Em 1880, Guy de Maupassant publicou Bola de Sebo, novela classificada por Gustave Flaubert de “verdadeira obra-prima”. Tal julgamento do perfeccionista autor de Madame Bovary deve ser levado em consideração. A história é narrada com todo rigor. E o estilo realista presta-se com perfeição para o cinema, arte e indústria que não existiam no tempo do seu autor. Só viria a ser “inventado” 15 anos depois, na própria França, pelos irmãos Lumière.
Uma das primeiras adaptações da obra foi feita pelo cinema soviético. Ainda atuando na fase silenciosa, Mikhail Romm levou à tela a incrível história da personagem-título. Ela, na verdade, se chama Élizabeth Rousset, “Bola de Sebo” por ser meio gordinha. Está entre os dez passageiros de uma diligência que foge de Rouen rumo ao Havre, pois a cidade havia sido tomada pelos soldados inimigos. Estamos na guerra de 1970, que opôs França e Prússia. A ideia inicial da história é fazer da diligência um microcosmo da sociedade francesa. Neste, há representantes de várias camadas da sociedade. Nobres, burgueses e um comerciante de vinhos, todos acompanhados de suas esposas, e também Bola de Sebo, prostituta sobre quem se abatem os preconceitos das personalidades “respeitáveis”.
O que não os impede de partilhar as provisões de Bola de Sebo durante a viagem, pois foi ela a única a levar alimentos em sua cesta. Pode ser proletária e de “má vida”, mas a comida é bem-vinda entre os burgueses famintos. Na primeira parada, estes também não hesitarão em exigir de Bola de Sebo outro sacrifício em nome do bem comum. Atendido o pedido, a moça roliça será relegada ao canto de onde nunca havia saído, aquele reservado à escória que não merece conviver com os bem-nascidos e endinheirados.
Um tema como este não poderia passar despercebido ao cinema social soviético. Romm constrói sua versão como de praxe na era do chamado cinema mudo. Não podendo se apoiar em diálogos, é na expressividade das imagens que se concentram suas atenções. O filme foi realizado em 1934 e, em 1955, ganhou versão sonora supervisionada por Romm. Acrescenta uma narração off para acompanhar a ação vista na tela. Não prejudica a obra, mas também nada lhe acrescenta.
O poder da prosa social e crítica de Maupassant é tal que Bola de Sebo inspirou pelo menos umas dez adaptações cinematográficas. A de Romm pertence ao grupo das pioneiras, mas há outras, clássicas, como No Tempo das Diligências (1939), de John Ford, e Casanova e a Revolução (1982), de Ettore Scola. A ideia de base é sempre a mesma. A carruagem é um mundo em miniatura, habitado por seres diferentes, obrigados a um convívio que não existe no tempo normal de vida e ao qual não estão habituados. Dessa convivência forçada, sai o retrato expressivo da sociedade de classes, com suas grandezas e abjeções, gestos de generosidade e deformações de caráter.
Em grandes traços, essa pintura pouco lisonjeira destaca a hipocrisia dos homens, que se aproveitam dos que de fato desprezam e não hesitam em lhes voltar as costas quando tudo retorna ao normal. Brecht se inspirou na personagem de Bola de Sebo para a criação de uma Jenny de temperamento oposto em sua Ópera dos Três Vinténs, enquanto no brasileiro A Ópera do Malandro, Chico Buarque e Ruy Guerra recriaram na personagem de Geni o modelo original de Maupassant. A hipocrisia é sempre um tema forte, mesmo quando nos habituamos a ela. Basta olhar em volta.
BOLA DE SEBO
Diretor: Mikhail Romm
Distribuição: CPC-Umes Filmes
Gênero: Drama, 1934, 90 min. P&B Versão sonorizada com narrativa em off
Preço: R$ 26