Chega ao Brasil uma nova edição dos poemas de Herberto Helder


Poeta português nascido na Ilha da Madeira tem versos publicados pela Tinta da China

Por Wilson Alves-Bezerra

O que Zenão, Ha Yun, Kierkegaard, Browning, Lord Dunsany e León Bloy têm em comum? – pergunta-se o argentino Jorge Luis Borges, num artigo chamado Kafka e Seus Precursores (1951). Embora todos eles sejam tão distantes no tempo e nas temáticas, trazem em comum, diz Borges, o fato de serem kafkianos: seja nalguma forma, argumento, pensamento ou tom. A ideia perturbadora do texto borgiano é que sem Kafka eles não seriam aproximáveis. Diz Borges: “Cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar do futuro.”

+Obra de poeta russo que não deixou seus versos escritos é reeditada

O poeta português Herberto Helder, autor de 'O Bebedor Nocturno' 
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+Poemas de Manoel de Barros são relançados com ilustrações

Entre nós, brasileiros, Haroldo de Campos, numa saborosa polêmica com Antonio Candido – O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira (1989) – defendeu a noção de tradição constelar da literatura, que fugisse aos determinismos histórico-sociológico, de uma história evolutivo-linear-integrativa. Tal argumento, no livro, recaía sobre a ausência de Gregório de Matos na reflexão de Candido mas, na obra poética de Campos, servia para explicar a introdução no Brasil e em sua obra de poetas diversos como Mallarmé, James Joyce, E.E. Cummings e Ezra Pound – pilares de seu projeto concretista.

O que está em jogo no que se diz acima é o modo como cada poeta lida com a tradição e com as leituras que o tornam o poeta que é. Pois é a importância dos precursores o que vem nos mostrar a celebrável edição brasileira que a Tinta da China acaba de publicar de O Bebedor Nocturno (1968), do poeta da Ilha da Madeira, Herberto Helder (1930-2015). Nela, o leitor vai descobrir o quanto podem soar a Herberto Helder antigos poemas egípcios, salmos bíblicos, o Cântico dos Cânticos, poemas astecas, japoneses e um longo etcétera. Para que tal processo de identificação ocorra, estão as afinidades do próprio Helder – aqueles poemas nos quais ele descobriu sua própria voz mas, ao mesmo tempo, também um poderoso exercício de estilo, que é sua prática tradutória de fazê-los soar tal como desejaria, como se fossem seus. Um corpo a corpo entre o que é próprio e o que se herda da tradição. 

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Herberto Helder, ao traduzir, aproxima os originais a seu universo poético. Assim, o Salmo 42, que na tradução brasileira de Ivo Storniolo, na Bíblia de Jerusalém era “Minha alma tem sede de Deus / do deus vivo // (...) Grita um abismo a outro abismo / com o fragor das tuas cascatas” torna-se pela pluma de Helder: “Quando verei aquele de quem tenho tanta sede? // O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas turbilhonantes / caem sempre sobre mim, no fragor das cascatas”. Na versão de Helder, Deus não é nomeado, e instaura-se a sede, em meio ao imenso universo líquido e abissal. Do salmo bíblico fez-se uma imagem poética tipicamente helderiana por obra e graça de sua tradução interessada.

Noutros casos, como no poema A Lua, do árabe Ben Burd El Nieto, parecemos estar diante de um poema a quem o madeirense parece indicar como parte de seu cânone, como o erotismo noturno e lunar que aqui lemos: “A lua é um espelho empanado pelo hálito das raparigas // E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta com o papel branco”. Outra vez se nota como a exuberância da imagem do poema aproxima-se ao universo lírico do poeta-tradutor.

Maria Lúcia Dal Farra, pesquisadora de Helder, já observou em seu A Alquimia da Linguagem (1986), como a construção da proposta do Bebedor Nocturno estava já encenada, de outra forma, no conto Poeta Obscuro, de um livro anterior: Os Passos em Volta (1963). No conto, o protagonista, diante da frase “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”, passa a perguntar-se se foi ele mesmo ou outro quem cunhou a sentença. Sem poder decidir-se, escreve-a na parede do quarto. Numa noite de desvario, imagina também o início de um poema asteca – “Ó bebedor nocturno, porque não envergas as vestes cerimoniais?” e observa a gravura de um peixe japonês. Do frenesi das imagens, o poeta obscuro põe-se a pensar em seu orgulho, em sua inocência de seguir sendo obscuro. Aquela cena no quarto como que encena o modo de estar do poeta ante a tradição.

