ele soube que tinha de capturar o momento.

Era outubro de 2014. Holmes, biólogo da Universidade de Sydney, tinha vindo à China para pesquisar centenas de espécies de animais em busca de novos tipos de vírus.

Em visita a Wuhan, um centro comercial de 11 milhões de pessoas, cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças da cidade o levaram ao Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan. Nas barraquinhas do espaço mal ventilado, ele viu animais selvagens vivos - cobras, texugos, ratos-almiscarados, pássaros - sendo vendidos como alimento. Mas foram os cães-guaxinim que o fizeram pegar o iPhone.

Um dos maiores especialistas mundiais em evolução de vírus, Holmes tinha uma compreensão íntima de como os vírus podem saltar de uma espécie para outra - às vezes com consequências mortais. O surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês) de 2002 foi causado por um coronavírus de morcego que infectara algum tipo de mamífero selvagem antes de infectar humanos na China. Entre os principais suspeitos de ser esse animal intermediário: o fofo cão-guaxinim.

Edward Holmes, biólogo da Universidade de Sydney Foto: David Maurice Smith/ New York Times

“Não há exemplo melhor de emergência de doenças esperando para acontecer”, disse Holmes, 57 anos.

O inglês alto e careca fazia o possível para não chamar atenção enquanto tirava a foto dos cães-guaxinim, que parecem guaxinins de pernas compridas, mas estão mais próximos das raposas. Ele tirou mais algumas fotos de outros animais nas suas gaiolas. Quando um vendedor começou a bater em uma das criaturas, Holmes guardou o telefone no bolso e fugiu dali.

As fotos ficaram esquecidas até o último dia de 2019. Navegando pelo Twitter em sua casa em Sydney, Holmes soube de um surto alarmante em Wuhan: uma pneumonia semelhante à SARS, com casos iniciais ligados ao mercado de Huanan. Os cães-guaxinim, pensou ele.

“Era uma pandemia esperando para acontecer. E aí aconteceu mesmo”, disse ele.

A partir daquele dia, Holmes foi arrastado para um vórtice de descobertas e controvérsias relacionadas às origens do vírus - fazendo-o se sentir “o Forrest Gump da covid”, brincou ele. Holmes e um colega chinês foram os primeiros a compartilhar o genoma do novo coronavírus com o mundo. E desde então ele descobriu pistas cruciais sobre como o patógeno provavelmente evoluíra de coronavírus de morcego.

No controverso debate geopolítico sobre a ideia de que o vírus poderia ter vazado de um laboratório de Wuhan, Holmes se tornou um dos mais fortes defensores de uma teoria oposta: o vírus saltou de um animal selvagem. Junto com colegas nos Estados Unidos, ele publicou recentemente pistas reveladoras de que cães-guaxinins mantidos na gaiola de ferro que ele fotografou em 2014 podem ter desencadeado a pandemia.

A pesquisa de Holmes sobre a covid lhe rendeu reconhecimento internacional, até mesmo o principal prêmio de ciência da Austrália. Mas também gerou alegações de que sua pesquisa foi supervisionada pelos militares chineses, além de uma enxurrada de ataques nas redes sociais e até ameaças de morte.

Apesar de tudo isso, Holmes continuou publicando uma torrente de estudos sobre a covid. Colegas de longa data atribuem sua produção constante em tempos instáveis a um talento excepcional para formar grandes equipes científicas e à disposição de mergulhar em debates controversos quando ele acha que são importantes.

“Ele é o tipo certo de pessoa com o tipo certo de mentalidade, porque tem uma mente aberta, engajada e pensativa, e não fica na defensiva”, disse Pardis Sabeti, geneticista do Broad Institute do MIT e de Harvard que trabalhou com Holmes no Ebola.

Imagem fornecida por Edward Holmes do Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Caça aos vírus

Criado no oeste da Inglaterra, o jovem Edward Holmes teve um professor de biologia que tinha um pôster de um orangotango na parede, com os dizeres: “Eu não sou seu primo”.

