A estética da destruição de Hitler e sua ressonância hoje


Frustração por não ser um bom pintor e ser desaprovado pela Academia de Belas-Artes de Viena pode explicar seu ressentimento, que se expressa no terror

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Em menos de três dias, um brasileiro de sobrenome germânico sugeriu, nas redes sociais, uma queima de livros em praça pública; refugiados venezuelanos foram agredidos e tiveram seus parcos pertences incendiados por habitantes de Pacaraima (Roraima); e uma cambada de viúvos e viúvas de Adolf Hitler (“Não nos arrependemos de nada”) desfilou em Berlim, sob proteção da polícia. E ainda há quem relativize ou mesmo negue a montante de um estilo nazista de hostilizar e agredir. Aqui, lá e acolá.

A Noite dos Cristais: em novembro de 1938, vandalismo contra lojas de judeus Foto: Pinterest

Em maio fez 85 anos que os berlinenses encenaram a sua queima de livros (Bücherverbrennung), o auto de fé alemão, o Fahrenheit 451 hitlerista, incinerando obras de autores judeus e comunistas; em novembro, teremos outra data sinistra: os 80 anos da Noite dos Cristais, quando os mais violentos celerados do Terceiro Reich invadiram, quebraram e incendiaram lojas dos judeus de Berlim, onde, diga-se, os judeus eram infinitamente mais numerosos, nos anos 1930, do que os refugiados venezuelanos em Pacaraima, na semana passada.

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Como não rotular de nazistas ou fascistas em potencial os Torquemadas e baderneiros daqui? Os saudosistas alemães são neonazis assumidos, até bigodinho à Hitler e jaqueta de couro à Gestapo eles usam. 

A conjunção “ou”, no parágrafo anterior, foi proposital. Muita gente ignora que o nazismo foi um plágio ou filhote do fascismo; daí a expressão neonazifascismo, uma das palavras mais “alemãs” de nossa língua – no comprimento e, ça va sans dire, no conteúdo.  Mais grave, gravíssimo, mesmo, é ignorar, como centenas de tolos vivem a demonstrar, no Facebook e no Twitter, que o socialismo espertamente apensado ao registro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães foi um engana-trouxa para confundir os trabalhadores alemães ligados ao Partido Comunista e atrai-los para o redil nazista. 

Os nazistas nunca foram socialistas. Eram anticomunistas, anticapitalistas (pro forma), antissemitas e pangermanistas. O engodo eleitoreiro deu certo, como sabemos e lamentamos até hoje. Aliás, continua dando certo junto aos jejunos em história contemporânea, que não se envergonham de disseminar besteira na internet.

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E pensar que a história poderia ter tomado rumo diverso se a Academia de Belas-Artes de Viena não tivesse reprovado o ingresso de Adolf Hitler. Duas vezes. Seguidas. Em 1907 e 1908. Custava a Academia de Belas Artes ter baixado um pouco seu nível de exigência? Pagamos caro pelo seu rigor seletivo. O mais notório cabo do exército bávaro, na 1ª. Guerra Mundial, queria ser pintor, tinha alma de artista, não de soldado. Ressentimentos, leituras perniciosas e más companhias fizeram dele um arruaceiro de cervejaria, um monstro em botão. 

Essa tese já passou pela cabeça de alguns historiadores da cultura sob o nazismo, como Jonathan Petropoulos (The Faustian Bargain), George Mosse (autor de Nazi Culture) e Peter Viereck (Metapolitics), e ganhou um reforço de peso com o ensaio de Frederic Spotts sobre o Führer e o poder da estética, Hitler and the Power of Aesthetics (Overlook, 456 páginas). 

O livro é, grosso modo, uma biografia de Hitler a partir de suas obsessões artísticas (a música de Wagner, a pintura romântica do século 19, as arquiteturas grega e neoclássica) e como essas preferências e seus princípios estéticos, de resto compartilhados por Goebbels, Alfred Rosenberg, Baldur von Schirach, Albert Speer e outros próceres do partido, levaram aos atos criminosos do nazismo.

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Um dos trunfos de Hitler foi acreditar que o controle da cultura era tão importante quanto o controle da economia. Seu gosto retrógrado em arte, seu fascínio pela pompa e a monumentalidade, suas idealizações de pureza, violência e forma humana estenderam-se muito além da estatuária kitsch e das pinturas acadêmicas favorecidas no Terceiro Reich, forjaram seu estilo de governar e mesmerizar multidões. 

