Encenação faz de tema uma estética


Cachorro Morto usa nova linguagem para traduzir outro modo de estar no mundo

Por Mariangela Alves de Lima

Um acaso colocou os cinco intérpretes de Cachorro Morto enfileirados contra o muro de uma sala. Partindo dessa estreita margem para manobras, o espetáculo concebido e dirigido por Leonardo Moreira transforma a faixa destinada à cena em signo do espaço mental, uma vez que os múltiplos narradores da peça manifestam como primeiro sintoma de um psiquismo singular o terror do contato físico com outras pessoas. Entre as variáveis que definem o autismo a constante do isolamento, ou seja, da pessoa que em meio a outras permanece fora do alcance, é mais aterrorizante e, provavelmente, a mais dolorosa para quem lança sobre esse mutismo os gestos e tons habituais da interlocução afetuosa. Nesse sentido, o limite das cenas, organizadas ao longo do fundo intransponível de uma parede, é recoberto por sinais de infindáveis tentativas de aproximação. Ainda que ajudem a aclarar o cenário, os lembretes amarelinhos desempenham na narrativa a função indiferenciada de indicar tentativas malogradas ou o esforço continuado para não abandonar essas pessoas no seu afastamento do contato humano. Embora o entorno de sofrimento psíquico que atinge sobretudo os pais das crianças com esse diagnóstico seja um componente inevitável de episódios cujo narrador adota a perspectiva do autismo, é a exploração ficcional de uma outra forma de linguagem que interessa ao espetáculo. Do ponto de vista da encenação, esses sintomas não constituem a negação de alguma coisa, mas são, antes, outro modo de estar no mundo. Nesse sentido, não há fracasso ou sucesso e o componente patético do investimento parental tem pouco peso dramático em contraposição ao comportamento da criança. Diante de um fato incomum, possivelmente traumático para outros, a criança autista se detém de uma forma concentrada e atenta e, do mesmo fato, não extrai a mesma impressão. Para o teatro, evidentemente, o propósito de cura tem pouco ou nenhum interesse, enquanto a observação do modo como o autismo estimula a emergência de outras faculdades mentais é um convite à experiência fora das convenções de representação. Desse comportamento, que não se derrama em expansões visíveis de repulsa ou sofrimento psíquico, o espetáculo extrai uma forma de atuação tão interessante quanto a execução inspirada de uma partitura, ou seja, trabalha modulações e detalhes no interior de um programa rígido de repetições. Sob pena de perder a verossimilhança, os atores não podem utilizar, na construção da personagem autista, expressões faciais animadas ou de desempenho físico ágil. Em vez disso, a fala veloz, os cálculos aritméticos e a prodigiosa capacidade de rememoração de repertórios aparentemente desprovidos de carga afetiva são os elementos de composição do narrador que os cinco atores utilizam para caracterizar uma intensa atividade intelectual, cujo fascínio repousa sobre a diferença. No centro do espetáculo não há, portanto, a matéria usual do drama, mas uma forma de linguagem peculiar, cuja sintaxe prevalece sobre a semântica. Há subordinações lógicas entre os termos e sequências dedutivas dignas de um romance policial, mas não há registro da elaboração interior do protagonista. Por meio de contrastes, ou porque opõe resistência aos convites dialógicos, a personagem da criança cerca um objeto ou um acontecimento potencialmente traumático com deliberada tenacidade. Sem poder recorrer ao recurso sedutor da comunicação emocional, a encenação detalha um tipo de conduta essencialmente teatral pelo fato de ser ação contínua, sem que se saiba qual o pensamento que incita ou justifica os atos. Desde a primeira cena a personagem garante o isolamento defensivo, provando que é capaz de articular falas sensatas, mas desprovidas de sentimento. Também o espetáculo, por emulação do objeto que deseja capturar e representar, molda-se sobre a sobriedade da reclusão, respeitando o que se assemelha ao silêncio enquanto se afirma repetidamente como outra linguagem. E, como linguagem, potência e desejo que ainda não encontraram tradução exata nas línguas comuns. Serviço Cachorro Morto. 60 min. 12 anos. Teatro Imprensa (48 lug.). Rua Jaceguai, 400, Bela Vista, telefone 3241-4203. 5.ª e 6.ª, 21h. R$ 10. Até 22/5

