Delicadeza na apreensão dos sentimentos


Felicidade Conjugal (1859), uma das primeiras novelas escritas pelo prolífico autor, enfatiza detalhes do relacionamento amoroso

Por Aurora F. Bernardini

Felicidade Conjugal foi uma das primeiras novelas escritas pelo conde Lev Nikoláevitch Tolstói que, após várias tentativas universitárias não levadas a cabo, ingressara, para experimentar-se, na carreira militar, seguindo as pegadas do irmão mais velho, Nikolai, oficial de cavalaria no Cáucaso. Provada a sua coragem na defesa de Sebastópol - onde, após inúmeras aventuras libertinas e dívidas de jogo, servira heroicamente -, Lev fora em seguida transferido para São Petersburgo como oficial mensageiro, seu último encargo antes de obter baixa no exército. Depois de alguns contos ainda não publicados, tivera o manuscrito da primeira parte de sua trilogia Infância, Adolescência, Juventude aceito por Nekrassov para sair na prestigiosa revista literária peterburguense Sovremiénnik (O Contemporâneo). Familiares, críticos e amigos (entre os quais o influente Turguénev) o aplaudem e insistem: seu caminho é escrever. Em Petersburgo, ele conhece a fina flor da intelligentzia liberal: Tiútchev, Gontcharóv, Grigórovitch, Písemski, Panaev, Polonski, Ánnenkov, Fet... Todos sorriem de suas maneiras de "troglodita" e lhe admiram o "ardor selvagem". Mesmo em Moscou, onde conhece os irmãos Aksákov, adeptos do "eslavofilismo" - e empenhados em defender a cultura russa tradicional contra a de importação europeia que agradava aos ocidentalistas petersburguenses -, Lev não abandona aquele ar provocador, crítico e arredio que parece ter adotado como seu. "Naquele período eu era particularmente desprezível", escreverá ele no diário (1903) que, iniciado em 1847, manterá durante a vida inteira. Enfim, após ter brigado até mesmo com Turguénev e partido para o estrangeiro por um breve período, Lev se instala em Iásnaia Poliana, a propriedade de Tula, não longe de Moscou, onde nascera, que a mãe lhe deixara como herança e que logo viria a ser palco de suas experiências pedagógico-libertárias. Inicia sua vida no campo cheio de regras e horários que ele estabelecia para si mesmo, e de boas intenções - sabe-se que era um leitor cuidadoso, anotando numa espécie de breviário as frases que considerava notáveis (tal como o nosso Machado de Assis), e um férreo autodidata, tendo chegado, mais tarde, a aprender sozinho o grego antigo. É nessa época que ele passa a frequentar a casa dos Arsénev, vizinhos de Iásnaia Poliana, por se achar seriamente enamorado pela jovem Valéria, a filha do casal, a quem escreve longas cartas sobre a fenomenologia de seu estado, os ciúmes que porventura sentia, a santidade do matrimônio (elementos-chave da futura novela Felicidade Conjugal, em fase de gestação), mas não chega a declarar-se. Pelo contrário, larga tudo e parte de novo para a Europa. Depois de Paris, os Alpes, a Itália, a Suíça e Baden Baden. Em fins de 1857 fixa-se definitivamente em Iásnaia Poliana, afora as idas a Moscou no período invernal, onde, durante certo tempo, crê estar apaixonado por Ekaterina, filha do poeta Tiútchev. Escreve contos e novelas - A Nevasca, O Degradado, Os Dois Hussardos, A Luzerna, Albert, Três Mortes -, discute com os nobres de Tula sobre os compromissos a serem propostos aos camponeses, uma vez que a servidão da gleba está para ser abolida pelo czar e, durante uma caçada, é ferido na testa e na face por uma ursa. Em 1859 está amasiado com uma camponesa de Iásnaia, a formosa Aksínia Bazúkina, a quem deixará após o nascimento de Nikita, seu filho natural. Em 1862 casa-se, finalmente, com Sófia Bers, (Sonia), filha de um médico do Krêmlin. Ela tem 18 anos e Tolstói, 34. Quem não tivesse em mente a cronologia da vida e obra do escritor talvez achasse, com razão, que Felicidade Conjugal, de 1859, (que ganha agora tradução para o português de Boris Schnaiderman e será lançada no dia 10 de setembro pela Editora 34) poderia ter-se inspirado na vida dos Tolstói, logo após seu casamento (o título, no original, é Felicidade Familiar). De fato, a novela é como que um recorte