Cineasta Ugo Giorgetti é homenageado com retrospectiva


Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca, que completa 20 anos em 1.º de agosto, promove uma retrospectiva dedicada ao autor com 12 títulos

Por Luiz Carlos Merten

Ugo Giorgetti comemorou, recentemente, 79 anos. Em maio do ano que vem, no dia 28, serão 80. A data redonda ganha a homenagem antecipada no Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca, que completa 20 anos em 1.º de agosto e promove uma retrospectiva dedicada ao autor, com 12 títulos, a partir desta quinta, 29 - a partir do dia 6 (e até 5 de outubro), a mostra estará disponível gratuitamente na plataforma de streaming Itaú Cultural Play. “Sou um velho cercado de mortos”, Ugo reflete, sem mágoa. Os amigos foram sempre importantes - Antonio De Francheschi, Roberto Piva. Ele se lembra quando, jovem, ia aos cinemas para ver os filmes do neorrealismo e da nascente nouvelle vague. A italianidade estava no DNA, mas a nova onda, por volta de 1960, era o cinema dos jovens. “Vimos Os Primos, do (Claude) Chabrol, e comentávamos como aquilo era novo.” 

O cineasta Ugo Giorgetti ganha retrospectiva Foto: Werther Santana/Estadão

Naquela época, não pensava que seria cineasta, nem publicitário. Filho de pai engenheiro e mãe professora, vivia a juventude despreocupada de um garoto da classe média paulistana. Mas consciência não lhe faltava. Começou a achar que já era tempo de ganhar o próprio sustento. A publicidade veio assim. “Ganhava muito bem”, lembra. Foi parar na Alcântara Machado, uma grande agência. Fez todas aquelas (novas) amizades - atores, técnicos. Tornou-se cineasta. Produziu seus clássicos. Festa, de 1989, Sábado, 1994, Boleiros 1 e 2, de 1998 e 2006. 

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Colocou o Brasil numa festa, os bacanas e o pessoal da cozinha, divididos pela desigualdade. Uma equipe de publicidade invade um prédio do centro velho para gravar um comercial e o elevador quebrado cria a maior confusão com os moradores. Amigos reúnem-se em rodas de bar para discutir futebol. No inédito Dora e Gabriel, que terá pré-estreia durante a programação, o casal assaltado vai parar no porta-malas do carro. A vida aqui fora, eles lá dentro. Todos esses filmes refletem as transformações na cidade - São Paulo - em que Ugo nasceu, cresceu, fez-se homem. “Não consigo dizer que isso foi intencional, refletir sobre a cidade, mas ela faz parte da minha vida e da vida das personagens.” 

O cinema, segundo Giorgetti. Outro paulistano ilustre do cinema, Roberto Santos, bebeu na fonte social do neorrealismo em O Grande Momento, no final dos anos 1950. Giorgetti fez outro percurso. O humor de Mario Monicelli, seu favorito, mas com um viés particular. Os grandes filmes de Giorgetti são minimalistas, enxutos até o limite. O diálogo lembra o dos grandes escritores norte-americanos, Ernest Hemingway, como os mestres das narrativas policiais. Todo esse melting point fez parte da sua geração e forjou o autor singular que ele é. Giorgetti já tem estrada suficiente, como realizador de documentários e ficções, para saber como é misterioso o processo de criação. 

“Muitas vezes o significado profundo que me levou a fazer determinados filmes só apareceu mais tarde.” O tempo no processo criativo. “É muito importante, tenho a impressão de que o tempo dos personagens, da própria sociedade, atravessa meu cinema. Já ouvi que o tempo confere uma dimensão filosófica ao meu trabalho.” Pode ser. Afinal, lá atrás, ele frequentou a faculdade de filosofia por dois anos. “Essas coisas marcam a gente, me marcaram.” Palmeirense, o futebol sempre fez parte da sua vida e inspirou um de seus melhores filmes, Boleiros, com direito até a sequência. Não apenas. A par das ficções, Giorgetti também fez Pelé Eterno e Um Craque Chamado Divino

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Em Boleiros - o 1 -, todos aqueles amigos que se reúnem para falar de futebol são desdobramentos do próprio diretor e roteirista. O que dizem as pessoas, como falam. “Como descendente de imigrantes acho que a minha obra termina refletindo esses linguajares. A São Paulo do começo dos anos 1950, da época de Eder Jofre, que documentei em Quebrando a Cara, de 1986, não é a mesma de O Príncipe, de 2002.” Nesse quadro emerge um personagem como Paulinho Majestade, de Boleiros - Era Uma Vez o Futebol - o verdadeiro príncipe, no cinema de Giorgetti, é ele. 

