‘À Sombra das Luzes’ examina Goya, que anunciou a modernidade na arte


Tzvetan Todorov avalia se a revolução pictórica que se manifesta através de sua obra foi consequência do espírito iluminista ou da introspecção do pintor

Por Antonio Gonçalves Filho

Além das reflexões sobre seu trabalho, Goya, que escrevia bem, costumava dar títulos e legendas a seus desenhos e gravuras, orientando os futuros observadores de sua obra. Todorov não se dispõe a analisar o conjunto de sua produção pictórica, mas justamente séries de gravuras como Caprichos ou Desastres da Guerra, deixando de lado as pinturas religiosas, os retratos, a naturezas-mortas e as tauromaquias. Ao contrário de Hughes, que realizou um minucioso estudo sobre a evolução da linguagem artística de Goya, Todorov se impôs a tarefa de analisar o pensamento do artista, revelado nessas imagens.

Todorov analisa também as reveladoras cartas de Goya endereçadas a amigos, como Martín Zapater, companheiro de infância. Nelas, fala-se pouco de pintura e surge um homem diferente do retratado em outras biografias. Todorov insinua, inclusive, uma paixão homoafetiva entre os dois – "prefiro as conversas contigo a todos os prazeres e alegrias do ninho matrimonial", escreve o pintor a Zapater, o amigo de Saragoça, em 1790, três anos antes de explicar a ele a razão de ter pintado um quadro sinistro como O Pátio dos Loucos. "Escolhi a liberdade e trabalho para conservá-la", diz na carta o revolucionário artista da corte que, paralelamente aos retratos da aristocracia, pintava os bastidores de uma Espanha mergulhada na loucura e no misticismo.

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Impressiona a monocromia crua de telas como a que ilustra esta página, Casa dos Loucos (1814-6), pertencente ao acervo da Academia San Fernando, em Madri. Antecipando Morandi, Goya envolve suas figuras no ambiente, como numa natureza-morta do italiano. São loucos presos às paredes, com pessoas e fundo amalgamados – "corpos nus ou mal cobertos que parecem participar da mesma substância", no dizer de Todorov. O tema da loucura e da razão seria retomado em inúmeros trabalhos, o que fez propagar a lenda segundo a qual Goya teria ele mesmo conhecido a loucura de perto. Todorov não acredita nisso. "Os loucos de Goya são ao mesmo tempo bizarros e familiares: é que, longe de nos ser estranha, a loucura está em nós."

Goya, ao pintar esses loucos, segundo o filólogo, segue sua percepção subjetiva, deixando de lado a objetividade impessoal. Ele não quer captar formas, mas o clima do lugar. "Isso não significa em absoluto que ele ceda a uma complacência narcísica", observa Todorov. "Goya está de todo voltado para o mundo, só que simplesmente sabe que o conhecimento é forçosamente subjetivo."

Se a surdez o deixou amargo, isolado e com um desconfortável sentimento de inferioridade, levando-o a subverter sua maneira de pintar, a atenção devotada a ele pela duquesa de Alba, possível modelo de La Maja Desnuda, o fez sentir revigorado, embora a rejeição, vinda na sequência, tenha conduzido Goya a um isolamento ainda maior. As máscaras e as caricaturas que ele desenha após a morte da duquesa, segundo Todorov, constituem uma maneira de revelar a pessoa que o rosto dissimula. O real deixa de ser o verdadeiro para que essas máscaras construam a identidade dos indivíduos. Soa como uma observação hegeliana, mas faz todo o sentido no caso de Goya, que explorou o mundo interior e rejeitou a representação natural, anunciando assim a pintura moderna. Sai a estética neoclássica e entra a "verdade oculta dos seres".

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No entanto, observa Todorov, a postura de Goya não é a dos satiristas antigos nem a dos niilistas modernos. "Talvez ele não dedique grande estima à humanidade, mas preza sempre as pessoas que o rodeiam." Os personagens de série como Caprichos podem ter um aspecto monstruoso, mas são apenas frutos dos pesadelos pessoais do pintor. Servindo com zelo a todos os reis da Espanha, Goya sentia-se igualmente atraído pelas bruxas e outros seres sobrenaturais da imaginação popular. Todorov recusa-se a ver nele um precursor do repórter ou do fotógrafo de guerra. Goya, conclui o autor, simplesmente se conformou em explorar sua memória e obsessões secretas, fustigando as superstições do povão.