Coreógrafo detalhista de sua próprio glorificação, Hitler cuidava pessoalmente de todos os detalhes da parafernália e das encenações nazistas. O estudo de Spotts não deixa dúvida de que o Führer foi uma espécie de Busby Berkeley do mal, o verdadeiro autor intelectual de O Triunfo da Vontade, o infamado documentário de Leni Riefenstahl sobre o 6º. Congresso do Partido Nazista, em Nuremberg, em 1934, o mais admirado e execrado modelo de filme de propaganda de todos os tempos. 

Marco da “estética da redenção”, fundamental à lavagem cerebral operada pela cultura nazista, o agit prop de Riefenstahl começa com a descida messiânica de Hitler em Nuremberg, vindo do céu para redimir a Alemanha das humilhações sofridas desde o fim da 1ª. Guerra. Referências a Cristo e sua cruz explicitam as demagógicas e perversas intenções do filme. É um dos melhores capítulos de Hitler and the Power of Aesthetics.

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Do mesmo padrão é a parte que aborda o reacionarismo estético e o racismo do Führer, cujo épice foi aquela mostra de 1937 sobre (e contra) o que o pintor ditador considerava o suprassumo da “arte degenerada” : os expressionistas e demais modernos, como Chagall, Kandinski, Klee, Grosz, expostos ao ridículo e em vão contrapostos aos escultores do Realismo Nacional Socialista. Alguém se lembra das naziesculturas de Arno Breker e Josef Thorak? 

O conceito de “arte degenerada” fora regurgitado pela primeira vez em 1892, pelo líder sionista Max Nordau. Um sionista envenenando a cabeça do antissemita número um do planeta, quem diria. Para Nordau, os pintores impressionistas eram geneticamente corrompidos, débeis mentais, com desordens no sistema nervoso e na retina – e, por serem “inimigos da sociedade, vermes antissociais”, deveriam mofar numa prisão ou num hospício. 

Hitler repetiria a perniciosa ladainha, quase ipsis litteris, 45 anos mais tarde. Com a vantagem de ter plenos poderes para pôr em prática as recomendações de Nordau.

Em menos de três dias, um brasileiro de sobrenome germânico sugeriu, nas redes sociais, uma queima de livros em praça pública; refugiados venezuelanos foram agredidos e tiveram seus parcos pertences incendiados por habitantes de Pacaraima (Roraima); e uma cambada de viúvos e viúvas de Adolf Hitler (“Não nos arrependemos de nada”) desfilou em Berlim, sob proteção da polícia. E ainda há quem relativize ou mesmo negue a montante de um estilo nazista de hostilizar e agredir. Aqui, lá e acolá.

A Noite dos Cristais: em novembro de 1938, vandalismo contra lojas de judeus Foto: Pinterest

Em maio fez 85 anos que os berlinenses encenaram a sua queima de livros (Bücherverbrennung), o auto de fé alemão, o Fahrenheit 451 hitlerista, incinerando obras de autores judeus e comunistas; em novembro, teremos outra data sinistra: os 80 anos da Noite dos Cristais, quando os mais violentos celerados do Terceiro Reich invadiram, quebraram e incendiaram lojas dos judeus de Berlim, onde, diga-se, os judeus eram infinitamente mais numerosos, nos anos 1930, do que os refugiados venezuelanos em Pacaraima, na semana passada.

Como não rotular de nazistas ou fascistas em potencial os Torquemadas e baderneiros daqui? Os saudosistas alemães são neonazis assumidos, até bigodinho à Hitler e jaqueta de couro à Gestapo eles usam. 

A conjunção “ou”, no parágrafo anterior, foi proposital. Muita gente ignora que o nazismo foi um plágio ou filhote do fascismo; daí a expressão neonazifascismo, uma das palavras mais “alemãs” de nossa língua – no comprimento e, ça va sans dire, no conteúdo.  Mais grave, gravíssimo, mesmo, é ignorar, como centenas de tolos vivem a demonstrar, no Facebook e no Twitter, que o socialismo espertamente apensado ao registro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães foi um engana-trouxa para confundir os trabalhadores alemães ligados ao Partido Comunista e atrai-los para o redil nazista. 