“No Majestade, eu projetei a história de um grande craque santista, Joel Camargo. Ele chegou a ser campeão do mundo em 1970, mas na reserva. Era um grande jogador que teve muitos reveses na vida.” O que os franceses chamam de ‘mauvaise étoile’. A má estrela. Majestade é precioso porque permite fazer uma distinção importante no cinema de Giorgetti, entre tipo e personagem. O tipo é pitoresco, o personagem é trágico. Grande Paulinho, grande Joel Camargo. O cinema - e o futebol - agradecem.

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Beirando os 80, Giorgetti encara sem tristeza a própria finitude. “Ainda posso fazer mais alguns filmes, e quero fazer, mas o grosso da minha obra já está concluído.”  Sentimentalismo? “Se há uma coisa à qual sou avesso é isso.” Melancolia? É onde entra a influência dos mestres da comédia italiana. “Se existe, disfarço bem”, ele conta. O repórter polemiza um pouco. Giorgetti ama Monicelli, O Incrível Exército de Brancaleone, Parente É Serpente. Voltam as histórias de imigrantes. Paul Singer, o grande economista, fundador do PT, que Giorgetti documentou em Uma Utopia Militante, exibido no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade em abril deste ano. 

“O que mais me atraiu nesse trabalho foi a possibilidade de mostrar o homem de ação.” Singer chegou criança ao Brasil, integrando uma família de judeus austríacos que fugia do nazismo. Terminou fundamentando o conceito da economia solidária. Talvez a melhor definição para o artista homenageado nos 20 anos do Espaço Itaú do Frei Caneca seja a seguinte - com a limpidez de seu estilo, Giorgetti aprimorou, ao longo dos anos, a arte de dizer as coisas complicadas de forma simples e direta.

As salas do shopping Itaú Frei Caneca completam 20 anos e a comemoração inclui reprises como a de ‘Cidade de Deus'

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Quando começou a pensar numa programação especial para comemorar os 20 anos do Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca, Adhemar Oliveira não contava que a efeméride viesse no meio da crise sanitária que colocou o Brasil na vanguarda do número de mortos em todo o mundo. A epidemia do coronavírus paralisou o mercado exibidor de cinema no ano passado. Os filmes foram retomados, principalmente no streaming. Nas salas, a frequência continua caída, mas, com os 80% da população de São Paulo vacinada, a expectativa é de que esses números comecem a melhorar. Adhemar aposta na programação de aniversário para atrair mais público. 

Embora o Shopping Frei Caneca tenha sido inaugurado em maio de 2001, os cinemas demoraram mais um pouco para começar a funcionar - em 3 de agosto daquele ano. O conceito era novo - “A ideia, desde o início, considerando-se que são salas de shopping, era mesclar o cinema de arte que estava no nosso DNA - meu, do Leon (Cakoff) - com os blockbusters”, lembra Adhemar. “Houve um estranhamento inicial, por parte do público. Os cinéfilos de carteirinha achavam que a gente estava desvirtuando o conceito da arte, mas, com o tempo, as pessoas passaram a entender a proposta. Os filmes de grandes estúdios podem conviver pacificamente com a produção brasileira e a independente de vários lugares do mundo. Formamos nosso público fiel”, ele avalia. 

A pandemia afastou a massa desses espectadores, mas agora as pesquisas apontam para cerca de 20% do público de 2019, já que o de 2020 foi nulo. Rememorando - com nove salas, bonbonnière, cafeteria e aquela área de convivência que tem abrigado exposições de fotos, o Frei Caneca recebeu, ao longo desses 20 anos, mais de 8 milhões de espectadores que assistiram a cerca de dez mil filmes. O conjunto de salas abrigou mostras e eventos e promoveu ações de formação e ampliação de público, como o Clube do Professor, o Clube Jovem, Clube da Terceira Idade e Sessão Popular. Foram criados complexos semelhantes em diferentes regiões do Brasil, abrigando a mesma diversidade de programas e de ações que tem facilitado o livre acesso ou o desconto no valor dos ingressos. 