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Assim é que, forçando os limites da poesia alheia e aproximando-a dos próprios anseios líricos, o jovem poeta que então é Helder vai também forjando os materiais para sua escrita futura. Não cabem, é certo, discussões em torno à fidelidade, pois inclusive aqui não há originais em jogo: Helder não conhecia as línguas de que traduzia – árabe, náuatle, japonês, grego. Tal como o poeta que seu personagem queria ser, eram-lhe também essas línguas obscuras. Sem cerimônia ou reverência, apropriou-se delas a partir já de traduções.

O resultado é paradoxal: a poesia de tradições ancestrais, com temas atávicos – a natureza, o amor, a morte, o sexo – com a dicção do poeta madeirense que se queria obscuro. Entre a noturna embriaguez da poesia autoral de Helder e a suposta clareza da poesia ancestral, fica o leitor atônito, a meio caminho, gozosamente deslumbrado. *Wilson Alves-Bezerra é professor de pós-graduação em estudos de literatura da UFSC 

O que Zenão, Ha Yun, Kierkegaard, Browning, Lord Dunsany e León Bloy têm em comum? – pergunta-se o argentino Jorge Luis Borges, num artigo chamado Kafka e Seus Precursores (1951). Embora todos eles sejam tão distantes no tempo e nas temáticas, trazem em comum, diz Borges, o fato de serem kafkianos: seja nalguma forma, argumento, pensamento ou tom. A ideia perturbadora do texto borgiano é que sem Kafka eles não seriam aproximáveis. Diz Borges: “Cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar do futuro.”

+Obra de poeta russo que não deixou seus versos escritos é reeditada

O poeta português Herberto Helder, autor de 'O Bebedor Nocturno' 

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Entre nós, brasileiros, Haroldo de Campos, numa saborosa polêmica com Antonio Candido – O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira (1989) – defendeu a noção de tradição constelar da literatura, que fugisse aos determinismos histórico-sociológico, de uma história evolutivo-linear-integrativa. Tal argumento, no livro, recaía sobre a ausência de Gregório de Matos na reflexão de Candido mas, na obra poética de Campos, servia para explicar a introdução no Brasil e em sua obra de poetas diversos como Mallarmé, James Joyce, E.E. Cummings e Ezra Pound – pilares de seu projeto concretista.

O que está em jogo no que se diz acima é o modo como cada poeta lida com a tradição e com as leituras que o tornam o poeta que é. Pois é a importância dos precursores o que vem nos mostrar a celebrável edição brasileira que a Tinta da China acaba de publicar de O Bebedor Nocturno (1968), do poeta da Ilha da Madeira, Herberto Helder (1930-2015). Nela, o leitor vai descobrir o quanto podem soar a Herberto Helder antigos poemas egípcios, salmos bíblicos, o Cântico dos Cânticos, poemas astecas, japoneses e um longo etcétera. Para que tal processo de identificação ocorra, estão as afinidades do próprio Helder – aqueles poemas nos quais ele descobriu sua própria voz mas, ao mesmo tempo, também um poderoso exercício de estilo, que é sua prática tradutória de fazê-los soar tal como desejaria, como se fossem seus. Um corpo a corpo entre o que é próprio e o que se herda da tradição. 

Herberto Helder, ao traduzir, aproxima os originais a seu universo poético. Assim, o Salmo 42, que na tradução brasileira de Ivo Storniolo, na Bíblia de Jerusalém era “Minha alma tem sede de Deus / do deus vivo // (...) Grita um abismo a outro abismo / com o fragor das tuas cascatas” torna-se pela pluma de Helder: “Quando verei aquele de quem tenho tanta sede? // O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas turbilhonantes / caem sempre sobre mim, no fragor das cascatas”. Na versão de Helder, Deus não é nomeado, e instaura-se a sede, em meio ao imenso universo líquido e abissal. Do salmo bíblico fez-se uma imagem poética tipicamente helderiana por obra e graça de sua tradução interessada.