O professor dizia à classe para não ler aquele lixo sobre evolução no livro didático, o que só deixava o garoto de 14 anos ainda mais ansioso para mergulhar nessas páginas.

Ele começou a estudar a evolução de macacos e humanos, depois se voltou para o estudo dos vírus. Ao longo de três décadas - trabalhando em Edimburgo, Oxford, Pensilvânia e finalmente Sydney - Holmes publicou mais de 600 artigos sobre a evolução de vírus como HIV, influenza e Ebola.

Quando foi convidado a ir para a Universidade de Sydney, em 2012, ele aproveitou a oportunidade para se aproximar da Ásia, onde temia que o comércio de animais selvagens pudesse desencadear uma nova pandemia.

“Ele vai aonde tem fogo”, disse Andrew Read, biólogo evolucionário da Penn State University, que trabalhou com Holmes na época.

Enquanto se preparava para a mudança, Holmes recebeu um e-mail inesperado de um virologista chinês chamado Yong-Zhen Zhang, perguntando se Holmes gostaria de estudar vírus com ele na China. Sua colaboração rapidamente se expandiu para uma busca abrangente por novos vírus em centenas de espécies de animais. Eles estudaram aranhas arrancadas das paredes de cabanas e peixes trazidos do Mar da China Meridional.

Eles acabaram encontrando mais de 2 mil espécies de vírus novas para a ciência, com muitas surpresas. Os cientistas costumavam pensar que os vírus da gripe infectavam principalmente pássaros, por exemplo, que poderiam transmiti-los a mamíferos como nós. Mas Holmes e Zhang descobriram que peixes e sapos também contraem gripe.

“Foi bastante esclarecedor”, disse Andrew Rambaut, biólogo evolucionário da Universidade de Edimburgo, que não esteve envolvido nas pesquisas. “A diversidade de vírus que existem por aí é enorme”.

Em uma de suas viagens de pesquisa em 2014, Holmes e Zhang formaram uma parceria com cientistas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças de Wuhan para pesquisar animais na província vizinha de Hubei. Os cientistas do Centro os levaram ao mercado de Huanan para ver um caso preocupante de comércio de animais selvagens.

Após a visita, Holmes esperava que ele e seus colegas pudessem usar as técnicas de sequenciamento genético que desenvolveram para suas pesquisas com animais para procurar vírus nos animais do mercado. Mas seus colegas estavam mais interessados em procurar vírus em pessoas doentes.

Zhang e Holmes começaram a trabalhar com médicos do Hospital Central de Wuhan, pescando RNA viral em amostras de fluido pulmonar de pessoas com pneumonia. Por causa dessa colaboração, ele foi nomeado professor convidado do Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças de 2014 a 2020.

No mês passado, Holmes e seus colegas publicaram seu primeiro relatório sobre o projeto, com base em amostras de 408 pacientes coletados em 2016 e 2017. Muitos estavam doentes com mais de um vírus, e alguns também estavam infectados com bactérias ou fungos. Os pesquisadores viram até evidências de um surto oculto: seis pacientes foram infectados com enterovírus geneticamente idênticos.

Holmes e Zhang também continuaram pesquisando a virosfera, examinando solo, sedimentos e fezes de animais de toda a China. Mas, no final de dezembro de 2019, esse trabalho foi interrompido.

A chegada da covid

Quando Zhang ficou sabendo de uma nova pneumonia em Wuhan, ele pediu a colegas do Hospital Central da cidade que enviassem fluido pulmonar de um paciente. O material chegou em 3 de janeiro e ele usou as técnicas que ele e Holmes haviam aperfeiçoado para procurar vírus. Dois dias depois, a equipe de Zhang completou o genoma de um novo coronavírus, o SARS-CoV-2.