Os nazistas nunca foram socialistas. Eram anticomunistas, anticapitalistas (pro forma), antissemitas e pangermanistas. O engodo eleitoreiro deu certo, como sabemos e lamentamos até hoje. Aliás, continua dando certo junto aos jejunos em história contemporânea, que não se envergonham de disseminar besteira na internet.

E pensar que a história poderia ter tomado rumo diverso se a Academia de Belas-Artes de Viena não tivesse reprovado o ingresso de Adolf Hitler. Duas vezes. Seguidas. Em 1907 e 1908. Custava a Academia de Belas Artes ter baixado um pouco seu nível de exigência? Pagamos caro pelo seu rigor seletivo. O mais notório cabo do exército bávaro, na 1ª. Guerra Mundial, queria ser pintor, tinha alma de artista, não de soldado. Ressentimentos, leituras perniciosas e más companhias fizeram dele um arruaceiro de cervejaria, um monstro em botão. 

Essa tese já passou pela cabeça de alguns historiadores da cultura sob o nazismo, como Jonathan Petropoulos (The Faustian Bargain), George Mosse (autor de Nazi Culture) e Peter Viereck (Metapolitics), e ganhou um reforço de peso com o ensaio de Frederic Spotts sobre o Führer e o poder da estética, Hitler and the Power of Aesthetics (Overlook, 456 páginas). 

O livro é, grosso modo, uma biografia de Hitler a partir de suas obsessões artísticas (a música de Wagner, a pintura romântica do século 19, as arquiteturas grega e neoclássica) e como essas preferências e seus princípios estéticos, de resto compartilhados por Goebbels, Alfred Rosenberg, Baldur von Schirach, Albert Speer e outros próceres do partido, levaram aos atos criminosos do nazismo.

Um dos trunfos de Hitler foi acreditar que o controle da cultura era tão importante quanto o controle da economia. Seu gosto retrógrado em arte, seu fascínio pela pompa e a monumentalidade, suas idealizações de pureza, violência e forma humana estenderam-se muito além da estatuária kitsch e das pinturas acadêmicas favorecidas no Terceiro Reich, forjaram seu estilo de governar e mesmerizar multidões. 

Coreógrafo detalhista de sua próprio glorificação, Hitler cuidava pessoalmente de todos os detalhes da parafernália e das encenações nazistas. O estudo de Spotts não deixa dúvida de que o Führer foi uma espécie de Busby Berkeley do mal, o verdadeiro autor intelectual de O Triunfo da Vontade, o infamado documentário de Leni Riefenstahl sobre o 6º. Congresso do Partido Nazista, em Nuremberg, em 1934, o mais admirado e execrado modelo de filme de propaganda de todos os tempos. 

Marco da “estética da redenção”, fundamental à lavagem cerebral operada pela cultura nazista, o agit prop de Riefenstahl começa com a descida messiânica de Hitler em Nuremberg, vindo do céu para redimir a Alemanha das humilhações sofridas desde o fim da 1ª. Guerra. Referências a Cristo e sua cruz explicitam as demagógicas e perversas intenções do filme. É um dos melhores capítulos de Hitler and the Power of Aesthetics.

Do mesmo padrão é a parte que aborda o reacionarismo estético e o racismo do Führer, cujo épice foi aquela mostra de 1937 sobre (e contra) o que o pintor ditador considerava o suprassumo da “arte degenerada” : os expressionistas e demais modernos, como Chagall, Kandinski, Klee, Grosz, expostos ao ridículo e em vão contrapostos aos escultores do Realismo Nacional Socialista. Alguém se lembra das naziesculturas de Arno Breker e Josef Thorak? 

O conceito de “arte degenerada” fora regurgitado pela primeira vez em 1892, pelo líder sionista Max Nordau. Um sionista envenenando a cabeça do antissemita número um do planeta, quem diria. Para Nordau, os pintores impressionistas eram geneticamente corrompidos, débeis mentais, com desordens no sistema nervoso e na retina – e, por serem “inimigos da sociedade, vermes antissociais”, deveriam mofar numa prisão ou num hospício. 

