A Alemanha sempre reportou número grande de casos de covid-19 e um número proporcionalmente pequeno de mortes. Por lá, a pandemia não sobrecarregou o sistema hospitalar, que chegou a emprestar respiradores a outros países e a receber pacientes dos vizinhos. Agora a Alemanha anunciou que vai abrir a economia aos poucos e parece ter certeza que não vai sofrer um segundo pico. Isso três dias após o pico de mortes no dia 16, quando houve 315 mortes. O pico de novos casos foi em 29 de março, com 6.294 novos casos.
Como um país pode ter segurança para começar a relaxar o distanciamento social e abrir a economia alguns dias após o pico de mortes?
O segredo é a adoção desde o início da crise de um sistema organizado de monitoramento da propagação do coronavírus capaz de guiar as ações de Angela Merkel. Hoje a Alemanha sabe a taxa de propagação do vírus a cada dia, monitora a imunidade de rebanho, e usa esses dados para aferir a eficiência e intensidade do distanciamento social de modo a não deixar que os hospitais fiquem sobrecarregados.
Isso é feito com programas de testagem muito bem organizados, cujo objetivo é fornecer informações ao governo. Com esse sistema, a Alemanha acredita que já tem controle suficiente da propagação do vírus para abrir a economia. Em 17 letras o plano da Alemanha é o seguinte: Manter R=1 até IR>80. Vale a pena entender.
R é uma medida da taxa de propagação do vírus na população. É o número de pessoas para as quais um infectado transmite o vírus antes de se curar. Por exemplo: quando R é igual a 2, um doente infecta duas outras pessoas e o vírus se espalha: um caso gera 2, que geram 4, que geram 8 e assim por diante. Se R é igual a 3, um caso gera 3, que geram 9, e o vírus se espalha rapidamente.
A Alemanha afirma que já atingiu R=1 com as medidas de contenção. Por lá um infectado só infecta uma outra pessoa. Nessa situação, o número de infectados no país não cresce, mas se mantém constante. Para cada pessoa que entra no hospital, uma sai, e a ocupação nos hospitais fica constante. Eles não aceitam R=1,1 pois calcularam que se isso ocorrer os hospitais vão encher em poucos meses. Em outras palavras, a Alemanha acredita que consegue medir continuamente R e controlar o distanciamento para manter R ao redor de 1. E acredita que as medidas de relaxamento que adota não vão fazer com que esse número aumente.
O segundo parâmetro que a Alemanha monitora continuamente é de imunidade de rebanho (IR). É uma medida da porcentagem dos habitantes que já foram infectados e provavelmente imunes ao vírus. Com R=1 a imunidade de rebanho vai crescer gradativamente. A Alemanha vai monitorar o IR frequentemente até chegar a 70% ou 80%, mantendo o R=1 nesse período. Quando esse valor for atingido, todas as medidas de distanciamento podem ser abandonadas. Não consegui descobrir quando esperam que isso ocorra.
Mas como a Alemanha consegue medir tão bem essas duas variáveis? Simples: com dois programas focados de teste. Para testar a imunidade de rebanho, o experimento é o mesmo que está sendo realizado no Brasil pelos pesquisadores de Pelotas e de São Paulo. Você escolhe ao acaso uma amostra da população que deseja investigar, colhe o sangue das pessoas, e verifica a presença de anticorpos. A fração das pessoas que tem os anticorpos representa a fração que já teve contato com o vírus. Isso é feito em todas as cidades com certa frequência para acompanhar o crescimento da imunidade da população à medida que as pessoas contraem o vírus e se curam.
A taxa de reprodução do vírus (R) é medida testando todas as pessoas que apresentam sinais da doença, mesmo casos mais leves. Se o critério de testagem for mantido constante e os testes forem feitos constantemente, é possível saber quantos casos surgem cada dia e quantos estão infectados a cada momento (esse número é derivado da mensuração da taxa de imunidade do rebanho). Com esses números, é possível calcular o R, a taxa de propagação. De posse da taxa de propagação, o governo regula as medidas de distanciamento social de modo que o R permaneça próximo de um.
É um resumo da receita alemã para lidar com o coronavírus nos próximos meses. É conceitualmente simples, mas difícil de ser implementada, pois exige um nível de organização, diríamos, germânico. Agora, se funcionar, o número de mortes vai continuar pequeno, todos os alemães vão ser tratados, os hospitais não serão sobrecarregados, e a Alemanha vai recuperar mais rápido sua economia. Que eu saiba existe uma embaixada da Alemanha no Brasil, por que não pedir ajuda?