Um acaso colocou os cinco intérpretes de Cachorro Morto enfileirados contra o muro de uma sala. Partindo dessa estreita margem para manobras, o espetáculo concebido e dirigido por Leonardo Moreira transforma a faixa destinada à cena em signo do espaço mental, uma vez que os múltiplos narradores da peça manifestam como primeiro sintoma de um psiquismo singular o terror do contato físico com outras pessoas. Entre as variáveis que definem o autismo a constante do isolamento, ou seja, da pessoa que em meio a outras permanece fora do alcance, é mais aterrorizante e, provavelmente, a mais dolorosa para quem lança sobre esse mutismo os gestos e tons habituais da interlocução afetuosa. Nesse sentido, o limite das cenas, organizadas ao longo do fundo intransponível de uma parede, é recoberto por sinais de infindáveis tentativas de aproximação. Ainda que ajudem a aclarar o cenário, os lembretes amarelinhos desempenham na narrativa a função indiferenciada de indicar tentativas malogradas ou o esforço continuado para não abandonar essas pessoas no seu afastamento do contato humano. Embora o entorno de sofrimento psíquico que atinge sobretudo os pais das crianças com esse diagnóstico seja um componente inevitável de episódios cujo narrador adota a perspectiva do autismo, é a exploração ficcional de uma outra forma de linguagem que interessa ao espetáculo. Do ponto de vista da encenação, esses sintomas não constituem a negação de alguma coisa, mas são, antes, outro modo de estar no mundo. Nesse sentido, não há fracasso ou sucesso e o componente patético do investimento parental tem pouco peso dramático em contraposição ao comportamento da criança. Diante de um fato incomum, possivelmente traumático para outros, a criança autista se detém de uma forma concentrada e atenta e, do mesmo fato, não extrai a mesma impressão. Para o teatro, evidentemente, o propósito de cura tem pouco ou nenhum interesse, enquanto a observação do modo como o autismo estimula a emergência de outras faculdades mentais é um convite à experiência fora das convenções de representação. Desse comportamento, que não se derrama em expansões visíveis de repulsa ou sofrimento psíquico, o espetáculo extrai uma forma de atuação tão interessante quanto a execução inspirada de uma partitura, ou seja, trabalha modulações e detalhes no interior de um programa rígido de repetições. Sob pena de perder a verossimilhança, os atores não podem utilizar, na construção da personagem autista, expressões faciais animadas ou de desempenho físico ágil. Em vez disso, a fala veloz, os cálculos aritméticos e a prodigiosa capacidade de rememoração de repertórios aparentemente desprovidos de carga afetiva são os elementos de composição do narrador que os cinco atores utilizam para caracterizar uma intensa atividade intelectual, cujo fascínio repousa sobre a diferença. No centro do espetáculo não há, portanto, a matéria usual do drama, mas uma forma de linguagem peculiar, cuja sintaxe prevalece sobre a semântica. Há subordinações lógicas entre os termos e sequências dedutivas dignas de um romance policial, mas não há registro da elaboração interior do protagonista. Por meio de contrastes, ou porque opõe resistência aos convites dialógicos, a personagem da criança cerca um objeto ou um acontecimento potencialmente traumático com deliberada tenacidade. Sem poder recorrer ao recurso sedutor da comunicação emocional, a encenação detalha um tipo de conduta essencialmente teatral pelo fato de ser ação contínua, sem que se saiba qual o pensamento que incita ou justifica os atos. Desde a primeira cena a personagem garante o isolamento defensivo, provando que é capaz de articular falas sensatas, mas desprovidas de sentimento. Também o espetáculo, por emulação do objeto que deseja capturar e representar, molda-se sobre a sobriedade da reclusão, respeitando o que se assemelha ao silêncio enquanto se afirma repetidamente como outra linguagem. E, como linguagem, potência e desejo que ainda não encontraram tradução exata nas línguas comuns. Serviço Cachorro Morto. 60 min. 12 anos. Teatro Imprensa (48 lug.). Rua Jaceguai, 400, Bela Vista, telefone 3241-4203. 5.ª e 6.ª, 21h. R$ 10. Até 22/5

