Até onde ir com a verdade?


Podemos admitir o relativismo, mas é preciso erigir um museu com fatos que permaneçam imunes ao tempo

Por Renato Lessa

Em tempos de lassidão relativista, algumas experiências talvez mereçam abrigo em uma espécie de museu de verdades imunes ao tempo. Deixo a discussão a respeito do que podem significar as peças do acervo dessa improvável instituição. Contento-me com a reles possibilidade de um depósito de eventos, a espera da inevitável incursão dos intérpretes. De minha parte, agarro-me ao lema: sejamos relativistas, mas cuidemos do museu de verdades imunes ao tempo. Sustento ser fato indisputado que, assim como estou a escrever este artigo, em março de 1964 um governo legítimo foi, no Brasil, deposto por um golpe de Estado. Ainda que uma aloprada interpretação revisionista insista em atribuir a vítimas do golpe em questão os motivos centrais para a sua perpetração, tratou-se este, sim, de uma incursão que destruiu para sempre o ambiente político e institucional da Republica de 1946. Os méritos do disparate pertencem exclusivamente aos golpistas, e não a suas vítimas. Seu sucesso na empreitada, por maioria de razão, exige que consideremos sua pretensão de governar o país como ilegítima.Ilegítimos foram, portanto, os governos e os atos que seguiram ao ato inaugural de 31 de março de 1964. Trata-sede uma ilegitimidade com forte componente alucinatório, devotada a extrair de dentro de si mesma crenças e rituais de legitimação. Assim, reacionários empedernidos e saudosos dos idos de março de 1964 chegam às lágrimas ao ressaltar o legalismo (sic) do marechal Castello Branco, o primeiro dos usurpadores. Desde já, adianto que uso o termo "usurpador" como substantivo, a designar agente que obtém, sem direito prévio a isso, algo que não lhe foi atribuído segundo devido procedimento legal. Não falo, pois, da alma ou dos sentimentos do marechal em questão, mas de seus atos e escolhas públicas. Penso mesmo que estou disposto a anistiar o marechal Castello Branco, já que segundo a Lei da Anistia, de 1979, além dos atos praticados pelos que se opuseram à ditadura, "crimes conexos" estariam cobertos. Pois bem, a mãe dos tais crimes conexos foi a intentona de 1964. Então não?Volto ao componente alucinatório. O regime - e chamá-lo assim já constitui um ato indevido de promoção ontológica - buscou em si mesmo um arsenal de bruxarias institucionais para apresentar-se de modo limpo e legal. Nada de semelhante ocorreu com vizinhos do Cone Sul. Por lá, golpistas, quando não cuidavam do extermínio de opositores, golpeavam-se mutuamente. Por aqui, praticou-se uma pantomima legitimista que, pela repetição e ausência de alternativas, deu azo a uma expressão que sempre me intrigou: a da "institucionalização do regime". Na verdade, aí reside o grande sucesso da empreitada: passar de quartelada a regime, e disso a um "modelo político" próprio, pretensamente institucionalizado. Chamemos a isso de "lavagem de regime". Para coroar, uma transição para a democracia feita pelas regras do próprio regime. Como não há notícia de regime que tenha feito regras para que desaparecesse, algo de incomum deve ter ocorrido.Alguns se opuseram à pretensão alucinatória, pelas armas ou pela paciente sedimentação de uma resistência não violenta. Os que caíram nas malhas da repressão conheceram o destino que se apresenta aos humanos quando submetidos de modo absoluto a celerados. Quer um repugnante exercício revisionista desqualificar o tema da tortura e da violação dos direitos humanos pela suposição de que os que combateram o regime de 1964 não seriam democratas legítimos, mas agentes protototalitários. O que hoje está em jogo é saber que lugar ocupará a experiência dos anos da ditadura na longa duração histórica do país. Em uma camada ainda mais profunda, trata-se de saber do lugar reservado ao esquecimento e ao tabu nas narrativas a respeito da experiência histórica da nação. E é aqui que se apresenta o maior sarilho: o modo de inscrever o passado em nossas narrativas depende das erráticas condições do presente. Nada, pois, mais distante dos marcadores inegociáveis contidos nas ideias de verdade e justiça. Na Argentina, uma ditadura derrotada deu passagem a um regime que nada lhe devia. O momento pós-autoritário, naquele país, pôde organizar seu museu de verdades imunes ao tempo, ao mesmo tempo em que fixou sobre o acervo interpretações precisas. Com idas e vindas, militares