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Espaço Itaú de Cinema Frei Canecacompleta 20 anos Foto: Aline Arruda

Para comemorar a data redonda, o Itaú Frei Caneca resgata a obra de um autor importante, que também festeja seus 80 anos em 2022. “Ao longo desses 20 anos, o Espaço estabeleceu uma parceria com Ugo (Giorgetti). Todos os filmes dele passaram aqui com a gente. Vamos ter uma semana com a reapresentação de 11 filmes e a pré-estreia de Dora e Gabriel. No total, serão 12 títulos. O Ugo é esse cara finíssimo. Diante de tudo o que acontece no Brasil e no mundo, creio que será muito bacana resgatar essa espécie de gentileza que está no centro da obra dele.” Os filmes irão, na sequência, para a plataforma Itaú Cultural Play

Nas demais salas, Adhemar seguirá resgatando outros títulos e autores necessários do cinema brasileiro. “O que esse cara tem feito pela promoção e divulgação do cinema feito no País é o que nos permite seguir em frente. Não preciso nem lembrar que estamos sofrendo com esse governo totalmente refratário à produção artística nacional, e não só o cinema”, reflete Giorgetti. A partir de quinta, também será possível (re)ver dois premiados filmes nacionais - Memórias Póstumas, de André Klotzel, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o primeiro de 2001, o segundo de 2002, ambos contemporâneos da inauguração do Espaço. 

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Baseado no clássico da literatura brasileira Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - que já havia inspirado o Brás Cubas, de Júlio Bressane, de 1985 -, o filme de Klotzel venceu cinco prêmios no Festival de Gramado. Além do Kikito de melhor direção, ganhou os prêmios de melhor filme do júri e da crítica, mais as estatuetas de melhor roteiro, do próprio Klotzel, e o de melhor atriz coadjuvante para Sônia Braga, como Marcela. Cidade de Deus virou o maior fenômeno do cinema brasileiro da época. Os anos 1990 haviam se pautado pela chamada “retomada”, após a política de terra arrasada do governo Collor, e não apenas para a cultura. 

Com o título de City of God, o filme fez carreira internacional e foi indicado para quatro Oscars, inclusive o de direção. No Brasil, parte da crítica alimentou uma polêmica que rendeu réplicas e tréplicas. O diretor Meirelles teria transformado a estética da fome do Cinema Novo em cosmética. Ancorado na discussão, o filme fez sucesso de público e, em Hollywood, até Steven Spielberg quis saber do diretor como havia sido feita a cena da galinha, no começo - com imaginação, mais do que com dinheiro.

Outro destaque da programação é A Melhor Juventude, a história da Itália dos anos 1960 aos 2000, através da ligação de dois irmãos. Marco Tullio Giordana fez, em 2003, sua obra-prima, que só cresce com o tempo.

Ugo Giorgetti comemorou, recentemente, 79 anos. Em maio do ano que vem, no dia 28, serão 80. A data redonda ganha a homenagem antecipada no Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca, que completa 20 anos em 1.º de agosto e promove uma retrospectiva dedicada ao autor, com 12 títulos, a partir desta quinta, 29 - a partir do dia 6 (e até 5 de outubro), a mostra estará disponível gratuitamente na plataforma de streaming Itaú Cultural Play. “Sou um velho cercado de mortos”, Ugo reflete, sem mágoa. Os amigos foram sempre importantes - Antonio De Francheschi, Roberto Piva. Ele se lembra quando, jovem, ia aos cinemas para ver os filmes do neorrealismo e da nascente nouvelle vague. A italianidade estava no DNA, mas a nova onda, por volta de 1960, era o cinema dos jovens. “Vimos Os Primos, do (Claude) Chabrol, e comentávamos como aquilo era novo.” 

O cineasta Ugo Giorgetti ganha retrospectiva Foto: Werther Santana/Estadão

Naquela época, não pensava que seria cineasta, nem publicitário. Filho de pai engenheiro e mãe professora, vivia a juventude despreocupada de um garoto da classe média paulistana. Mas consciência não lhe faltava. Começou a achar que já era tempo de ganhar o próprio sustento. A publicidade veio assim. “Ganhava muito bem”, lembra. Foi parar na Alcântara Machado, uma grande agência. Fez todas aquelas (novas) amizades - atores, técnicos. Tornou-se cineasta. Produziu seus clássicos. Festa, de 1989, Sábado, 1994, Boleiros 1 e 2, de 1998 e 2006. 