À SOMBRA DAS LUZESAutor: Tzvetan TodorovTradução: Joana Angélica d’Avila MeloEditora: Companhia das Letras (288 págs., R$ 49,50)

Além das reflexões sobre seu trabalho, Goya, que escrevia bem, costumava dar títulos e legendas a seus desenhos e gravuras, orientando os futuros observadores de sua obra. Todorov não se dispõe a analisar o conjunto de sua produção pictórica, mas justamente séries de gravuras como Caprichos ou Desastres da Guerra, deixando de lado as pinturas religiosas, os retratos, a naturezas-mortas e as tauromaquias. Ao contrário de Hughes, que realizou um minucioso estudo sobre a evolução da linguagem artística de Goya, Todorov se impôs a tarefa de analisar o pensamento do artista, revelado nessas imagens.

Todorov analisa também as reveladoras cartas de Goya endereçadas a amigos, como Martín Zapater, companheiro de infância. Nelas, fala-se pouco de pintura e surge um homem diferente do retratado em outras biografias. Todorov insinua, inclusive, uma paixão homoafetiva entre os dois – "prefiro as conversas contigo a todos os prazeres e alegrias do ninho matrimonial", escreve o pintor a Zapater, o amigo de Saragoça, em 1790, três anos antes de explicar a ele a razão de ter pintado um quadro sinistro como O Pátio dos Loucos. "Escolhi a liberdade e trabalho para conservá-la", diz na carta o revolucionário artista da corte que, paralelamente aos retratos da aristocracia, pintava os bastidores de uma Espanha mergulhada na loucura e no misticismo.

Impressiona a monocromia crua de telas como a que ilustra esta página, Casa dos Loucos (1814-6), pertencente ao acervo da Academia San Fernando, em Madri. Antecipando Morandi, Goya envolve suas figuras no ambiente, como numa natureza-morta do italiano. São loucos presos às paredes, com pessoas e fundo amalgamados – "corpos nus ou mal cobertos que parecem participar da mesma substância", no dizer de Todorov. O tema da loucura e da razão seria retomado em inúmeros trabalhos, o que fez propagar a lenda segundo a qual Goya teria ele mesmo conhecido a loucura de perto. Todorov não acredita nisso. "Os loucos de Goya são ao mesmo tempo bizarros e familiares: é que, longe de nos ser estranha, a loucura está em nós."

Goya, ao pintar esses loucos, segundo o filólogo, segue sua percepção subjetiva, deixando de lado a objetividade impessoal. Ele não quer captar formas, mas o clima do lugar. "Isso não significa em absoluto que ele ceda a uma complacência narcísica", observa Todorov. "Goya está de todo voltado para o mundo, só que simplesmente sabe que o conhecimento é forçosamente subjetivo."

Se a surdez o deixou amargo, isolado e com um desconfortável sentimento de inferioridade, levando-o a subverter sua maneira de pintar, a atenção devotada a ele pela duquesa de Alba, possível modelo de La Maja Desnuda, o fez sentir revigorado, embora a rejeição, vinda na sequência, tenha conduzido Goya a um isolamento ainda maior. As máscaras e as caricaturas que ele desenha após a morte da duquesa, segundo Todorov, constituem uma maneira de revelar a pessoa que o rosto dissimula. O real deixa de ser o verdadeiro para que essas máscaras construam a identidade dos indivíduos. Soa como uma observação hegeliana, mas faz todo o sentido no caso de Goya, que explorou o mundo interior e rejeitou a representação natural, anunciando assim a pintura moderna. Sai a estética neoclássica e entra a "verdade oculta dos seres".

No entanto, observa Todorov, a postura de Goya não é a dos satiristas antigos nem a dos niilistas modernos. "Talvez ele não dedique grande estima à humanidade, mas preza sempre as pessoas que o rodeiam." Os personagens de série como Caprichos podem ter um aspecto monstruoso, mas são apenas frutos dos pesadelos pessoais do pintor. Servindo com zelo a todos os reis da Espanha, Goya sentia-se igualmente atraído pelas bruxas e outros seres sobrenaturais da imaginação popular. Todorov recusa-se a ver nele um precursor do repórter ou do fotógrafo de guerra. Goya, conclui o autor, simplesmente se conformou em explorar sua memória e obsessões secretas, fustigando as superstições do povão.