genocidas foram reconhecidos pelo que foram. Os feitos do capitão Astiz - heroico no assassinato de freiras francesas e covarde na Guerra das Malvinas - estão inscritos indelevelmente na filial portenha do museu ao qual aludi.Por cá, o enquadramento da resposta às questões acima indicadas foi fixado pela Lei de Anistia, de 1979, e por alterações sucessivas. Imaginar sua revogação, para fins penais, é algo que não combina com a natureza do processo que nos livrou da ditadura. Perdedores absolutos estão sujeitos a aplicação implacável e automática da justiça por parte de vencedores indisputados. Nestas plagas, quem se habilita a ocupar, à vera, tais posições? Melhor seria ter a coragem e o caráter de tomar a Lei da Anistia ao pé da letra, e estender a todos os envolvidos seus benefícios, o que inclui os tais crimes conexos. Porém, há uma exigência: é fundamental saber quem está a ser anistiado e por qual razão. A condição de usufruto da anistia exige o reconhecimento público de algo que, em algum momento foi de fato feito, com data, hora e lugar. Devem ser anistiados os envolvidos com a usurpação de 1964, os que mataram e torturam e os que os comandavam. A ênfase na punição para fins estritamente penais dá azo à odiosa cultura do veto e da pretensão da tutela dos comandantes militares sobre a República. Mas, a eventual alopração por parte de um esquerdismo inócuo e reduzido à simbologia ressentida - simpatias chavistas e acenos ao Hamas y compris - é menos grave do que a (in)disposição militar diante da questão. A gravidade reside no fato de que mais do que não admitir que torturadores e seus comandantes venham a ser punidos, os chefes militares recusam a ver seus camaradas antecessores como anistiáveis, pois estão convictos de que não há nada no passado recente das corporações militares que exija autocrítica e arrependimento. Que apareçam os corpos dos desaparecidos, que se abram os arquivos e que se peça desculpas ao País pelo despautério. Que se mostrem, enfim e para o devido perdão, os anistiáveis perpetradores de "crimes conexos". Assim, completamos o ciclo da anistia. Sem punições a montante, mas sem lacunas no acervo do museu de verdades imunes ao tempo. Professor titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Iuperj)e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

Em tempos de lassidão relativista, algumas experiências talvez mereçam abrigo em uma espécie de museu de verdades imunes ao tempo. Deixo a discussão a respeito do que podem significar as peças do acervo dessa improvável instituição. Contento-me com a reles possibilidade de um depósito de eventos, a espera da inevitável incursão dos intérpretes. De minha parte, agarro-me ao lema: sejamos relativistas, mas cuidemos do museu de verdades imunes ao tempo. Sustento ser fato indisputado que, assim como estou a escrever este artigo, em março de 1964 um governo legítimo foi, no Brasil, deposto por um golpe de Estado. Ainda que uma aloprada interpretação revisionista insista em atribuir a vítimas do golpe em questão os motivos centrais para a sua perpetração, tratou-se este, sim, de uma incursão que destruiu para sempre o ambiente político e institucional da Republica de 1946. Os méritos do disparate pertencem exclusivamente aos golpistas, e não a suas vítimas. Seu sucesso na empreitada, por maioria de razão, exige que consideremos sua pretensão de governar o país como ilegítima.Ilegítimos foram, portanto, os governos e os atos que seguiram ao ato inaugural de 31 de março de 1964. Trata-sede uma ilegitimidade com forte componente alucinatório, devotada a extrair de dentro de si mesma crenças e rituais de legitimação. Assim, reacionários empedernidos e saudosos dos idos de março de 1964 chegam às lágrimas ao ressaltar o legalismo (sic) do marechal Castello Branco, o primeiro dos usurpadores. Desde já, adianto que uso o termo "usurpador" como substantivo, a designar agente que obtém, sem direito prévio a isso, algo que não lhe foi atribuído segundo devido procedimento legal. Não falo, pois, da alma ou dos sentimentos do marechal em questão, mas de seus atos e escolhas públicas. Penso mesmo que estou disposto a anistiar o marechal Castello Branco, já que segundo a Lei da Anistia, de 1979, além dos atos praticados pelos que se opuseram à ditadura, "crimes conexos" estariam cobertos. Pois bem, a mãe dos tais crimes conexos foi a intentona de 1964. Então não?Volto ao componente alucinatório. O