Hitler repetiria a perniciosa ladainha, quase ipsis litteris, 45 anos mais tarde. Com a vantagem de ter plenos poderes para pôr em prática as recomendações de Nordau.

Em menos de três dias, um brasileiro de sobrenome germânico sugeriu, nas redes sociais, uma queima de livros em praça pública; refugiados venezuelanos foram agredidos e tiveram seus parcos pertences incendiados por habitantes de Pacaraima (Roraima); e uma cambada de viúvos e viúvas de Adolf Hitler (“Não nos arrependemos de nada”) desfilou em Berlim, sob proteção da polícia. E ainda há quem relativize ou mesmo negue a montante de um estilo nazista de hostilizar e agredir. Aqui, lá e acolá.

A Noite dos Cristais: em novembro de 1938, vandalismo contra lojas de judeus Foto: Pinterest

Em maio fez 85 anos que os berlinenses encenaram a sua queima de livros (Bücherverbrennung), o auto de fé alemão, o Fahrenheit 451 hitlerista, incinerando obras de autores judeus e comunistas; em novembro, teremos outra data sinistra: os 80 anos da Noite dos Cristais, quando os mais violentos celerados do Terceiro Reich invadiram, quebraram e incendiaram lojas dos judeus de Berlim, onde, diga-se, os judeus eram infinitamente mais numerosos, nos anos 1930, do que os refugiados venezuelanos em Pacaraima, na semana passada.

Como não rotular de nazistas ou fascistas em potencial os Torquemadas e baderneiros daqui? Os saudosistas alemães são neonazis assumidos, até bigodinho à Hitler e jaqueta de couro à Gestapo eles usam. 

A conjunção “ou”, no parágrafo anterior, foi proposital. Muita gente ignora que o nazismo foi um plágio ou filhote do fascismo; daí a expressão neonazifascismo, uma das palavras mais “alemãs” de nossa língua – no comprimento e, ça va sans dire, no conteúdo.  Mais grave, gravíssimo, mesmo, é ignorar, como centenas de tolos vivem a demonstrar, no Facebook e no Twitter, que o socialismo espertamente apensado ao registro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães foi um engana-trouxa para confundir os trabalhadores alemães ligados ao Partido Comunista e atrai-los para o redil nazista. 

Os nazistas nunca foram socialistas. Eram anticomunistas, anticapitalistas (pro forma), antissemitas e pangermanistas. O engodo eleitoreiro deu certo, como sabemos e lamentamos até hoje. Aliás, continua dando certo junto aos jejunos em história contemporânea, que não se envergonham de disseminar besteira na internet.

E pensar que a história poderia ter tomado rumo diverso se a Academia de Belas-Artes de Viena não tivesse reprovado o ingresso de Adolf Hitler. Duas vezes. Seguidas. Em 1907 e 1908. Custava a Academia de Belas Artes ter baixado um pouco seu nível de exigência? Pagamos caro pelo seu rigor seletivo. O mais notório cabo do exército bávaro, na 1ª. Guerra Mundial, queria ser pintor, tinha alma de artista, não de soldado. Ressentimentos, leituras perniciosas e más companhias fizeram dele um arruaceiro de cervejaria, um monstro em botão. 

Essa tese já passou pela cabeça de alguns historiadores da cultura sob o nazismo, como Jonathan Petropoulos (The Faustian Bargain), George Mosse (autor de Nazi Culture) e Peter Viereck (Metapolitics), e ganhou um reforço de peso com o ensaio de Frederic Spotts sobre o Führer e o poder da estética, Hitler and the Power of Aesthetics (Overlook, 456 páginas). 

O livro é, grosso modo, uma biografia de Hitler a partir de suas obsessões artísticas (a música de Wagner, a pintura romântica do século 19, as arquiteturas grega e neoclássica) e como essas preferências e seus princípios estéticos, de resto compartilhados por Goebbels, Alfred Rosenberg, Baldur von Schirach, Albert Speer e outros próceres do partido, levaram aos atos criminosos do nazismo.

Um dos trunfos de Hitler foi acreditar que o controle da cultura era tão importante quanto o controle da economia. Seu gosto retrógrado em arte, seu fascínio pela pompa e a monumentalidade, suas idealizações de pureza, violência e forma humana estenderam-se muito além da estatuária kitsch e das pinturas acadêmicas favorecidas no Terceiro Reich, forjaram seu estilo de governar e mesmerizar multidões. 