de sua vida doméstica e sentimental, sem preocupações de ordem política ou religiosa: a moça bem mais jovem que o marido - conhecedor das "coisas" do mundo e por elas obscuramente atraída; o idílio no campo; o tédio que a envolve; a mudança para a capital; os ciúmes de um lado e de outro; a atração do "abismo"; a culpa e o perdão implícitos; a volta ao campo; a serenidade e "outro tipo de amor", à vista dos filhos que crescem e a quem o futuro espera. Na verdade, o relacionamento de um casal é um dos leitmotiven da obra tolstoiana. Quem não lembra a frase que abre Anna Karênina: "Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira"? E, mesmo em Guerra e Paz, as relações dos vários grupos familiares ligados à personagem Natasha são descritas com sutileza extrema. Isso sem falar em Sonata a Kreutzer, em que as relações conjugais são exacerbadas, acompanhando o período borrascoso vivido por Tolstói em sua casa, depois da "crise" de 1880, e minuciosamente descritas também pela mulher de Tolstói, que mantinha igualmente um diário. Relações essas que 20 anos mais tarde em Padre Sérgio e Ressurreição (1898), irão enveredar pela vertente mística. O que assombra em Felicidade Conjugal, narrada pela protagonista em primeira pessoa, mais do que o enredo, é a profundidade e a delicadeza da apreensão dos menores detalhes significativos: o tom de voz, a expressão do olhar, o ritmo da respiração, juntamente com o sábio disfarce dos arquétipos sentimentais e sexuais que marcam as etapas da sedução, do desencantamento, da reconquista, e que Tolstói, como bom musicista que era, soube semear desde o começo da narrativa, para retomar mais tarde. Nem falta à novela aquilo que Tolstói considerava a condição sine qua non da criação artística e que analisou em O Que É A Arte: o fenômeno da contaminação. Nada mais apropriado do que o enamoramento para exemplificá-lo: "Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de então" - diz a narradora - "não eram meus, eram pensamentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus, passaram para a minha vida e a iluminaram." Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa da Universidade de São Paulo

Felicidade Conjugal foi uma das primeiras novelas escritas pelo conde Lev Nikoláevitch Tolstói que, após várias tentativas universitárias não levadas a cabo, ingressara, para experimentar-se, na carreira militar, seguindo as pegadas do irmão mais velho, Nikolai, oficial de cavalaria no Cáucaso. Provada a sua coragem na defesa de Sebastópol - onde, após inúmeras aventuras libertinas e dívidas de jogo, servira heroicamente -, Lev fora em seguida transferido para São Petersburgo como oficial mensageiro, seu último encargo antes de obter baixa no exército. Depois de alguns contos ainda não publicados, tivera o manuscrito da primeira parte de sua trilogia Infância, Adolescência, Juventude aceito por Nekrassov para sair na prestigiosa revista literária peterburguense Sovremiénnik (O Contemporâneo). Familiares, críticos e amigos (entre os quais o influente Turguénev) o aplaudem e insistem: seu caminho é escrever. Em Petersburgo, ele conhece a fina flor da intelligentzia liberal: Tiútchev, Gontcharóv, Grigórovitch, Písemski, Panaev, Polonski, Ánnenkov, Fet... Todos sorriem de suas maneiras de "troglodita" e lhe admiram o "ardor selvagem". Mesmo em Moscou, onde conhece os irmãos Aksákov, adeptos do "eslavofilismo" - e empenhados em defender a cultura russa tradicional contra a de importação europeia que agradava aos ocidentalistas petersburguenses -, Lev não abandona aquele ar provocador, crítico e arredio que parece ter adotado como seu. "Naquele período eu era particularmente desprezível", escreverá ele no diário (1903) que, iniciado em 1847, manterá durante a vida inteira. Enfim, após ter brigado até mesmo com Turguénev e partido para o estrangeiro por um breve período, Lev se instala em Iásnaia Poliana, a propriedade de Tula, não longe de Moscou, onde nascera, que a mãe lhe deixara como herança e que logo viria a ser palco de suas experiências pedagógico-libertárias. Inicia sua vida no campo cheio de regras