Colocou o Brasil numa festa, os bacanas e o pessoal da cozinha, divididos pela desigualdade. Uma equipe de publicidade invade um prédio do centro velho para gravar um comercial e o elevador quebrado cria a maior confusão com os moradores. Amigos reúnem-se em rodas de bar para discutir futebol. No inédito Dora e Gabriel, que terá pré-estreia durante a programação, o casal assaltado vai parar no porta-malas do carro. A vida aqui fora, eles lá dentro. Todos esses filmes refletem as transformações na cidade - São Paulo - em que Ugo nasceu, cresceu, fez-se homem. “Não consigo dizer que isso foi intencional, refletir sobre a cidade, mas ela faz parte da minha vida e da vida das personagens.” 

O cinema, segundo Giorgetti. Outro paulistano ilustre do cinema, Roberto Santos, bebeu na fonte social do neorrealismo em O Grande Momento, no final dos anos 1950. Giorgetti fez outro percurso. O humor de Mario Monicelli, seu favorito, mas com um viés particular. Os grandes filmes de Giorgetti são minimalistas, enxutos até o limite. O diálogo lembra o dos grandes escritores norte-americanos, Ernest Hemingway, como os mestres das narrativas policiais. Todo esse melting point fez parte da sua geração e forjou o autor singular que ele é. Giorgetti já tem estrada suficiente, como realizador de documentários e ficções, para saber como é misterioso o processo de criação. 

“Muitas vezes o significado profundo que me levou a fazer determinados filmes só apareceu mais tarde.” O tempo no processo criativo. “É muito importante, tenho a impressão de que o tempo dos personagens, da própria sociedade, atravessa meu cinema. Já ouvi que o tempo confere uma dimensão filosófica ao meu trabalho.” Pode ser. Afinal, lá atrás, ele frequentou a faculdade de filosofia por dois anos. “Essas coisas marcam a gente, me marcaram.” Palmeirense, o futebol sempre fez parte da sua vida e inspirou um de seus melhores filmes, Boleiros, com direito até a sequência. Não apenas. A par das ficções, Giorgetti também fez Pelé Eterno e Um Craque Chamado Divino

Em Boleiros - o 1 -, todos aqueles amigos que se reúnem para falar de futebol são desdobramentos do próprio diretor e roteirista. O que dizem as pessoas, como falam. “Como descendente de imigrantes acho que a minha obra termina refletindo esses linguajares. A São Paulo do começo dos anos 1950, da época de Eder Jofre, que documentei em Quebrando a Cara, de 1986, não é a mesma de O Príncipe, de 2002.” Nesse quadro emerge um personagem como Paulinho Majestade, de Boleiros - Era Uma Vez o Futebol - o verdadeiro príncipe, no cinema de Giorgetti, é ele. 

“No Majestade, eu projetei a história de um grande craque santista, Joel Camargo. Ele chegou a ser campeão do mundo em 1970, mas na reserva. Era um grande jogador que teve muitos reveses na vida.” O que os franceses chamam de ‘mauvaise étoile’. A má estrela. Majestade é precioso porque permite fazer uma distinção importante no cinema de Giorgetti, entre tipo e personagem. O tipo é pitoresco, o personagem é trágico. Grande Paulinho, grande Joel Camargo. O cinema - e o futebol - agradecem.

Beirando os 80, Giorgetti encara sem tristeza a própria finitude. “Ainda posso fazer mais alguns filmes, e quero fazer, mas o grosso da minha obra já está concluído.”  Sentimentalismo? “Se há uma coisa à qual sou avesso é isso.” Melancolia? É onde entra a influência dos mestres da comédia italiana. “Se existe, disfarço bem”, ele conta. O repórter polemiza um pouco. Giorgetti ama Monicelli, O Incrível Exército de Brancaleone, Parente É Serpente. Voltam as histórias de imigrantes. Paul Singer, o grande economista, fundador do PT, que Giorgetti documentou em Uma Utopia Militante, exibido no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade em abril deste ano. 

“O que mais me atraiu nesse trabalho foi a possibilidade de mostrar o homem de ação.” Singer chegou criança ao Brasil, integrando uma família de judeus austríacos que fugia do nazismo. Terminou fundamentando o conceito da economia solidária. Talvez a melhor definição para o artista homenageado nos 20 anos do Espaço Itaú do Frei Caneca seja a seguinte - com a limpidez de seu estilo, Giorgetti aprimorou, ao longo dos anos, a arte de dizer as coisas complicadas de forma simples e direta.