Outras equipes científicas na China também sequenciaram o vírus. Mas nenhuma o tornou público, porque o governo chinês proibira os cientistas de publicar informações a respeito.

Zhang e Holmes começaram a escrever um artigo sobre o genoma, que mais tarde apareceria na revista Nature. Zhang ignorou a proibição e carregou o genoma do vírus em um banco de dados público hospedado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos. Mas o banco de dados requer uma longa revisão de novos genomas e, por isso, dias se passaram sem que as informações ficassem disponíveis online.

Holmes instou seu colaborador a encontrar outra maneira de compartilhar o genoma com o mundo. “Era algo que tinha que acontecer”, disse Holmes.

Em 10 de janeiro, eles concordaram em compartilhá-lo em um fórum para especialistas em vírus, e Holmes o carregou online.

Essa decisão foi um ponto de virada, de acordo com Jason McLellan, biólogo estrutural da Universidade do Texas em Austin, que trabalhou na tecnologia de RNA mensageiro que possibilitou a vacina da Moderna. Somente com essa sequência genética os pesquisadores poderiam começar a trabalhar em testes, medicamentos e vacinas. Até então, disse McLellan, cientistas como ele eram corredores esperando a largada.

“A corrida começou no momento em que Edward e Yong-Zhen postaram a sequência do genoma”, disse ele. “Imediatamente, o Twitter ficou agitado e e-mails não pararam mais de chegar”.

Mas, de acordo com relatos da mídia chinesa, Zhang pagou um preço por desafiar a proibição de informações de seu país. No dia seguinte ao lançamento da sequência do genoma, seu laboratório no Centro Clínico de Saúde Pública de Xangai recebeu ordens de fechamento para “retificação”.

Mais tarde, Zhang insistiu com um repórter da Nature que a mudança não era uma punição e que seu laboratório reabriu tempos depois. Os pedidos para Zhang dar declarações para esta reportagem não foram respondidos. Holmes se recusou a comentar sobre a atual situação de Zhang.

Depois que o genoma do coronavírus foi sequenciado, Holmes ficou intrigado ao ver alguns pedaços de material genético que pareciam ter sido colocados lá por meio de engenharia genética.

Em uma conferência telefônica no dia 1º de fevereiro de 2020, Holmes compartilhou suas preocupações com outros especialistas em vírus, entre eles o Dr. Francis Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, e o Dr. Anthony Fauci, o principal especialista em doenças infecciosas dos Estados Unidos. Outros cientistas explicaram que essas características do genoma poderiam facilmente ter sido produzidas através da evolução natural dos vírus.

Logo depois, Holmes ajudou pesquisadores da Universidade de Hong Kong a analisar um coronavírus, encontrado em um pangolim, que estava intimamente relacionado ao SARS-CoV-2. O vírus parecia especialmente semelhante em sua proteína de superfície, chamada spike, a qual o vírus usa para entrar nas células.

Encontrar uma assinatura biológica tão distinta em um vírus de um animal selvagem fortaleceu a confiança de Holmes de que o SARS-CoV-2 não era produto da engenharia genética. “De repente, o que parece estranho fica claramente natural”, disse Holmes.

Holmes e seus colegas apresentaram algumas dessas descobertas em uma carta publicada em março de 2020. No mesmo mês, ele publicou algumas de suas fotos de animais enjaulados no mercado de Huanan em um comentário que escreveu com Zhang, sugerindo que poderia ter sido o local de um transbordamento patogênico.

Mas a ideia de que o vírus havia sido projetado em laboratório continuou ganhando força, e Holmes foi atacado por seu trabalho com cientistas chineses.

Em maio de 2020, o Daily Telegraph, um jornal australiano, o vinculou aos militares chineses com um artigo intitulado “Como o Exército Vermelho supervisionou a pesquisa sobre o coronavírus”.