e horários que ele estabelecia para si mesmo, e de boas intenções - sabe-se que era um leitor cuidadoso, anotando numa espécie de breviário as frases que considerava notáveis (tal como o nosso Machado de Assis), e um férreo autodidata, tendo chegado, mais tarde, a aprender sozinho o grego antigo. É nessa época que ele passa a frequentar a casa dos Arsénev, vizinhos de Iásnaia Poliana, por se achar seriamente enamorado pela jovem Valéria, a filha do casal, a quem escreve longas cartas sobre a fenomenologia de seu estado, os ciúmes que porventura sentia, a santidade do matrimônio (elementos-chave da futura novela Felicidade Conjugal, em fase de gestação), mas não chega a declarar-se. Pelo contrário, larga tudo e parte de novo para a Europa. Depois de Paris, os Alpes, a Itália, a Suíça e Baden Baden. Em fins de 1857 fixa-se definitivamente em Iásnaia Poliana, afora as idas a Moscou no período invernal, onde, durante certo tempo, crê estar apaixonado por Ekaterina, filha do poeta Tiútchev. Escreve contos e novelas - A Nevasca, O Degradado, Os Dois Hussardos, A Luzerna, Albert, Três Mortes -, discute com os nobres de Tula sobre os compromissos a serem propostos aos camponeses, uma vez que a servidão da gleba está para ser abolida pelo czar e, durante uma caçada, é ferido na testa e na face por uma ursa. Em 1859 está amasiado com uma camponesa de Iásnaia, a formosa Aksínia Bazúkina, a quem deixará após o nascimento de Nikita, seu filho natural. Em 1862 casa-se, finalmente, com Sófia Bers, (Sonia), filha de um médico do Krêmlin. Ela tem 18 anos e Tolstói, 34. Quem não tivesse em mente a cronologia da vida e obra do escritor talvez achasse, com razão, que Felicidade Conjugal, de 1859, (que ganha agora tradução para o português de Boris Schnaiderman e será lançada no dia 10 de setembro pela Editora 34) poderia ter-se inspirado na vida dos Tolstói, logo após seu casamento (o título, no original, é Felicidade Familiar). De fato, a novela é como que um recorte de sua vida doméstica e sentimental, sem preocupações de ordem política ou religiosa: a moça bem mais jovem que o marido - conhecedor das "coisas" do mundo e por elas obscuramente atraída; o idílio no campo; o tédio que a envolve; a mudança para a capital; os ciúmes de um lado e de outro; a atração do "abismo"; a culpa e o perdão implícitos; a volta ao campo; a serenidade e "outro tipo de amor", à vista dos filhos que crescem e a quem o futuro espera. Na verdade, o relacionamento de um casal é um dos leitmotiven da obra tolstoiana. Quem não lembra a frase que abre Anna Karênina: "Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira"? E, mesmo em Guerra e Paz, as relações dos vários grupos familiares ligados à personagem Natasha são descritas com sutileza extrema. Isso sem falar em Sonata a Kreutzer, em que as relações conjugais são exacerbadas, acompanhando o período borrascoso vivido por Tolstói em sua casa, depois da "crise" de 1880, e minuciosamente descritas também pela mulher de Tolstói, que mantinha igualmente um diário. Relações essas que 20 anos mais tarde em Padre Sérgio e Ressurreição (1898), irão enveredar pela vertente mística. O que assombra em Felicidade Conjugal, narrada pela protagonista em primeira pessoa, mais do que o enredo, é a profundidade e a delicadeza da apreensão dos menores detalhes significativos: o tom de voz, a expressão do olhar, o ritmo da respiração, juntamente com o sábio disfarce dos arquétipos sentimentais e sexuais que marcam as etapas da sedução, do desencantamento, da reconquista, e que Tolstói, como bom musicista que era, soube semear desde o começo da narrativa, para retomar mais tarde. Nem falta à novela aquilo que Tolstói considerava a condição sine qua non da criação artística e que analisou em O Que É A Arte: o fenômeno da contaminação. Nada mais apropriado do que o enamoramento para exemplificá-lo: "Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de então" - diz a narradora - "não eram meus, eram pensamentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus, passaram para a minha vida e a iluminaram." Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa da Universidade de São Paulo