Um acaso colocou os cinco intérpretes de Cachorro Morto enfileirados contra o muro de uma sala. Partindo dessa estreita margem para manobras, o espetáculo concebido e dirigido por Leonardo Moreira transforma a faixa destinada à cena em signo do espaço mental, uma vez que os múltiplos narradores da peça manifestam como primeiro sintoma de um psiquismo singular o terror do contato físico com outras pessoas. Entre as variáveis que definem o autismo a constante do isolamento, ou seja, da pessoa que em meio a outras permanece fora do alcance, é mais aterrorizante e, provavelmente, a mais dolorosa para quem lança sobre esse mutismo os gestos e tons habituais da interlocução afetuosa. Nesse sentido, o limite das cenas, organizadas ao longo do fundo intransponível de uma parede, é recoberto por sinais de infindáveis tentativas de aproximação. Ainda que ajudem a aclarar o cenário, os lembretes amarelinhos desempenham na narrativa a função indiferenciada de indicar tentativas malogradas ou o esforço continuado para não abandonar essas pessoas no seu afastamento do contato humano. Embora o entorno de sofrimento psíquico que atinge sobretudo os pais das crianças com esse diagnóstico seja um componente inevitável de episódios cujo narrador adota a perspectiva do autismo, é a exploração ficcional de uma outra forma de linguagem que interessa ao espetáculo. Do ponto de vista da encenação, esses sintomas não constituem a negação de alguma coisa, mas são, antes, outro modo de estar no mundo. Nesse sentido, não há fracasso ou sucesso e o componente patético do investimento parental tem pouco peso dramático em contraposição ao comportamento da criança. Diante de um fato incomum, possivelmente traumático para outros, a criança autista se detém de uma forma concentrada e atenta e, do mesmo fato, não extrai a mesma impressão. Para o teatro, evidentemente, o propósito de cura tem pouco ou nenhum interesse, enquanto a observação do modo como o autismo estimula a emergência de outras faculdades mentais é um convite à experiência fora das convenções de representação. Desse comportamento, que não se derrama em expansões visíveis de repulsa ou sofrimento psíquico, o espetáculo extrai uma forma de atuação tão interessante quanto a execução inspirada de uma partitura, ou seja, trabalha modulações e detalhes no interior de um programa rígido de repetições. Sob pena de perder a verossimilhança, os atores não podem utilizar, na construção da personagem autista, expressões faciais animadas ou de desempenho físico ágil. Em vez disso, a fala veloz, os cálculos aritméticos e a prodigiosa capacidade de rememoração de repertórios aparentemente desprovidos de carga afetiva são os elementos de composição do narrador que os cinco atores utilizam para caracterizar uma intensa atividade intelectual, cujo fascínio repousa sobre a diferença. No centro do espetáculo não há, portanto, a matéria usual do drama, mas uma forma de linguagem peculiar, cuja sintaxe prevalece sobre a semântica. Há subordinações lógicas entre os termos e sequências dedutivas dignas de um romance policial, mas não há registro da elaboração interior do protagonista. Por meio de contrastes, ou porque opõe resistência aos convites dialógicos, a personagem da criança cerca um objeto ou um acontecimento potencialmente traumático com deliberada tenacidade. Sem poder recorrer ao recurso sedutor da comunicação emocional, a encenação detalha um tipo de conduta essencialmente teatral pelo fato de ser ação contínua, sem que se saiba qual o pensamento que incita ou justifica os atos. Desde a primeira cena a personagem garante o isolamento defensivo, provando que é capaz de articular falas sensatas, mas desprovidas de sentimento. Também o espetáculo, por emulação do objeto que deseja capturar e representar, molda-se sobre a sobriedade da reclusão, respeitando o que se assemelha ao silêncio enquanto se afirma repetidamente como outra linguagem. E, como linguagem, potência e desejo que ainda não encontraram tradução exata nas línguas comuns. Serviço Cachorro Morto. 60 min. 12 anos. Teatro Imprensa (48 lug.). Rua Jaceguai, 400, Bela Vista, telefone 3241-4203. 5.ª e 6.ª, 21h. R$ 10. Até 22/5