Noutros casos, como no poema A Lua, do árabe Ben Burd El Nieto, parecemos estar diante de um poema a quem o madeirense parece indicar como parte de seu cânone, como o erotismo noturno e lunar que aqui lemos: “A lua é um espelho empanado pelo hálito das raparigas // E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta com o papel branco”. Outra vez se nota como a exuberância da imagem do poema aproxima-se ao universo lírico do poeta-tradutor.

Maria Lúcia Dal Farra, pesquisadora de Helder, já observou em seu A Alquimia da Linguagem (1986), como a construção da proposta do Bebedor Nocturno estava já encenada, de outra forma, no conto Poeta Obscuro, de um livro anterior: Os Passos em Volta (1963). No conto, o protagonista, diante da frase “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”, passa a perguntar-se se foi ele mesmo ou outro quem cunhou a sentença. Sem poder decidir-se, escreve-a na parede do quarto. Numa noite de desvario, imagina também o início de um poema asteca – “Ó bebedor nocturno, porque não envergas as vestes cerimoniais?” e observa a gravura de um peixe japonês. Do frenesi das imagens, o poeta obscuro põe-se a pensar em seu orgulho, em sua inocência de seguir sendo obscuro. Aquela cena no quarto como que encena o modo de estar do poeta ante a tradição.

Assim é que, forçando os limites da poesia alheia e aproximando-a dos próprios anseios líricos, o jovem poeta que então é Helder vai também forjando os materiais para sua escrita futura. Não cabem, é certo, discussões em torno à fidelidade, pois inclusive aqui não há originais em jogo: Helder não conhecia as línguas de que traduzia – árabe, náuatle, japonês, grego. Tal como o poeta que seu personagem queria ser, eram-lhe também essas línguas obscuras. Sem cerimônia ou reverência, apropriou-se delas a partir já de traduções.

O resultado é paradoxal: a poesia de tradições ancestrais, com temas atávicos – a natureza, o amor, a morte, o sexo – com a dicção do poeta madeirense que se queria obscuro. Entre a noturna embriaguez da poesia autoral de Helder e a suposta clareza da poesia ancestral, fica o leitor atônito, a meio caminho, gozosamente deslumbrado. *Wilson Alves-Bezerra é professor de pós-graduação em estudos de literatura da UFSC 

O que Zenão, Ha Yun, Kierkegaard, Browning, Lord Dunsany e León Bloy têm em comum? – pergunta-se o argentino Jorge Luis Borges, num artigo chamado Kafka e Seus Precursores (1951). Embora todos eles sejam tão distantes no tempo e nas temáticas, trazem em comum, diz Borges, o fato de serem kafkianos: seja nalguma forma, argumento, pensamento ou tom. A ideia perturbadora do texto borgiano é que sem Kafka eles não seriam aproximáveis. Diz Borges: “Cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar do futuro.”

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O poeta português Herberto Helder, autor de 'O Bebedor Nocturno' 

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Entre nós, brasileiros, Haroldo de Campos, numa saborosa polêmica com Antonio Candido – O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira (1989) – defendeu a noção de tradição constelar da literatura, que fugisse aos determinismos histórico-sociológico, de uma história evolutivo-linear-integrativa. Tal argumento, no livro, recaía sobre a ausência de Gregório de Matos na reflexão de Candido mas, na obra poética de Campos, servia para explicar a introdução no Brasil e em sua obra de poetas diversos como Mallarmé, James Joyce, E.E. Cummings e Ezra Pound – pilares de seu projeto concretista.

O que está em jogo no que se diz acima é o modo como cada poeta lida com a tradição e com as leituras que o tornam o poeta que é. Pois é a importância dos precursores o que vem nos mostrar a celebrável edição brasileira que a Tinta da China acaba de publicar de O Bebedor Nocturno (1968), do poeta da Ilha da Madeira, Herberto Helder (1930-2015). Nela, o leitor vai descobrir o quanto podem soar a Herberto Helder antigos poemas egípcios, salmos bíblicos, o Cântico dos Cânticos, poemas astecas, japoneses e um longo etcétera. Para que tal processo de identificação ocorra, estão as afinidades do próprio Helder – aqueles poemas nos quais ele descobriu sua própria voz mas, ao mesmo tempo, também um poderoso exercício de estilo, que é sua prática tradutória de fazê-los soar tal como desejaria, como se fossem seus. Um corpo a corpo entre o que é próprio e o que se herda da tradição. 