regime - e chamá-lo assim já constitui um ato indevido de promoção ontológica - buscou em si mesmo um arsenal de bruxarias institucionais para apresentar-se de modo limpo e legal. Nada de semelhante ocorreu com vizinhos do Cone Sul. Por lá, golpistas, quando não cuidavam do extermínio de opositores, golpeavam-se mutuamente. Por aqui, praticou-se uma pantomima legitimista que, pela repetição e ausência de alternativas, deu azo a uma expressão que sempre me intrigou: a da "institucionalização do regime". Na verdade, aí reside o grande sucesso da empreitada: passar de quartelada a regime, e disso a um "modelo político" próprio, pretensamente institucionalizado. Chamemos a isso de "lavagem de regime". Para coroar, uma transição para a democracia feita pelas regras do próprio regime. Como não há notícia de regime que tenha feito regras para que desaparecesse, algo de incomum deve ter ocorrido.Alguns se opuseram à pretensão alucinatória, pelas armas ou pela paciente sedimentação de uma resistência não violenta. Os que caíram nas malhas da repressão conheceram o destino que se apresenta aos humanos quando submetidos de modo absoluto a celerados. Quer um repugnante exercício revisionista desqualificar o tema da tortura e da violação dos direitos humanos pela suposição de que os que combateram o regime de 1964 não seriam democratas legítimos, mas agentes protototalitários. O que hoje está em jogo é saber que lugar ocupará a experiência dos anos da ditadura na longa duração histórica do país. Em uma camada ainda mais profunda, trata-se de saber do lugar reservado ao esquecimento e ao tabu nas narrativas a respeito da experiência histórica da nação. E é aqui que se apresenta o maior sarilho: o modo de inscrever o passado em nossas narrativas depende das erráticas condições do presente. Nada, pois, mais distante dos marcadores inegociáveis contidos nas ideias de verdade e justiça. Na Argentina, uma ditadura derrotada deu passagem a um regime que nada lhe devia. O momento pós-autoritário, naquele país, pôde organizar seu museu de verdades imunes ao tempo, ao mesmo tempo em que fixou sobre o acervo interpretações precisas. Com idas e vindas, militares genocidas foram reconhecidos pelo que foram. Os feitos do capitão Astiz - heroico no assassinato de freiras francesas e covarde na Guerra das Malvinas - estão inscritos indelevelmente na filial portenha do museu ao qual aludi.Por cá, o enquadramento da resposta às questões acima indicadas foi fixado pela Lei de Anistia, de 1979, e por alterações sucessivas. Imaginar sua revogação, para fins penais, é algo que não combina com a natureza do processo que nos livrou da ditadura. Perdedores absolutos estão sujeitos a aplicação implacável e automática da justiça por parte de vencedores indisputados. Nestas plagas, quem se habilita a ocupar, à vera, tais posições? Melhor seria ter a coragem e o caráter de tomar a Lei da Anistia ao pé da letra, e estender a todos os envolvidos seus benefícios, o que inclui os tais crimes conexos. Porém, há uma exigência: é fundamental saber quem está a ser anistiado e por qual razão. A condição de usufruto da anistia exige o reconhecimento público de algo que, em algum momento foi de fato feito, com data, hora e lugar. Devem ser anistiados os envolvidos com a usurpação de 1964, os que mataram e torturam e os que os comandavam. A ênfase na punição para fins estritamente penais dá azo à odiosa cultura do veto e da pretensão da tutela dos comandantes militares sobre a República. Mas, a eventual alopração por parte de um esquerdismo inócuo e reduzido à simbologia ressentida - simpatias chavistas e acenos ao Hamas y compris - é menos grave do que a (in)disposição militar diante da questão. A gravidade reside no fato de que mais do que não admitir que torturadores e seus comandantes venham a ser punidos, os chefes militares recusam a ver seus camaradas antecessores como anistiáveis, pois estão convictos de que não há nada no passado recente das corporações militares que exija autocrítica e arrependimento. Que apareçam os corpos dos desaparecidos, que se abram os arquivos e que se peça desculpas ao País pelo despautério. Que se mostrem, enfim e para o devido perdão, os anistiáveis perpetradores de "crimes conexos". Assim, completamos o ciclo da anistia. Sem punições a montante, mas sem lacunas no acervo do museu de verdades imunes ao tempo. Professor titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Iuperj)e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