Coreógrafo detalhista de sua próprio glorificação, Hitler cuidava pessoalmente de todos os detalhes da parafernália e das encenações nazistas. O estudo de Spotts não deixa dúvida de que o Führer foi uma espécie de Busby Berkeley do mal, o verdadeiro autor intelectual de O Triunfo da Vontade, o infamado documentário de Leni Riefenstahl sobre o 6º. Congresso do Partido Nazista, em Nuremberg, em 1934, o mais admirado e execrado modelo de filme de propaganda de todos os tempos. 

Marco da “estética da redenção”, fundamental à lavagem cerebral operada pela cultura nazista, o agit prop de Riefenstahl começa com a descida messiânica de Hitler em Nuremberg, vindo do céu para redimir a Alemanha das humilhações sofridas desde o fim da 1ª. Guerra. Referências a Cristo e sua cruz explicitam as demagógicas e perversas intenções do filme. É um dos melhores capítulos de Hitler and the Power of Aesthetics.

Do mesmo padrão é a parte que aborda o reacionarismo estético e o racismo do Führer, cujo épice foi aquela mostra de 1937 sobre (e contra) o que o pintor ditador considerava o suprassumo da “arte degenerada” : os expressionistas e demais modernos, como Chagall, Kandinski, Klee, Grosz, expostos ao ridículo e em vão contrapostos aos escultores do Realismo Nacional Socialista. Alguém se lembra das naziesculturas de Arno Breker e Josef Thorak? 

O conceito de “arte degenerada” fora regurgitado pela primeira vez em 1892, pelo líder sionista Max Nordau. Um sionista envenenando a cabeça do antissemita número um do planeta, quem diria. Para Nordau, os pintores impressionistas eram geneticamente corrompidos, débeis mentais, com desordens no sistema nervoso e na retina – e, por serem “inimigos da sociedade, vermes antissociais”, deveriam mofar numa prisão ou num hospício. 

Hitler repetiria a perniciosa ladainha, quase ipsis litteris, 45 anos mais tarde. Com a vantagem de ter plenos poderes para pôr em prática as recomendações de Nordau.

Em menos de três dias, um brasileiro de sobrenome germânico sugeriu, nas redes sociais, uma queima de livros em praça pública; refugiados venezuelanos foram agredidos e tiveram seus parcos pertences incendiados por habitantes de Pacaraima (Roraima); e uma cambada de viúvos e viúvas de Adolf Hitler (“Não nos arrependemos de nada”) desfilou em Berlim, sob proteção da polícia. E ainda há quem relativize ou mesmo negue a montante de um estilo nazista de hostilizar e agredir. Aqui, lá e acolá.

A Noite dos Cristais: em novembro de 1938, vandalismo contra lojas de judeus Foto: Pinterest

Em maio fez 85 anos que os berlinenses encenaram a sua queima de livros (Bücherverbrennung), o auto de fé alemão, o Fahrenheit 451 hitlerista, incinerando obras de autores judeus e comunistas; em novembro, teremos outra data sinistra: os 80 anos da Noite dos Cristais, quando os mais violentos celerados do Terceiro Reich invadiram, quebraram e incendiaram lojas dos judeus de Berlim, onde, diga-se, os judeus eram infinitamente mais numerosos, nos anos 1930, do que os refugiados venezuelanos em Pacaraima, na semana passada.

Como não rotular de nazistas ou fascistas em potencial os Torquemadas e baderneiros daqui? Os saudosistas alemães são neonazis assumidos, até bigodinho à Hitler e jaqueta de couro à Gestapo eles usam. 

A conjunção “ou”, no parágrafo anterior, foi proposital. Muita gente ignora que o nazismo foi um plágio ou filhote do fascismo; daí a expressão neonazifascismo, uma das palavras mais “alemãs” de nossa língua – no comprimento e, ça va sans dire, no conteúdo.  Mais grave, gravíssimo, mesmo, é ignorar, como centenas de tolos vivem a demonstrar, no Facebook e no Twitter, que o socialismo espertamente apensado ao registro do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães foi um engana-trouxa para confundir os trabalhadores alemães ligados ao Partido Comunista e atrai-los para o redil nazista. 