As salas do shopping Itaú Frei Caneca completam 20 anos e a comemoração inclui reprises como a de ‘Cidade de Deus'

Quando começou a pensar numa programação especial para comemorar os 20 anos do Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca, Adhemar Oliveira não contava que a efeméride viesse no meio da crise sanitária que colocou o Brasil na vanguarda do número de mortos em todo o mundo. A epidemia do coronavírus paralisou o mercado exibidor de cinema no ano passado. Os filmes foram retomados, principalmente no streaming. Nas salas, a frequência continua caída, mas, com os 80% da população de São Paulo vacinada, a expectativa é de que esses números comecem a melhorar. Adhemar aposta na programação de aniversário para atrair mais público. 

Embora o Shopping Frei Caneca tenha sido inaugurado em maio de 2001, os cinemas demoraram mais um pouco para começar a funcionar - em 3 de agosto daquele ano. O conceito era novo - “A ideia, desde o início, considerando-se que são salas de shopping, era mesclar o cinema de arte que estava no nosso DNA - meu, do Leon (Cakoff) - com os blockbusters”, lembra Adhemar. “Houve um estranhamento inicial, por parte do público. Os cinéfilos de carteirinha achavam que a gente estava desvirtuando o conceito da arte, mas, com o tempo, as pessoas passaram a entender a proposta. Os filmes de grandes estúdios podem conviver pacificamente com a produção brasileira e a independente de vários lugares do mundo. Formamos nosso público fiel”, ele avalia. 

A pandemia afastou a massa desses espectadores, mas agora as pesquisas apontam para cerca de 20% do público de 2019, já que o de 2020 foi nulo. Rememorando - com nove salas, bonbonnière, cafeteria e aquela área de convivência que tem abrigado exposições de fotos, o Frei Caneca recebeu, ao longo desses 20 anos, mais de 8 milhões de espectadores que assistiram a cerca de dez mil filmes. O conjunto de salas abrigou mostras e eventos e promoveu ações de formação e ampliação de público, como o Clube do Professor, o Clube Jovem, Clube da Terceira Idade e Sessão Popular. Foram criados complexos semelhantes em diferentes regiões do Brasil, abrigando a mesma diversidade de programas e de ações que tem facilitado o livre acesso ou o desconto no valor dos ingressos. 

Espaço Itaú de Cinema Frei Canecacompleta 20 anos Foto: Aline Arruda

Para comemorar a data redonda, o Itaú Frei Caneca resgata a obra de um autor importante, que também festeja seus 80 anos em 2022. “Ao longo desses 20 anos, o Espaço estabeleceu uma parceria com Ugo (Giorgetti). Todos os filmes dele passaram aqui com a gente. Vamos ter uma semana com a reapresentação de 11 filmes e a pré-estreia de Dora e Gabriel. No total, serão 12 títulos. O Ugo é esse cara finíssimo. Diante de tudo o que acontece no Brasil e no mundo, creio que será muito bacana resgatar essa espécie de gentileza que está no centro da obra dele.” Os filmes irão, na sequência, para a plataforma Itaú Cultural Play

Nas demais salas, Adhemar seguirá resgatando outros títulos e autores necessários do cinema brasileiro. “O que esse cara tem feito pela promoção e divulgação do cinema feito no País é o que nos permite seguir em frente. Não preciso nem lembrar que estamos sofrendo com esse governo totalmente refratário à produção artística nacional, e não só o cinema”, reflete Giorgetti. A partir de quinta, também será possível (re)ver dois premiados filmes nacionais - Memórias Póstumas, de André Klotzel, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o primeiro de 2001, o segundo de 2002, ambos contemporâneos da inauguração do Espaço. 

Baseado no clássico da literatura brasileira Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - que já havia inspirado o Brás Cubas, de Júlio Bressane, de 1985 -, o filme de Klotzel venceu cinco prêmios no Festival de Gramado. Além do Kikito de melhor direção, ganhou os prêmios de melhor filme do júri e da crítica, mais as estatuetas de melhor roteiro, do próprio Klotzel, e o de melhor atriz coadjuvante para Sônia Braga, como Marcela. Cidade de Deus virou o maior fenômeno do cinema brasileiro da época. Os anos 1990 haviam se pautado pela chamada “retomada”, após a política de terra arrasada do governo Collor, e não apenas para a cultura. 

