Quando a quadrinista canadense Julie Doucet, 56, ganhou o Grand Prix do Festival de Quadrinhos de Angoulême, em março de 2022, as atenções do mercado voltaram para seu traço. Não que a obra estivesse esquecida, longe disso, ela ganhou o prêmio francês justamente pelo conjunto de seus trabalhos (e é a terceira mulher a levar a maior láurea do quadrinho do país). Era apenas uma questão de reclusão (por opção), falaremos disso adiante.
Algumas semanas depois, em abril, saiu o seu mais novo trabalho, Time Zone J, publicado pela editora canadense Drawn and Quarterly, que tem a autora no catálogo desde 1991. O fato é que Doucet ficou anos afastada dos quadrinhos. “Abandonei os quadrinhos porque fiquei completamente enjoada deles. Eu desenhava o tempo todo e não tinha tempo nem energia para fazer mais nada. Isso me pegou no final. Nunca ganhei dinheiro suficiente com quadrinhos para poder fazer outra coisa.”, declarou Doucet à revista especializada em HQs The Drama, em 2006.
Quase duas décadas depois, a cartunista, que ganhou espaço na cena underground de Nova York dos anos 1990, ganha uma edição brasileira: O Meu Diário de Nova York (Veneta). Um de seus trabalhos mais bem recebidos pela crítica e público, o livro mostra os anos de formação da garota canadense que morou em um subúrbio de Manhattan e precisou lidar com todo tipo de macho tóxico para se afirmar na cena dos quadrinhos.
Exceção à época, com o mercado de hqs dominado por figuras masculinas, Doucet vai cavoucando espaço na mídia alternativa que surge em Nova York pós anos 1980, tendo colaborado com diários da grande imprensa a revistas especializadas, como a Raw, de Art Spiegelmann, autor do quadrinho Maus a Weirdo, do rocambolesco Robert Crumb.
Com a série de quadrinhos Dirty Plotte, em que ela retrata sua vida cotidiana na cidade, Doucet se afirmou feminista por meio de uma linguagem caustica e personagens irônicos que traziam uma série de tabus para a época, como a violência contra a mulher, o machismo e a insegurança nas relações, um capítulo à parte na história da autora.
“Por seu pioneirismo, Julie Doucet se tornou ícone das riot grrrl e feministas da geração X [...]. Apesar de usar o slogan ‘fanzine feminista de mau gosto’ nas primeiras edições de ‘Dirty Plotte’, Doucet demorou para se declarar feminista, insistindo que seu trabalho fosse reconhecido independentemente do gênero”, escreve a pesquisadora Cris Siqueira no prefácio da edição brasileira de Meu Diário de Nova York. Antes do termo entrar nas trends do novo milênio, Docet abriu caminho para novas figuras contarem seus dramas.
Em Meu Diário de Nova York, Doucet não economiza no traço poluído e nas figuras caricaturadas de cabeças enormes. Ela vai ao submundo boêmio dos artistas, com seus apartamentos minúsculos e louças sujas empilhadas. O fastio, tanto da protagonista (seu alter-ego), quanto das personagens que convive, está denunciado na maneira em que se comporta. Doucet retrata uma garota perdida em um mundo de losers, em que a libertação é mudar de apartamento e comprar um absorvente. Parece um drama burguês, mas é algo um tanto universal para as jovens que buscam empoderamento.
Reclusa confessa, Doucet se mantém afastada de computadores e telefones celulares. As entrevistas que têm concedido à imprensa, raras, são feitas por intermédio dos agentes, que enviam um fax com as respostas de Doucet escritas à mão. Epiléptica desde a juventude, a autora aprendeu a manter um distanciamento das armadilhas das redes.
Em meados dos anos 2000, quando parou com os quadrinhos para explorar outras artes (ela escreveu poemas, pintou telas, ergueu esculturas), o fastio só não sucumbiu Doucet pois ela atendeu ao chamado da arte que a projetou. Como ela disse em entrevista recente ao The New York Times: “”Tentei contar [A NOVA HQ] em palavras recortadas, tentei digitá-la em uma máquina de escrever, tentei fazer um filme... Mas nada realmente funcionou.”.