Um acaso colocou os cinco intérpretes de Cachorro Morto enfileirados contra o muro de uma sala. Partindo dessa estreita margem para manobras, o espetáculo concebido e dirigido por Leonardo Moreira transforma a faixa destinada à cena em signo do espaço mental, uma vez que os múltiplos narradores da peça manifestam como primeiro sintoma de um psiquismo singular o terror do contato físico com outras pessoas. Entre as variáveis que definem o autismo a constante do isolamento, ou seja, da pessoa que em meio a outras permanece fora do alcance, é mais aterrorizante e, provavelmente, a mais dolorosa para quem lança sobre esse mutismo os gestos e tons habituais da interlocução afetuosa. Nesse sentido, o limite das cenas, organizadas ao longo do fundo intransponível de uma parede, é recoberto por sinais de infindáveis tentativas de aproximação. Ainda que ajudem a aclarar o cenário, os lembretes amarelinhos desempenham na narrativa a função indiferenciada de indicar tentativas malogradas ou o esforço continuado para não abandonar essas pessoas no seu afastamento do contato humano. Embora o entorno de sofrimento psíquico que atinge sobretudo os pais das crianças com esse diagnóstico seja um componente inevitável de episódios cujo narrador adota a perspectiva do autismo, é a exploração ficcional de uma outra forma de linguagem que interessa ao espetáculo. Do ponto de vista da encenação, esses sintomas não constituem a negação de alguma coisa, mas são, antes, outro modo de estar no mundo. Nesse sentido, não há fracasso ou sucesso e o componente patético do investimento parental tem pouco peso dramático em contraposição ao comportamento da criança. Diante de um fato incomum, possivelmente traumático para outros, a criança autista se detém de uma forma concentrada e atenta e, do mesmo fato, não extrai a mesma impressão. Para o teatro, evidentemente, o propósito de cura tem pouco ou nenhum interesse, enquanto a observação do modo como o autismo estimula a emergência de outras faculdades mentais é um convite à experiência fora das convenções de representação. Desse comportamento, que não se derrama em expansões visíveis de repulsa ou sofrimento psíquico, o espetáculo extrai uma forma de atuação tão interessante quanto a execução inspirada de uma partitura, ou seja, trabalha modulações e detalhes no interior de um programa rígido de repetições. Sob pena de perder a verossimilhança, os atores não podem utilizar, na construção da personagem autista, expressões faciais animadas ou de desempenho físico ágil. Em vez disso, a fala veloz, os cálculos aritméticos e a prodigiosa capacidade de rememoração de repertórios aparentemente desprovidos de carga afetiva são os elementos de composição do narrador que os cinco atores utilizam para caracterizar uma intensa atividade intelectual, cujo fascínio repousa sobre a diferença. No centro do espetáculo não há, portanto, a matéria usual do drama, mas uma forma de linguagem peculiar, cuja sintaxe prevalece sobre a semântica. Há subordinações lógicas entre os termos e sequências dedutivas dignas de um romance policial, mas não há registro da elaboração interior do protagonista. Por meio de contrastes, ou porque opõe resistência aos convites dialógicos, a personagem da criança cerca um objeto ou um acontecimento potencialmente traumático com deliberada tenacidade. Sem poder recorrer ao recurso sedutor da comunicação emocional, a encenação detalha um tipo de conduta essencialmente teatral pelo fato de ser ação contínua, sem que se saiba qual o pensamento que incita ou justifica os atos. Desde a primeira cena a personagem garante o isolamento defensivo, provando que é capaz de articular falas sensatas, mas desprovidas de sentimento. Também o espetáculo, por emulação do objeto que deseja capturar e representar, molda-se sobre a sobriedade da reclusão, respeitando o que se assemelha ao silêncio enquanto se afirma repetidamente como outra linguagem. E, como linguagem, potência e desejo que ainda não encontraram tradução exata nas línguas comuns. Serviço Cachorro Morto. 60 min. 12 anos. Teatro Imprensa (48 lug.). Rua Jaceguai, 400, Bela Vista, telefone 3241-4203. 5.ª e 6.ª, 21h. R$ 10. Até 22/5

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