A cegueira ética da humanidade


Vladimir Jankélévitch defende que o homem vive a maior parte da vida de olhos fechados para a moral

Por Regina Schöpke

Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903- 1985), "o homem é um ser virtualmente ético, que existe como tal, isto é, como ser moral". Mas completa a frase com uma afirmação surpreendente: ele é um ser moral "de tempos em tempos e de longe em longe - de muito longe em muito longe". Sem dúvida, parece haver algum sarcasmo nessas palavras, mas trata-se apenas de simples e lúcida constatação: a de que embora os homens não possam prescindir dos seus valores, a verdade é que passam a maior parte do tempo de suas vidas numa espécie de cegueira moral ou ética, algo que Jankélévitch chama de "eclipses da consciência", "anestesiamento moral". Em outras palavras, o homem vive transigindo com os próprios valores, praticamente alheio aos princípios que diz acreditar: em suma, fala uma coisa e vive outra. Mas basta algo ameaçar o seu castelo de areia e, então, a moral ressurge forte como a guardiã desse homem e da sociedade. "A moral tem sempre a última palavra", diz Jankélévitch. De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito, o embate contínuo entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independente de ser chamada de ética ou de qualquer outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" (queiramos ou não) estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais drásticos e decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral. Nele, deparamo-nos não com a exposição de valores morais atemporais, mas com a descrição minuciosa e sensível dos mais profundos dilemas humanos, do desespero diante das difíceis escolhas da vida, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e dos prazeres e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante. Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne de 1951 a 1979, usa uma linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. E há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar (sobretudo, como seres sociais), que nos lembra das obrigações e deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não instrumento que lhe sirva de guia para uma vida plena e real. Shakespeare (no sublime Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes. Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições, "palavras de ordem" e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de tormentos, crises de consciência, desesperos profundos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social. Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros"? Sim e não. Claro, somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva (e disso entendiam bem os gregos). É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos mesquinhos e egoístas, mas não de suas necessidades reais, vitais, essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age "contranatura", age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado. Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de imposturas e falsidades: eis porque a palavra empenhada e as promessas feitas serão em geral traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo hipócrita e atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível transfigurá-los, recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em quimeras e falsos pressupostos. Jankélévitch conhece bem o homem, conhece a moral de dentro. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade. Regina Schöpke é filósofa, historiadora e atualmente faz pós-doutorado na Unicamp O Paradoxo da Moral Vladimir Jankélévitch Martins Fontes 252 págs., R$ 37,50

Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903- 1985), "o homem é um ser virtualmente ético, que existe como tal, isto é, como ser moral". Mas completa a frase com uma afirmação surpreendente: ele é um ser moral "de tempos em tempos e de longe em longe - de muito longe em muito longe". Sem dúvida, parece haver algum sarcasmo nessas palavras, mas trata-se apenas de simples e lúcida constatação: a de que embora os homens não possam prescindir dos seus valores, a verdade é que passam a maior parte do tempo de suas vidas numa espécie de cegueira moral ou ética, algo que Jankélévitch chama de "eclipses da consciência", "anestesiamento moral". Em outras palavras, o homem vive transigindo com os próprios valores, praticamente alheio aos princípios que diz acreditar: em suma, fala uma coisa e vive outra. Mas basta algo ameaçar o seu castelo de areia e, então, a moral ressurge forte como a guardiã desse homem e da sociedade. "A moral tem sempre a última palavra", diz Jankélévitch. De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito, o embate contínuo entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independente de ser chamada de ética ou de qualquer outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" (queiramos ou não) estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais drásticos e decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral. Nele, deparamo-nos não com a exposição de valores morais atemporais, mas com a descrição minuciosa e sensível dos mais profundos dilemas humanos, do desespero diante das difíceis escolhas da vida, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e dos prazeres e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante. Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne de 1951 a 1979, usa uma linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. E há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar (sobretudo, como seres sociais), que nos lembra das obrigações e deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não instrumento que lhe sirva de guia para uma vida plena e real. Shakespeare (no sublime Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes. Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições, "palavras de ordem" e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de tormentos, crises de consciência, desesperos profundos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social. Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros"? Sim e não. Claro, somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva (e disso entendiam bem os gregos). É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos mesquinhos e egoístas, mas não de suas necessidades reais, vitais, essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age "contranatura", age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado. Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de imposturas e falsidades: eis porque a palavra empenhada e as promessas feitas serão em geral traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo hipócrita e atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível transfigurá-los, recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em quimeras e falsos pressupostos. Jankélévitch conhece bem o homem, conhece a moral de dentro. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade. Regina Schöpke é filósofa, historiadora e atualmente faz pós-doutorado na Unicamp O Paradoxo da Moral Vladimir Jankélévitch Martins Fontes 252 págs., R$ 37,50

Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903- 1985), "o homem é um ser virtualmente ético, que existe como tal, isto é, como ser moral". Mas completa a frase com uma afirmação surpreendente: ele é um ser moral "de tempos em tempos e de longe em longe - de muito longe em muito longe". Sem dúvida, parece haver algum sarcasmo nessas palavras, mas trata-se apenas de simples e lúcida constatação: a de que embora os homens não possam prescindir dos seus valores, a verdade é que passam a maior parte do tempo de suas vidas numa espécie de cegueira moral ou ética, algo que Jankélévitch chama de "eclipses da consciência", "anestesiamento moral". Em outras palavras, o homem vive transigindo com os próprios valores, praticamente alheio aos princípios que diz acreditar: em suma, fala uma coisa e vive outra. Mas basta algo ameaçar o seu castelo de areia e, então, a moral ressurge forte como a guardiã desse homem e da sociedade. "A moral tem sempre a última palavra", diz Jankélévitch. De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito, o embate contínuo entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independente de ser chamada de ética ou de qualquer outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" (queiramos ou não) estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais drásticos e decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral. Nele, deparamo-nos não com a exposição de valores morais atemporais, mas com a descrição minuciosa e sensível dos mais profundos dilemas humanos, do desespero diante das difíceis escolhas da vida, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e dos prazeres e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante. Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne de 1951 a 1979, usa uma linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. E há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar (sobretudo, como seres sociais), que nos lembra das obrigações e deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não instrumento que lhe sirva de guia para uma vida plena e real. Shakespeare (no sublime Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes. Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições, "palavras de ordem" e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de tormentos, crises de consciência, desesperos profundos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social. Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros"? Sim e não. Claro, somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva (e disso entendiam bem os gregos). É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos mesquinhos e egoístas, mas não de suas necessidades reais, vitais, essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age "contranatura", age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado. Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de imposturas e falsidades: eis porque a palavra empenhada e as promessas feitas serão em geral traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo hipócrita e atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível transfigurá-los, recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em quimeras e falsos pressupostos. Jankélévitch conhece bem o homem, conhece a moral de dentro. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade. Regina Schöpke é filósofa, historiadora e atualmente faz pós-doutorado na Unicamp O Paradoxo da Moral Vladimir Jankélévitch Martins Fontes 252 págs., R$ 37,50