Felicidade Conjugal foi uma das primeiras novelas escritas pelo conde Lev Nikoláevitch Tolstói que, após várias tentativas universitárias não levadas a cabo, ingressara, para experimentar-se, na carreira militar, seguindo as pegadas do irmão mais velho, Nikolai, oficial de cavalaria no Cáucaso. Provada a sua coragem na defesa de Sebastópol - onde, após inúmeras aventuras libertinas e dívidas de jogo, servira heroicamente -, Lev fora em seguida transferido para São Petersburgo como oficial mensageiro, seu último encargo antes de obter baixa no exército. Depois de alguns contos ainda não publicados, tivera o manuscrito da primeira parte de sua trilogia Infância, Adolescência, Juventude aceito por Nekrassov para sair na prestigiosa revista literária peterburguense Sovremiénnik (O Contemporâneo). Familiares, críticos e amigos (entre os quais o influente Turguénev) o aplaudem e insistem: seu caminho é escrever. Em Petersburgo, ele conhece a fina flor da intelligentzia liberal: Tiútchev, Gontcharóv, Grigórovitch, Písemski, Panaev, Polonski, Ánnenkov, Fet... Todos sorriem de suas maneiras de "troglodita" e lhe admiram o "ardor selvagem". Mesmo em Moscou, onde conhece os irmãos Aksákov, adeptos do "eslavofilismo" - e empenhados em defender a cultura russa tradicional contra a de importação europeia que agradava aos ocidentalistas petersburguenses -, Lev não abandona aquele ar provocador, crítico e arredio que parece ter adotado como seu. "Naquele período eu era particularmente desprezível", escreverá ele no diário (1903) que, iniciado em 1847, manterá durante a vida inteira. Enfim, após ter brigado até mesmo com Turguénev e partido para o estrangeiro por um breve período, Lev se instala em Iásnaia Poliana, a propriedade de Tula, não longe de Moscou, onde nascera, que a mãe lhe deixara como herança e que logo viria a ser palco de suas experiências pedagógico-libertárias. Inicia sua vida no campo cheio de regras e horários que ele estabelecia para si mesmo, e de boas intenções - sabe-se que era um leitor cuidadoso, anotando numa espécie de breviário as frases que considerava notáveis (tal como o nosso Machado de Assis), e um férreo autodidata, tendo chegado, mais tarde, a aprender sozinho o grego antigo. É nessa época que ele passa a frequentar a casa dos Arsénev, vizinhos de Iásnaia Poliana, por se achar seriamente enamorado pela jovem Valéria, a filha do casal, a quem escreve longas cartas sobre a fenomenologia de seu estado, os ciúmes que porventura sentia, a santidade do matrimônio (elementos-chave da futura novela Felicidade Conjugal, em fase de gestação), mas não chega a declarar-se. Pelo contrário, larga tudo e parte de novo para a Europa. Depois de Paris, os Alpes, a Itália, a Suíça e Baden Baden. Em fins de 1857 fixa-se definitivamente em Iásnaia Poliana, afora as idas a Moscou no período invernal, onde, durante certo tempo, crê estar apaixonado por Ekaterina, filha do poeta Tiútchev. Escreve contos e novelas - A Nevasca, O Degradado, Os Dois Hussardos, A Luzerna, Albert, Três Mortes -, discute com os nobres de Tula sobre os compromissos a serem propostos aos camponeses, uma vez que a servidão da gleba está para ser abolida pelo czar e, durante uma caçada, é ferido na testa e na face por uma ursa. Em 1859 está amasiado com uma camponesa de Iásnaia, a formosa Aksínia Bazúkina, a quem deixará após o nascimento de Nikita, seu filho natural. Em 1862 casa-se, finalmente, com Sófia Bers, (Sonia), filha de um médico do Krêmlin. Ela tem 18 anos e Tolstói, 34. Quem não tivesse em mente a cronologia da vida e obra do escritor talvez achasse, com razão, que Felicidade Conjugal, de 1859, (que ganha agora tradução para o português de Boris Schnaiderman e será lançada no dia 10 de setembro pela Editora 34) poderia ter-se inspirado na vida dos Tolstói, logo após seu casamento (o título, no original, é Felicidade Familiar). De fato, a novela é como que um recorte de sua vida doméstica e sentimental, sem preocupações de ordem política ou religiosa: a moça bem mais jovem que o marido - conhecedor das "coisas" do