Herberto Helder, ao traduzir, aproxima os originais a seu universo poético. Assim, o Salmo 42, que na tradução brasileira de Ivo Storniolo, na Bíblia de Jerusalém era “Minha alma tem sede de Deus / do deus vivo // (...) Grita um abismo a outro abismo / com o fragor das tuas cascatas” torna-se pela pluma de Helder: “Quando verei aquele de quem tenho tanta sede? // O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas turbilhonantes / caem sempre sobre mim, no fragor das cascatas”. Na versão de Helder, Deus não é nomeado, e instaura-se a sede, em meio ao imenso universo líquido e abissal. Do salmo bíblico fez-se uma imagem poética tipicamente helderiana por obra e graça de sua tradução interessada.

Noutros casos, como no poema A Lua, do árabe Ben Burd El Nieto, parecemos estar diante de um poema a quem o madeirense parece indicar como parte de seu cânone, como o erotismo noturno e lunar que aqui lemos: “A lua é um espelho empanado pelo hálito das raparigas // E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta com o papel branco”. Outra vez se nota como a exuberância da imagem do poema aproxima-se ao universo lírico do poeta-tradutor.

Maria Lúcia Dal Farra, pesquisadora de Helder, já observou em seu A Alquimia da Linguagem (1986), como a construção da proposta do Bebedor Nocturno estava já encenada, de outra forma, no conto Poeta Obscuro, de um livro anterior: Os Passos em Volta (1963). No conto, o protagonista, diante da frase “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”, passa a perguntar-se se foi ele mesmo ou outro quem cunhou a sentença. Sem poder decidir-se, escreve-a na parede do quarto. Numa noite de desvario, imagina também o início de um poema asteca – “Ó bebedor nocturno, porque não envergas as vestes cerimoniais?” e observa a gravura de um peixe japonês. Do frenesi das imagens, o poeta obscuro põe-se a pensar em seu orgulho, em sua inocência de seguir sendo obscuro. Aquela cena no quarto como que encena o modo de estar do poeta ante a tradição.

Assim é que, forçando os limites da poesia alheia e aproximando-a dos próprios anseios líricos, o jovem poeta que então é Helder vai também forjando os materiais para sua escrita futura. Não cabem, é certo, discussões em torno à fidelidade, pois inclusive aqui não há originais em jogo: Helder não conhecia as línguas de que traduzia – árabe, náuatle, japonês, grego. Tal como o poeta que seu personagem queria ser, eram-lhe também essas línguas obscuras. Sem cerimônia ou reverência, apropriou-se delas a partir já de traduções.

O resultado é paradoxal: a poesia de tradições ancestrais, com temas atávicos – a natureza, o amor, a morte, o sexo – com a dicção do poeta madeirense que se queria obscuro. Entre a noturna embriaguez da poesia autoral de Helder e a suposta clareza da poesia ancestral, fica o leitor atônito, a meio caminho, gozosamente deslumbrado. *Wilson Alves-Bezerra é professor de pós-graduação em estudos de literatura da UFSC 

O que Zenão, Ha Yun, Kierkegaard, Browning, Lord Dunsany e León Bloy têm em comum? – pergunta-se o argentino Jorge Luis Borges, num artigo chamado Kafka e Seus Precursores (1951). Embora todos eles sejam tão distantes no tempo e nas temáticas, trazem em comum, diz Borges, o fato de serem kafkianos: seja nalguma forma, argumento, pensamento ou tom. A ideia perturbadora do texto borgiano é que sem Kafka eles não seriam aproximáveis. Diz Borges: “Cada escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado, como há de modificar do futuro.”

+Obra de poeta russo que não deixou seus versos escritos é reeditada

O poeta português Herberto Helder, autor de 'O Bebedor Nocturno' 

+Poemas de Manoel de Barros são relançados com ilustrações

Entre nós, brasileiros, Haroldo de Campos, numa saborosa polêmica com Antonio Candido – O Sequestro do Barroco na Formação da Literatura Brasileira (1989) – defendeu a noção de tradição constelar da literatura, que fugisse aos determinismos histórico-sociológico, de uma história evolutivo-linear-integrativa. Tal argumento, no livro, recaía sobre a ausência de Gregório de Matos na reflexão de Candido mas, na obra poética de Campos, servia para explicar a introdução no Brasil e em sua obra de poetas diversos como Mallarmé, James Joyce, E.E. Cummings e Ezra Pound – pilares de seu projeto concretista.