Em tempos de lassidão relativista, algumas experiências talvez mereçam abrigo em uma espécie de museu de verdades imunes ao tempo. Deixo a discussão a respeito do que podem significar as peças do acervo dessa improvável instituição. Contento-me com a reles possibilidade de um depósito de eventos, a espera da inevitável incursão dos intérpretes. De minha parte, agarro-me ao lema: sejamos relativistas, mas cuidemos do museu de verdades imunes ao tempo. Sustento ser fato indisputado que, assim como estou a escrever este artigo, em março de 1964 um governo legítimo foi, no Brasil, deposto por um golpe de Estado. Ainda que uma aloprada interpretação revisionista insista em atribuir a vítimas do golpe em questão os motivos centrais para a sua perpetração, tratou-se este, sim, de uma incursão que destruiu para sempre o ambiente político e institucional da Republica de 1946. Os méritos do disparate pertencem exclusivamente aos golpistas, e não a suas vítimas. Seu sucesso na empreitada, por maioria de razão, exige que consideremos sua pretensão de governar o país como ilegítima.Ilegítimos foram, portanto, os governos e os atos que seguiram ao ato inaugural de 31 de março de 1964. Trata-sede uma ilegitimidade com forte componente alucinatório, devotada a extrair de dentro de si mesma crenças e rituais de legitimação. Assim, reacionários empedernidos e saudosos dos idos de março de 1964 chegam às lágrimas ao ressaltar o legalismo (sic) do marechal Castello Branco, o primeiro dos usurpadores. Desde já, adianto que uso o termo "usurpador" como substantivo, a designar agente que obtém, sem direito prévio a isso, algo que não lhe foi atribuído segundo devido procedimento legal. Não falo, pois, da alma ou dos sentimentos do marechal em questão, mas de seus atos e escolhas públicas. Penso mesmo que estou disposto a anistiar o marechal Castello Branco, já que segundo a Lei da Anistia, de 1979, além dos atos praticados pelos que se opuseram à ditadura, "crimes conexos" estariam cobertos. Pois bem, a mãe dos tais crimes conexos foi a intentona de 1964. Então não?Volto ao componente alucinatório. O regime - e chamá-lo assim já constitui um ato indevido de promoção ontológica - buscou em si mesmo um arsenal de bruxarias institucionais para apresentar-se de modo limpo e legal. Nada de semelhante ocorreu com vizinhos do Cone Sul. Por lá, golpistas, quando não cuidavam do extermínio de opositores, golpeavam-se mutuamente. Por aqui, praticou-se uma pantomima legitimista que, pela repetição e ausência de alternativas, deu azo a uma expressão que sempre me intrigou: a da "institucionalização do regime". Na verdade, aí reside o grande sucesso da empreitada: passar de quartelada a regime, e disso a um "modelo político" próprio, pretensamente institucionalizado. Chamemos a isso de "lavagem de regime". Para coroar, uma transição para a democracia feita pelas regras do próprio regime. Como não há notícia de regime que tenha feito regras para que desaparecesse, algo de incomum deve ter ocorrido.Alguns se opuseram à pretensão alucinatória, pelas armas ou pela paciente sedimentação de uma resistência não violenta. Os que caíram nas malhas da repressão conheceram o destino que se apresenta aos humanos quando submetidos de modo absoluto a celerados. Quer um repugnante exercício revisionista desqualificar o tema da tortura e da violação dos direitos humanos pela suposição de que os que combateram o regime de 1964 não seriam democratas legítimos, mas agentes protototalitários. O que hoje está em jogo é saber que lugar ocupará a experiência dos anos da ditadura na longa duração histórica do país. Em uma camada ainda mais profunda, trata-se de saber do lugar reservado ao esquecimento e ao tabu nas narrativas a respeito da experiência histórica da nação. E é aqui que se apresenta o maior sarilho: o modo de inscrever o passado em nossas narrativas depende das erráticas condições do presente. Nada, pois, mais distante dos marcadores inegociáveis contidos nas ideias de verdade e justiça. Na Argentina, uma ditadura derrotada deu passagem a um regime que nada lhe devia. O momento pós-autoritário, naquele país, pôde organizar seu museu de verdades imunes ao tempo, ao mesmo tempo em que fixou sobre o acervo interpretações precisas. Com idas e vindas, militares genocidas foram reconhecidos pelo que foram. Os feitos do capitão Astiz - heroico no