Os nazistas nunca foram socialistas. Eram anticomunistas, anticapitalistas (pro forma), antissemitas e pangermanistas. O engodo eleitoreiro deu certo, como sabemos e lamentamos até hoje. Aliás, continua dando certo junto aos jejunos em história contemporânea, que não se envergonham de disseminar besteira na internet.

E pensar que a história poderia ter tomado rumo diverso se a Academia de Belas-Artes de Viena não tivesse reprovado o ingresso de Adolf Hitler. Duas vezes. Seguidas. Em 1907 e 1908. Custava a Academia de Belas Artes ter baixado um pouco seu nível de exigência? Pagamos caro pelo seu rigor seletivo. O mais notório cabo do exército bávaro, na 1ª. Guerra Mundial, queria ser pintor, tinha alma de artista, não de soldado. Ressentimentos, leituras perniciosas e más companhias fizeram dele um arruaceiro de cervejaria, um monstro em botão. 

Essa tese já passou pela cabeça de alguns historiadores da cultura sob o nazismo, como Jonathan Petropoulos (The Faustian Bargain), George Mosse (autor de Nazi Culture) e Peter Viereck (Metapolitics), e ganhou um reforço de peso com o ensaio de Frederic Spotts sobre o Führer e o poder da estética, Hitler and the Power of Aesthetics (Overlook, 456 páginas). 

O livro é, grosso modo, uma biografia de Hitler a partir de suas obsessões artísticas (a música de Wagner, a pintura romântica do século 19, as arquiteturas grega e neoclássica) e como essas preferências e seus princípios estéticos, de resto compartilhados por Goebbels, Alfred Rosenberg, Baldur von Schirach, Albert Speer e outros próceres do partido, levaram aos atos criminosos do nazismo.

Um dos trunfos de Hitler foi acreditar que o controle da cultura era tão importante quanto o controle da economia. Seu gosto retrógrado em arte, seu fascínio pela pompa e a monumentalidade, suas idealizações de pureza, violência e forma humana estenderam-se muito além da estatuária kitsch e das pinturas acadêmicas favorecidas no Terceiro Reich, forjaram seu estilo de governar e mesmerizar multidões. 

Coreógrafo detalhista de sua próprio glorificação, Hitler cuidava pessoalmente de todos os detalhes da parafernália e das encenações nazistas. O estudo de Spotts não deixa dúvida de que o Führer foi uma espécie de Busby Berkeley do mal, o verdadeiro autor intelectual de O Triunfo da Vontade, o infamado documentário de Leni Riefenstahl sobre o 6º. Congresso do Partido Nazista, em Nuremberg, em 1934, o mais admirado e execrado modelo de filme de propaganda de todos os tempos. 

Marco da “estética da redenção”, fundamental à lavagem cerebral operada pela cultura nazista, o agit prop de Riefenstahl começa com a descida messiânica de Hitler em Nuremberg, vindo do céu para redimir a Alemanha das humilhações sofridas desde o fim da 1ª. Guerra. Referências a Cristo e sua cruz explicitam as demagógicas e perversas intenções do filme. É um dos melhores capítulos de Hitler and the Power of Aesthetics.

Do mesmo padrão é a parte que aborda o reacionarismo estético e o racismo do Führer, cujo épice foi aquela mostra de 1937 sobre (e contra) o que o pintor ditador considerava o suprassumo da “arte degenerada” : os expressionistas e demais modernos, como Chagall, Kandinski, Klee, Grosz, expostos ao ridículo e em vão contrapostos aos escultores do Realismo Nacional Socialista. Alguém se lembra das naziesculturas de Arno Breker e Josef Thorak? 

O conceito de “arte degenerada” fora regurgitado pela primeira vez em 1892, pelo líder sionista Max Nordau. Um sionista envenenando a cabeça do antissemita número um do planeta, quem diria. Para Nordau, os pintores impressionistas eram geneticamente corrompidos, débeis mentais, com desordens no sistema nervoso e na retina – e, por serem “inimigos da sociedade, vermes antissociais”, deveriam mofar numa prisão ou num hospício. 

Hitler repetiria a perniciosa ladainha, quase ipsis litteris, 45 anos mais tarde. Com a vantagem de ter plenos poderes para pôr em prática as recomendações de Nordau.

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