O que está em jogo no que se diz acima é o modo como cada poeta lida com a tradição e com as leituras que o tornam o poeta que é. Pois é a importância dos precursores o que vem nos mostrar a celebrável edição brasileira que a Tinta da China acaba de publicar de O Bebedor Nocturno (1968), do poeta da Ilha da Madeira, Herberto Helder (1930-2015). Nela, o leitor vai descobrir o quanto podem soar a Herberto Helder antigos poemas egípcios, salmos bíblicos, o Cântico dos Cânticos, poemas astecas, japoneses e um longo etcétera. Para que tal processo de identificação ocorra, estão as afinidades do próprio Helder – aqueles poemas nos quais ele descobriu sua própria voz mas, ao mesmo tempo, também um poderoso exercício de estilo, que é sua prática tradutória de fazê-los soar tal como desejaria, como se fossem seus. Um corpo a corpo entre o que é próprio e o que se herda da tradição. 

Herberto Helder, ao traduzir, aproxima os originais a seu universo poético. Assim, o Salmo 42, que na tradução brasileira de Ivo Storniolo, na Bíblia de Jerusalém era “Minha alma tem sede de Deus / do deus vivo // (...) Grita um abismo a outro abismo / com o fragor das tuas cascatas” torna-se pela pluma de Helder: “Quando verei aquele de quem tenho tanta sede? // O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas turbilhonantes / caem sempre sobre mim, no fragor das cascatas”. Na versão de Helder, Deus não é nomeado, e instaura-se a sede, em meio ao imenso universo líquido e abissal. Do salmo bíblico fez-se uma imagem poética tipicamente helderiana por obra e graça de sua tradução interessada.

Noutros casos, como no poema A Lua, do árabe Ben Burd El Nieto, parecemos estar diante de um poema a quem o madeirense parece indicar como parte de seu cânone, como o erotismo noturno e lunar que aqui lemos: “A lua é um espelho empanado pelo hálito das raparigas // E a noite veste-se com o seu brilho como a negra tinta com o papel branco”. Outra vez se nota como a exuberância da imagem do poema aproxima-se ao universo lírico do poeta-tradutor.

Maria Lúcia Dal Farra, pesquisadora de Helder, já observou em seu A Alquimia da Linguagem (1986), como a construção da proposta do Bebedor Nocturno estava já encenada, de outra forma, no conto Poeta Obscuro, de um livro anterior: Os Passos em Volta (1963). No conto, o protagonista, diante da frase “Meu Deus, faz com que eu seja sempre um poeta obscuro”, passa a perguntar-se se foi ele mesmo ou outro quem cunhou a sentença. Sem poder decidir-se, escreve-a na parede do quarto. Numa noite de desvario, imagina também o início de um poema asteca – “Ó bebedor nocturno, porque não envergas as vestes cerimoniais?” e observa a gravura de um peixe japonês. Do frenesi das imagens, o poeta obscuro põe-se a pensar em seu orgulho, em sua inocência de seguir sendo obscuro. Aquela cena no quarto como que encena o modo de estar do poeta ante a tradição.

Assim é que, forçando os limites da poesia alheia e aproximando-a dos próprios anseios líricos, o jovem poeta que então é Helder vai também forjando os materiais para sua escrita futura. Não cabem, é certo, discussões em torno à fidelidade, pois inclusive aqui não há originais em jogo: Helder não conhecia as línguas de que traduzia – árabe, náuatle, japonês, grego. Tal como o poeta que seu personagem queria ser, eram-lhe também essas línguas obscuras. Sem cerimônia ou reverência, apropriou-se delas a partir já de traduções.

O resultado é paradoxal: a poesia de tradições ancestrais, com temas atávicos – a natureza, o amor, a morte, o sexo – com a dicção do poeta madeirense que se queria obscuro. Entre a noturna embriaguez da poesia autoral de Helder e a suposta clareza da poesia ancestral, fica o leitor atônito, a meio caminho, gozosamente deslumbrado. *Wilson Alves-Bezerra é professor de pós-graduação em estudos de literatura da UFSC 

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