assassinato de freiras francesas e covarde na Guerra das Malvinas - estão inscritos indelevelmente na filial portenha do museu ao qual aludi.Por cá, o enquadramento da resposta às questões acima indicadas foi fixado pela Lei de Anistia, de 1979, e por alterações sucessivas. Imaginar sua revogação, para fins penais, é algo que não combina com a natureza do processo que nos livrou da ditadura. Perdedores absolutos estão sujeitos a aplicação implacável e automática da justiça por parte de vencedores indisputados. Nestas plagas, quem se habilita a ocupar, à vera, tais posições? Melhor seria ter a coragem e o caráter de tomar a Lei da Anistia ao pé da letra, e estender a todos os envolvidos seus benefícios, o que inclui os tais crimes conexos. Porém, há uma exigência: é fundamental saber quem está a ser anistiado e por qual razão. A condição de usufruto da anistia exige o reconhecimento público de algo que, em algum momento foi de fato feito, com data, hora e lugar. Devem ser anistiados os envolvidos com a usurpação de 1964, os que mataram e torturam e os que os comandavam. A ênfase na punição para fins estritamente penais dá azo à odiosa cultura do veto e da pretensão da tutela dos comandantes militares sobre a República. Mas, a eventual alopração por parte de um esquerdismo inócuo e reduzido à simbologia ressentida - simpatias chavistas e acenos ao Hamas y compris - é menos grave do que a (in)disposição militar diante da questão. A gravidade reside no fato de que mais do que não admitir que torturadores e seus comandantes venham a ser punidos, os chefes militares recusam a ver seus camaradas antecessores como anistiáveis, pois estão convictos de que não há nada no passado recente das corporações militares que exija autocrítica e arrependimento. Que apareçam os corpos dos desaparecidos, que se abram os arquivos e que se peça desculpas ao País pelo despautério. Que se mostrem, enfim e para o devido perdão, os anistiáveis perpetradores de "crimes conexos". Assim, completamos o ciclo da anistia. Sem punições a montante, mas sem lacunas no acervo do museu de verdades imunes ao tempo. Professor titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Iuperj)e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

Em tempos de lassidão relativista, algumas experiências talvez mereçam abrigo em uma espécie de museu de verdades imunes ao tempo. Deixo a discussão a respeito do que podem significar as peças do acervo dessa improvável instituição. Contento-me com a reles possibilidade de um depósito de eventos, a espera da inevitável incursão dos intérpretes. De minha parte, agarro-me ao lema: sejamos relativistas, mas cuidemos do museu de verdades imunes ao tempo. Sustento ser fato indisputado que, assim como estou a escrever este artigo, em março de 1964 um governo legítimo foi, no Brasil, deposto por um golpe de Estado. Ainda que uma aloprada interpretação revisionista insista em atribuir a vítimas do golpe em questão os motivos centrais para a sua perpetração, tratou-se este, sim, de uma incursão que destruiu para sempre o ambiente político e institucional da Republica de 1946. Os méritos do disparate pertencem exclusivamente aos golpistas, e não a suas vítimas. Seu sucesso na empreitada, por maioria de razão, exige que consideremos sua pretensão de governar o país como ilegítima.Ilegítimos foram, portanto, os governos e os atos que seguiram ao ato inaugural de 31 de março de 1964. Trata-sede uma ilegitimidade com forte componente alucinatório, devotada a extrair de dentro de si mesma crenças e rituais de legitimação. Assim, reacionários empedernidos e saudosos dos idos de março de 1964 chegam às lágrimas ao ressaltar o legalismo (sic) do marechal Castello Branco, o primeiro dos usurpadores. Desde já, adianto que uso o termo "usurpador" como substantivo, a designar agente que obtém, sem direito prévio a isso, algo que não lhe foi atribuído segundo devido procedimento legal. Não falo, pois, da alma ou dos sentimentos do marechal em questão, mas de seus atos e escolhas públicas. Penso mesmo que estou disposto a anistiar o marechal Castello Branco, já que segundo a Lei da Anistia, de 1979, além dos atos praticados pelos que se opuseram à ditadura, "crimes conexos" estariam cobertos. Pois bem, a mãe dos tais crimes conexos foi a intentona de 1964. Então não?Volto ao componente alucinatório. O regime - e chamá-lo assim já constitui um ato indevido de promoção ontológica - buscou