À SOMBRA DAS LUZESAutor: Tzvetan TodorovTradução: Joana Angélica d’Avila MeloEditora: Companhia das Letras (288 págs., R$ 49,50)

Além das reflexões sobre seu trabalho, Goya, que escrevia bem, costumava dar títulos e legendas a seus desenhos e gravuras, orientando os futuros observadores de sua obra. Todorov não se dispõe a analisar o conjunto de sua produção pictórica, mas justamente séries de gravuras como Caprichos ou Desastres da Guerra, deixando de lado as pinturas religiosas, os retratos, a naturezas-mortas e as tauromaquias. Ao contrário de Hughes, que realizou um minucioso estudo sobre a evolução da linguagem artística de Goya, Todorov se impôs a tarefa de analisar o pensamento do artista, revelado nessas imagens.

Todorov analisa também as reveladoras cartas de Goya endereçadas a amigos, como Martín Zapater, companheiro de infância. Nelas, fala-se pouco de pintura e surge um homem diferente do retratado em outras biografias. Todorov insinua, inclusive, uma paixão homoafetiva entre os dois – "prefiro as conversas contigo a todos os prazeres e alegrias do ninho matrimonial", escreve o pintor a Zapater, o amigo de Saragoça, em 1790, três anos antes de explicar a ele a razão de ter pintado um quadro sinistro como O Pátio dos Loucos. "Escolhi a liberdade e trabalho para conservá-la", diz na carta o revolucionário artista da corte que, paralelamente aos retratos da aristocracia, pintava os bastidores de uma Espanha mergulhada na loucura e no misticismo.

Impressiona a monocromia crua de telas como a que ilustra esta página, Casa dos Loucos (1814-6), pertencente ao acervo da Academia San Fernando, em Madri. Antecipando Morandi, Goya envolve suas figuras no ambiente, como numa natureza-morta do italiano. São loucos presos às paredes, com pessoas e fundo amalgamados – "corpos nus ou mal cobertos que parecem participar da mesma substância", no dizer de Todorov. O tema da loucura e da razão seria retomado em inúmeros trabalhos, o que fez propagar a lenda segundo a qual Goya teria ele mesmo conhecido a loucura de perto. Todorov não acredita nisso. "Os loucos de Goya são ao mesmo tempo bizarros e familiares: é que, longe de nos ser estranha, a loucura está em nós."

Goya, ao pintar esses loucos, segundo o filólogo, segue sua percepção subjetiva, deixando de lado a objetividade impessoal. Ele não quer captar formas, mas o clima do lugar. "Isso não significa em absoluto que ele ceda a uma complacência narcísica", observa Todorov. "Goya está de todo voltado para o mundo, só que simplesmente sabe que o conhecimento é forçosamente subjetivo."

Se a surdez o deixou amargo, isolado e com um desconfortável sentimento de inferioridade, levando-o a subverter sua maneira de pintar, a atenção devotada a ele pela duquesa de Alba, possível modelo de La Maja Desnuda, o fez sentir revigorado, embora a rejeição, vinda na sequência, tenha conduzido Goya a um isolamento ainda maior. As máscaras e as caricaturas que ele desenha após a morte da duquesa, segundo Todorov, constituem uma maneira de revelar a pessoa que o rosto dissimula. O real deixa de ser o verdadeiro para que essas máscaras construam a identidade dos indivíduos. Soa como uma observação hegeliana, mas faz todo o sentido no caso de Goya, que explorou o mundo interior e rejeitou a representação natural, anunciando assim a pintura moderna. Sai a estética neoclássica e entra a "verdade oculta dos seres".

No entanto, observa Todorov, a postura de Goya não é a dos satiristas antigos nem a dos niilistas modernos. "Talvez ele não dedique grande estima à humanidade, mas preza sempre as pessoas que o rodeiam." Os personagens de série como Caprichos podem ter um aspecto monstruoso, mas são apenas frutos dos pesadelos pessoais do pintor. Servindo com zelo a todos os reis da Espanha, Goya sentia-se igualmente atraído pelas bruxas e outros seres sobrenaturais da imaginação popular. Todorov recusa-se a ver nele um precursor do repórter ou do fotógrafo de guerra. Goya, conclui o autor, simplesmente se conformou em explorar sua memória e obsessões secretas, fustigando as superstições do povão.