mundo e por elas obscuramente atraída; o idílio no campo; o tédio que a envolve; a mudança para a capital; os ciúmes de um lado e de outro; a atração do "abismo"; a culpa e o perdão implícitos; a volta ao campo; a serenidade e "outro tipo de amor", à vista dos filhos que crescem e a quem o futuro espera. Na verdade, o relacionamento de um casal é um dos leitmotiven da obra tolstoiana. Quem não lembra a frase que abre Anna Karênina: "Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira"? E, mesmo em Guerra e Paz, as relações dos vários grupos familiares ligados à personagem Natasha são descritas com sutileza extrema. Isso sem falar em Sonata a Kreutzer, em que as relações conjugais são exacerbadas, acompanhando o período borrascoso vivido por Tolstói em sua casa, depois da "crise" de 1880, e minuciosamente descritas também pela mulher de Tolstói, que mantinha igualmente um diário. Relações essas que 20 anos mais tarde em Padre Sérgio e Ressurreição (1898), irão enveredar pela vertente mística. O que assombra em Felicidade Conjugal, narrada pela protagonista em primeira pessoa, mais do que o enredo, é a profundidade e a delicadeza da apreensão dos menores detalhes significativos: o tom de voz, a expressão do olhar, o ritmo da respiração, juntamente com o sábio disfarce dos arquétipos sentimentais e sexuais que marcam as etapas da sedução, do desencantamento, da reconquista, e que Tolstói, como bom musicista que era, soube semear desde o começo da narrativa, para retomar mais tarde. Nem falta à novela aquilo que Tolstói considerava a condição sine qua non da criação artística e que analisou em O Que É A Arte: o fenômeno da contaminação. Nada mais apropriado do que o enamoramento para exemplificá-lo: "Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de então" - diz a narradora - "não eram meus, eram pensamentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus, passaram para a minha vida e a iluminaram." Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa da Universidade de São Paulo

Felicidade Conjugal foi uma das primeiras novelas escritas pelo conde Lev Nikoláevitch Tolstói que, após várias tentativas universitárias não levadas a cabo, ingressara, para experimentar-se, na carreira militar, seguindo as pegadas do irmão mais velho, Nikolai, oficial de cavalaria no Cáucaso. Provada a sua coragem na defesa de Sebastópol - onde, após inúmeras aventuras libertinas e dívidas de jogo, servira heroicamente -, Lev fora em seguida transferido para São Petersburgo como oficial mensageiro, seu último encargo antes de obter baixa no exército. Depois de alguns contos ainda não publicados, tivera o manuscrito da primeira parte de sua trilogia Infância, Adolescência, Juventude aceito por Nekrassov para sair na prestigiosa revista literária peterburguense Sovremiénnik (O Contemporâneo). Familiares, críticos e amigos (entre os quais o influente Turguénev) o aplaudem e insistem: seu caminho é escrever. Em Petersburgo, ele conhece a fina flor da intelligentzia liberal: Tiútchev, Gontcharóv, Grigórovitch, Písemski, Panaev, Polonski, Ánnenkov, Fet... Todos sorriem de suas maneiras de "troglodita" e lhe admiram o "ardor selvagem". Mesmo em Moscou, onde conhece os irmãos Aksákov, adeptos do "eslavofilismo" - e empenhados em defender a cultura russa tradicional contra a de importação europeia que agradava aos ocidentalistas petersburguenses -, Lev não abandona aquele ar provocador, crítico e arredio que parece ter adotado como seu. "Naquele período eu era particularmente desprezível", escreverá ele no diário (1903) que, iniciado em 1847, manterá durante a vida inteira. Enfim, após ter brigado até mesmo com Turguénev e partido para o estrangeiro por um breve período, Lev se instala em Iásnaia Poliana, a propriedade de Tula, não longe de Moscou, onde nascera, que a mãe lhe deixara como herança e que logo viria a ser palco de suas experiências pedagógico-libertárias. Inicia sua vida no campo cheio de regras e horários que ele estabelecia para si mesmo, e de boas intenções - sabe-se que era um leitor cuidadoso, anotando numa espécie de breviário as frases