em si mesmo um arsenal de bruxarias institucionais para apresentar-se de modo limpo e legal. Nada de semelhante ocorreu com vizinhos do Cone Sul. Por lá, golpistas, quando não cuidavam do extermínio de opositores, golpeavam-se mutuamente. Por aqui, praticou-se uma pantomima legitimista que, pela repetição e ausência de alternativas, deu azo a uma expressão que sempre me intrigou: a da "institucionalização do regime". Na verdade, aí reside o grande sucesso da empreitada: passar de quartelada a regime, e disso a um "modelo político" próprio, pretensamente institucionalizado. Chamemos a isso de "lavagem de regime". Para coroar, uma transição para a democracia feita pelas regras do próprio regime. Como não há notícia de regime que tenha feito regras para que desaparecesse, algo de incomum deve ter ocorrido.Alguns se opuseram à pretensão alucinatória, pelas armas ou pela paciente sedimentação de uma resistência não violenta. Os que caíram nas malhas da repressão conheceram o destino que se apresenta aos humanos quando submetidos de modo absoluto a celerados. Quer um repugnante exercício revisionista desqualificar o tema da tortura e da violação dos direitos humanos pela suposição de que os que combateram o regime de 1964 não seriam democratas legítimos, mas agentes protototalitários. O que hoje está em jogo é saber que lugar ocupará a experiência dos anos da ditadura na longa duração histórica do país. Em uma camada ainda mais profunda, trata-se de saber do lugar reservado ao esquecimento e ao tabu nas narrativas a respeito da experiência histórica da nação. E é aqui que se apresenta o maior sarilho: o modo de inscrever o passado em nossas narrativas depende das erráticas condições do presente. Nada, pois, mais distante dos marcadores inegociáveis contidos nas ideias de verdade e justiça. Na Argentina, uma ditadura derrotada deu passagem a um regime que nada lhe devia. O momento pós-autoritário, naquele país, pôde organizar seu museu de verdades imunes ao tempo, ao mesmo tempo em que fixou sobre o acervo interpretações precisas. Com idas e vindas, militares genocidas foram reconhecidos pelo que foram. Os feitos do capitão Astiz - heroico no assassinato de freiras francesas e covarde na Guerra das Malvinas - estão inscritos indelevelmente na filial portenha do museu ao qual aludi.Por cá, o enquadramento da resposta às questões acima indicadas foi fixado pela Lei de Anistia, de 1979, e por alterações sucessivas. Imaginar sua revogação, para fins penais, é algo que não combina com a natureza do processo que nos livrou da ditadura. Perdedores absolutos estão sujeitos a aplicação implacável e automática da justiça por parte de vencedores indisputados. Nestas plagas, quem se habilita a ocupar, à vera, tais posições? Melhor seria ter a coragem e o caráter de tomar a Lei da Anistia ao pé da letra, e estender a todos os envolvidos seus benefícios, o que inclui os tais crimes conexos. Porém, há uma exigência: é fundamental saber quem está a ser anistiado e por qual razão. A condição de usufruto da anistia exige o reconhecimento público de algo que, em algum momento foi de fato feito, com data, hora e lugar. Devem ser anistiados os envolvidos com a usurpação de 1964, os que mataram e torturam e os que os comandavam. A ênfase na punição para fins estritamente penais dá azo à odiosa cultura do veto e da pretensão da tutela dos comandantes militares sobre a República. Mas, a eventual alopração por parte de um esquerdismo inócuo e reduzido à simbologia ressentida - simpatias chavistas e acenos ao Hamas y compris - é menos grave do que a (in)disposição militar diante da questão. A gravidade reside no fato de que mais do que não admitir que torturadores e seus comandantes venham a ser punidos, os chefes militares recusam a ver seus camaradas antecessores como anistiáveis, pois estão convictos de que não há nada no passado recente das corporações militares que exija autocrítica e arrependimento. Que apareçam os corpos dos desaparecidos, que se abram os arquivos e que se peça desculpas ao País pelo despautério. Que se mostrem, enfim e para o devido perdão, os anistiáveis perpetradores de "crimes conexos". Assim, completamos o ciclo da anistia. Sem punições a montante, mas sem lacunas no acervo do museu de verdades imunes ao tempo. Professor titular de filosofia política do Instituto Universitário de Pesquisas do RJ (Iuperj)e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.