Para o filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch (1903- 1985), "o homem é um ser virtualmente ético, que existe como tal, isto é, como ser moral". Mas completa a frase com uma afirmação surpreendente: ele é um ser moral "de tempos em tempos e de longe em longe - de muito longe em muito longe". Sem dúvida, parece haver algum sarcasmo nessas palavras, mas trata-se apenas de simples e lúcida constatação: a de que embora os homens não possam prescindir dos seus valores, a verdade é que passam a maior parte do tempo de suas vidas numa espécie de cegueira moral ou ética, algo que Jankélévitch chama de "eclipses da consciência", "anestesiamento moral". Em outras palavras, o homem vive transigindo com os próprios valores, praticamente alheio aos princípios que diz acreditar: em suma, fala uma coisa e vive outra. Mas basta algo ameaçar o seu castelo de areia e, então, a moral ressurge forte como a guardiã desse homem e da sociedade. "A moral tem sempre a última palavra", diz Jankélévitch. De fato, nada parece descrever melhor a existência humana do que o eterno conflito, o embate contínuo entre os desejos e as necessidades mais profundas do indivíduo e a vida social, as obrigações e os deveres para com "o outro". Para Jankélévitch, a moral sempre será um problema filosófico, e o primeiro deles, independente de ser chamada de ética ou de qualquer outro nome. Afinal, o homem é um animal social e, nesse sentido, o "outro" (queiramos ou não) estará sempre em nosso horizonte, senão o tempo inteiro, ao menos nos momentos mais drásticos e decisivos. É isso que defende Jankélévitch em seu livro O Paradoxo da Moral. Nele, deparamo-nos não com a exposição de valores morais atemporais, mas com a descrição minuciosa e sensível dos mais profundos dilemas humanos, do desespero diante das difíceis escolhas da vida, do eterno medo de desviar-se das obrigações por causa das paixões e dos prazeres e até mesmo as incertezas de se viver um grande amor, não apenas quando ele se choca com as conveniências sociais, mas pela natureza paradoxal dessa entrega total e atordoante. Jankélévitch, que ocupou a cadeira de filosofia moral na Sorbonne de 1951 a 1979, usa uma linguagem teológica quando nos fala da vox conscientiae. É assim que descreve esse "outro" em nós, essa voz sem interlocutor ou, simplesmente, a própria consciência "face a face" consigo mesma. E há maior paradoxo do que esse ser cindido, que vê a si próprio (ou pensa se ver)? Num âmbito mais profundo, a consciência é aquela que nos alerta dos perigos, que deseja nos conservar (sobretudo, como seres sociais), que nos lembra das obrigações e deveres. Para Nietzsche, ela é uma espécie de carcereira do homem, e não instrumento que lhe sirva de guia para uma vida plena e real. Shakespeare (no sublime Hamlet) também dizia algo semelhante ao afirmar que é ela que faz de todos nós covardes. Bem, sendo um conjunto de valores, normas, preceitos, proibições, "palavras de ordem" e ideais, a moral é, no fundo, a voz do campo social e de tal maneira está impregnada em nossa consciência (e inconsciente) que parece mesmo impossível romper com ela. É isso, pelo menos, que pensa Jankélévitch: por mais que nos julguemos livres, os valores que nos constituíram estão sempre agindo sobre nós. Isso é verdade e mais ainda numa moral teológica como a ocidental, que com seu jogo profundo de culpas e remorsos, eleva o drama do indivíduo à enésima potência. O homem, criado dentro dessa moral de renúncias absolutas e sacrifícios pessoais demasiado humanos (diria Nietzsche), não poderia deixar de ser melancólico e confuso. É assim que a sua vida interior, tão bem retratada por Jankélévitch, mostra-se repleta de tormentos, crises de consciência, desesperos profundos e, sobretudo, de pavor diante das paixões e dos prazeres, sempre considerados perigosos para a conservação da vida social. Mas será mesmo a moral algo inescapável? Será que o "eu" é sempre privado de seus direitos à felicidade ou à liberdade em prol dos "outros"? Sim e não. Claro, somos seres sociais, mas sem felicidade individual também não pode haver felicidade coletiva (e disso entendiam bem os gregos). É verdade que a vida em sociedade exige que o indivíduo ponha o grupo acima de seus desejos mesquinhos e egoístas, mas não de suas necessidades reais, vitais, essenciais; uma moral ou uma sociedade que exige isso age "contranatura", age contra o próprio homem. Eis o que Nietzsche já havia nos mostrado. Em outros termos, numa moral de renúncia total, o homem torna-se um ser cheio de imposturas e falsidades: eis porque a palavra empenhada e as promessas feitas serão em geral traídas ou cinicamente vividas (porque, no fundo, o homem não consegue e não pode abrir mão completamente dos seus desejos e paixões; ele apenas os viverá de modo hipócrita e atormentado). Se há algo que Nietzsche ensinou de superior a todos os outros filósofos é que tendo sido o próprio homem o criador de seus valores é sempre possível transfigurá-los, recriá-los. No fundo, a diferença capital entre Nietzsche e Jankélévitch é que se, para Jankélévitch, o homem vive anestesiado quando fecha os olhos para a moral que o constituiu, para Nietzsche, a moral acaba se convertendo no próprio anestesiamento do homem quando esses valores estão fundamentados em quimeras e falsos pressupostos. Jankélévitch conhece bem o homem, conhece a moral de dentro. Mas é Nietzsche quem ensina o caminho da vida sem hipocrisias. Ele faz a guerra contra os valores que nos condenam a viver covardemente, a aceitarmos nossa condição como inexorável, a tratarmos como pecado e tentação o que é parte do nosso ser. Se Jankélévitch fala em elevação moral, Nietzsche fala em elevação real. Afinal, para o filósofo alemão, "elevar-se" significa viver de fato os valores na sua máxima potência, e não só de "tempos em tempos". Mas, para isso, é preciso estar em consonância consigo mesmo e com a vida (e não contra ela). É preciso, antes de qualquer outra coisa, ter coragem de romper as amarras e viver de verdade. Regina Schöpke é filósofa, historiadora e atualmente faz pós-doutorado na Unicamp O Paradoxo da Moral Vladimir Jankélévitch Martins Fontes 252 págs., R$ 37,50

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