que considerava notáveis (tal como o nosso Machado de Assis), e um férreo autodidata, tendo chegado, mais tarde, a aprender sozinho o grego antigo. É nessa época que ele passa a frequentar a casa dos Arsénev, vizinhos de Iásnaia Poliana, por se achar seriamente enamorado pela jovem Valéria, a filha do casal, a quem escreve longas cartas sobre a fenomenologia de seu estado, os ciúmes que porventura sentia, a santidade do matrimônio (elementos-chave da futura novela Felicidade Conjugal, em fase de gestação), mas não chega a declarar-se. Pelo contrário, larga tudo e parte de novo para a Europa. Depois de Paris, os Alpes, a Itália, a Suíça e Baden Baden. Em fins de 1857 fixa-se definitivamente em Iásnaia Poliana, afora as idas a Moscou no período invernal, onde, durante certo tempo, crê estar apaixonado por Ekaterina, filha do poeta Tiútchev. Escreve contos e novelas - A Nevasca, O Degradado, Os Dois Hussardos, A Luzerna, Albert, Três Mortes -, discute com os nobres de Tula sobre os compromissos a serem propostos aos camponeses, uma vez que a servidão da gleba está para ser abolida pelo czar e, durante uma caçada, é ferido na testa e na face por uma ursa. Em 1859 está amasiado com uma camponesa de Iásnaia, a formosa Aksínia Bazúkina, a quem deixará após o nascimento de Nikita, seu filho natural. Em 1862 casa-se, finalmente, com Sófia Bers, (Sonia), filha de um médico do Krêmlin. Ela tem 18 anos e Tolstói, 34. Quem não tivesse em mente a cronologia da vida e obra do escritor talvez achasse, com razão, que Felicidade Conjugal, de 1859, (que ganha agora tradução para o português de Boris Schnaiderman e será lançada no dia 10 de setembro pela Editora 34) poderia ter-se inspirado na vida dos Tolstói, logo após seu casamento (o título, no original, é Felicidade Familiar). De fato, a novela é como que um recorte de sua vida doméstica e sentimental, sem preocupações de ordem política ou religiosa: a moça bem mais jovem que o marido - conhecedor das "coisas" do mundo e por elas obscuramente atraída; o idílio no campo; o tédio que a envolve; a mudança para a capital; os ciúmes de um lado e de outro; a atração do "abismo"; a culpa e o perdão implícitos; a volta ao campo; a serenidade e "outro tipo de amor", à vista dos filhos que crescem e a quem o futuro espera. Na verdade, o relacionamento de um casal é um dos leitmotiven da obra tolstoiana. Quem não lembra a frase que abre Anna Karênina: "Todas as famílias felizes se parecem; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira"? E, mesmo em Guerra e Paz, as relações dos vários grupos familiares ligados à personagem Natasha são descritas com sutileza extrema. Isso sem falar em Sonata a Kreutzer, em que as relações conjugais são exacerbadas, acompanhando o período borrascoso vivido por Tolstói em sua casa, depois da "crise" de 1880, e minuciosamente descritas também pela mulher de Tolstói, que mantinha igualmente um diário. Relações essas que 20 anos mais tarde em Padre Sérgio e Ressurreição (1898), irão enveredar pela vertente mística. O que assombra em Felicidade Conjugal, narrada pela protagonista em primeira pessoa, mais do que o enredo, é a profundidade e a delicadeza da apreensão dos menores detalhes significativos: o tom de voz, a expressão do olhar, o ritmo da respiração, juntamente com o sábio disfarce dos arquétipos sentimentais e sexuais que marcam as etapas da sedução, do desencantamento, da reconquista, e que Tolstói, como bom musicista que era, soube semear desde o começo da narrativa, para retomar mais tarde. Nem falta à novela aquilo que Tolstói considerava a condição sine qua non da criação artística e que analisou em O Que É A Arte: o fenômeno da contaminação. Nada mais apropriado do que o enamoramento para exemplificá-lo: "Todos os meus pensamentos, todos os meus sentimentos de então" - diz a narradora - "não eram meus, eram pensamentos e sentimentos dele, que de repente se tornaram meus, passaram para a minha vida e a iluminaram." Aurora F. Bernardini é professora de pós-graduação em Literatura Russa da Universidade de São Paulo

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