O jornal baseou sua alegação no fato de que dois cientistas envolvidos no estudo do pangolim tinham afiliações secundárias com um laboratório militar chinês. Holmes, que disse que não conhece os cientistas, observou que eles ajudaram no sequenciamento do RNA do tecido do pangolim.

A Universidade de Sydney respondeu em nome de Holmes com uma declaração: “Defendemos fortemente o direito de nossos pesquisadores de colaborar com cientistas de todo o mundo de acordo com todas as leis australianas e diretrizes governamentais”. A universidade observou que a pesquisa de Holmes foi totalmente apoiada por financiamentos australianos.

No final de 2020, a Organização Mundial da Saúde organizou um grupo de especialistas para viajar à China para investigar a origem do novo coronavírus. Holmes lhes enviou suas fotos do mercado de 2014, mas elas não entraram no relatório da OMS.

“Algumas pessoas da delegação chinesa sugeriram que eu poderia ter fabricado essas fotos”, disse Holmes. (Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance e um dos pesquisadores do relatório da OMS, corroborou este relato: os investigadores chineses disseram que as fotos “não eram verificáveis e poderiam ter sido falsificadas”, disse Daszak).

Imagem fornecida por Edward Holmes mostra cães-guaxinim no mercado Huanan, em Wuhan, em 2014 Foto: Edward Holmes/ Via New York Times

Evitando transbordamentos futuros

Em relatórios publicados no mês passado, Holmes e mais de 30 colaboradores analisaram os primeiros casos de covid, descobriram que estes se aglomeravam no mercado e examinaram as mutações em amostras iniciais de coronavírus.

Chris Newman, biólogo da vida selvagem da Universidade de Oxford e coautor de um dos estudos, disse que seus colegas chineses viram vários mamíferos selvagens à venda no mercado de Huanan no final de 2019. Qualquer um deles pode ter sido o responsável pela pandemia, disse Holmes.

“Ainda não dá para provar que foram os cães-guaxinins, mas eles certamente são suspeitos”, disse ele.

Alguns críticos questionaram até que ponto Holmes e seus colegas podem ter certeza de que a culpa é de um animal de Huanan. Embora muitos dos primeiros casos de covid tenham sido vinculados ao mercado, é possível que outros casos de pneumonia ainda não tenham sido reconhecidos como casos iniciais de covid.

“Ainda sabemos muito pouco sobre os primeiros casos - e provavelmente existem casos adicionais que nem conhecemos - para tirar conclusões finais”, disse Filippa Lentzos, especialista em biossegurança do King’s College London. “Continuo aberto tanto a transbordamentos naturais quanto a origens relacionadas à pesquisa”.

Outro problema: se os animais infectados de fato iniciaram a pandemia, eles nunca serão encontrados. Em janeiro de 2020, quando pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês chegaram ao mercado para investigar, todos os animais haviam desaparecido.

Mas Holmes argumenta que há evidências mais do que suficientes de que os mercados de animais podem desencadear outra pandemia. No mês passado, ele e colegas chineses publicaram um estudo sobre 18 espécies de animais vendidas com frequência em mercados.

“Os animais estavam completamente cheios de vírus”, disse Holmes.

Mais de 100 vírus que infectam vertebrados vieram à tona, incluindo vários patógenos que podem infectar humanos. E alguns desses vírus haviam recentemente ultrapassado a barreira das espécies - gripe aviária infectando texugos, coronavírus de cães infectando cães-guaxinins. Alguns dos animais também estavam doentes com vírus humanos.

A maneira mais simples de reduzir as chances de futuras pandemias, argumentou Holmes, é realizar estudos como este na interface entre os humanos e a vida selvagem. Sua própria experiência na descoberta de novos vírus o convenceu de que não faz sentido tentar catalogar todas as ameaças potenciais na vida selvagem.

“É impossível colher amostras de todos os vírus existentes e descobrir qual deles pode infectar humanos”, disse Holmes. “Não acho viável.”

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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