À SOMBRA DAS LUZESAutor: Tzvetan TodorovTradução: Joana Angélica d’Avila MeloEditora: Companhia das Letras (288 págs., R$ 49,50)

Além das reflexões sobre seu trabalho, Goya, que escrevia bem, costumava dar títulos e legendas a seus desenhos e gravuras, orientando os futuros observadores de sua obra. Todorov não se dispõe a analisar o conjunto de sua produção pictórica, mas justamente séries de gravuras como Caprichos ou Desastres da Guerra, deixando de lado as pinturas religiosas, os retratos, a naturezas-mortas e as tauromaquias. Ao contrário de Hughes, que realizou um minucioso estudo sobre a evolução da linguagem artística de Goya, Todorov se impôs a tarefa de analisar o pensamento do artista, revelado nessas imagens.

Todorov analisa também as reveladoras cartas de Goya endereçadas a amigos, como Martín Zapater, companheiro de infância. Nelas, fala-se pouco de pintura e surge um homem diferente do retratado em outras biografias. Todorov insinua, inclusive, uma paixão homoafetiva entre os dois – "prefiro as conversas contigo a todos os prazeres e alegrias do ninho matrimonial", escreve o pintor a Zapater, o amigo de Saragoça, em 1790, três anos antes de explicar a ele a razão de ter pintado um quadro sinistro como O Pátio dos Loucos. "Escolhi a liberdade e trabalho para conservá-la", diz na carta o revolucionário artista da corte que, paralelamente aos retratos da aristocracia, pintava os bastidores de uma Espanha mergulhada na loucura e no misticismo.

Impressiona a monocromia crua de telas como a que ilustra esta página, Casa dos Loucos (1814-6), pertencente ao acervo da Academia San Fernando, em Madri. Antecipando Morandi, Goya envolve suas figuras no ambiente, como numa natureza-morta do italiano. São loucos presos às paredes, com pessoas e fundo amalgamados – "corpos nus ou mal cobertos que parecem participar da mesma substância", no dizer de Todorov. O tema da loucura e da razão seria retomado em inúmeros trabalhos, o que fez propagar a lenda segundo a qual Goya teria ele mesmo conhecido a loucura de perto. Todorov não acredita nisso. "Os loucos de Goya são ao mesmo tempo bizarros e familiares: é que, longe de nos ser estranha, a loucura está em nós."

Goya, ao pintar esses loucos, segundo o filólogo, segue sua percepção subjetiva, deixando de lado a objetividade impessoal. Ele não quer captar formas, mas o clima do lugar. "Isso não significa em absoluto que ele ceda a uma complacência narcísica", observa Todorov. "Goya está de todo voltado para o mundo, só que simplesmente sabe que o conhecimento é forçosamente subjetivo."

Se a surdez o deixou amargo, isolado e com um desconfortável sentimento de inferioridade, levando-o a subverter sua maneira de pintar, a atenção devotada a ele pela duquesa de Alba, possível modelo de La Maja Desnuda, o fez sentir revigorado, embora a rejeição, vinda na sequência, tenha conduzido Goya a um isolamento ainda maior. As máscaras e as caricaturas que ele desenha após a morte da duquesa, segundo Todorov, constituem uma maneira de revelar a pessoa que o rosto dissimula. O real deixa de ser o verdadeiro para que essas máscaras construam a identidade dos indivíduos. Soa como uma observação hegeliana, mas faz todo o sentido no caso de Goya, que explorou o mundo interior e rejeitou a representação natural, anunciando assim a pintura moderna. Sai a estética neoclássica e entra a "verdade oculta dos seres".

No entanto, observa Todorov, a postura de Goya não é a dos satiristas antigos nem a dos niilistas modernos. "Talvez ele não dedique grande estima à humanidade, mas preza sempre as pessoas que o rodeiam." Os personagens de série como Caprichos podem ter um aspecto monstruoso, mas são apenas frutos dos pesadelos pessoais do pintor. Servindo com zelo a todos os reis da Espanha, Goya sentia-se igualmente atraído pelas bruxas e outros seres sobrenaturais da imaginação popular. Todorov recusa-se a ver nele um precursor do repórter ou do fotógrafo de guerra. Goya, conclui o autor, simplesmente se conformou em explorar sua memória e obsessões secretas, fustigando as superstições do povão.

À SOMBRA DAS LUZESAutor: Tzvetan TodorovTradução: Joana Angélica d’Avila MeloEditora: Companhia das Letras (288 págs., R$ 49,50)

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