Com o título de City of God, o filme fez carreira internacional e foi indicado para quatro Oscars, inclusive o de direção. No Brasil, parte da crítica alimentou uma polêmica que rendeu réplicas e tréplicas. O diretor Meirelles teria transformado a estética da fome do Cinema Novo em cosmética. Ancorado na discussão, o filme fez sucesso de público e, em Hollywood, até Steven Spielberg quis saber do diretor como havia sido feita a cena da galinha, no começo - com imaginação, mais do que com dinheiro.

Outro destaque da programação é A Melhor Juventude, a história da Itália dos anos 1960 aos 2000, através da ligação de dois irmãos. Marco Tullio Giordana fez, em 2003, sua obra-prima, que só cresce com o tempo.

Ugo Giorgetti comemorou, recentemente, 79 anos. Em maio do ano que vem, no dia 28, serão 80. A data redonda ganha a homenagem antecipada no Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca, que completa 20 anos em 1.º de agosto e promove uma retrospectiva dedicada ao autor, com 12 títulos, a partir desta quinta, 29 - a partir do dia 6 (e até 5 de outubro), a mostra estará disponível gratuitamente na plataforma de streaming Itaú Cultural Play. “Sou um velho cercado de mortos”, Ugo reflete, sem mágoa. Os amigos foram sempre importantes - Antonio De Francheschi, Roberto Piva. Ele se lembra quando, jovem, ia aos cinemas para ver os filmes do neorrealismo e da nascente nouvelle vague. A italianidade estava no DNA, mas a nova onda, por volta de 1960, era o cinema dos jovens. “Vimos Os Primos, do (Claude) Chabrol, e comentávamos como aquilo era novo.” 

O cineasta Ugo Giorgetti ganha retrospectiva Foto: Werther Santana/Estadão

Naquela época, não pensava que seria cineasta, nem publicitário. Filho de pai engenheiro e mãe professora, vivia a juventude despreocupada de um garoto da classe média paulistana. Mas consciência não lhe faltava. Começou a achar que já era tempo de ganhar o próprio sustento. A publicidade veio assim. “Ganhava muito bem”, lembra. Foi parar na Alcântara Machado, uma grande agência. Fez todas aquelas (novas) amizades - atores, técnicos. Tornou-se cineasta. Produziu seus clássicos. Festa, de 1989, Sábado, 1994, Boleiros 1 e 2, de 1998 e 2006. 

Colocou o Brasil numa festa, os bacanas e o pessoal da cozinha, divididos pela desigualdade. Uma equipe de publicidade invade um prédio do centro velho para gravar um comercial e o elevador quebrado cria a maior confusão com os moradores. Amigos reúnem-se em rodas de bar para discutir futebol. No inédito Dora e Gabriel, que terá pré-estreia durante a programação, o casal assaltado vai parar no porta-malas do carro. A vida aqui fora, eles lá dentro. Todos esses filmes refletem as transformações na cidade - São Paulo - em que Ugo nasceu, cresceu, fez-se homem. “Não consigo dizer que isso foi intencional, refletir sobre a cidade, mas ela faz parte da minha vida e da vida das personagens.” 

O cinema, segundo Giorgetti. Outro paulistano ilustre do cinema, Roberto Santos, bebeu na fonte social do neorrealismo em O Grande Momento, no final dos anos 1950. Giorgetti fez outro percurso. O humor de Mario Monicelli, seu favorito, mas com um viés particular. Os grandes filmes de Giorgetti são minimalistas, enxutos até o limite. O diálogo lembra o dos grandes escritores norte-americanos, Ernest Hemingway, como os mestres das narrativas policiais. Todo esse melting point fez parte da sua geração e forjou o autor singular que ele é. Giorgetti já tem estrada suficiente, como realizador de documentários e ficções, para saber como é misterioso o processo de criação. 

“Muitas vezes o significado profundo que me levou a fazer determinados filmes só apareceu mais tarde.” O tempo no processo criativo. “É muito importante, tenho a impressão de que o tempo dos personagens, da própria sociedade, atravessa meu cinema. Já ouvi que o tempo confere uma dimensão filosófica ao meu trabalho.” Pode ser. Afinal, lá atrás, ele frequentou a faculdade de filosofia por dois anos. “Essas coisas marcam a gente, me marcaram.” Palmeirense, o futebol sempre fez parte da sua vida e inspirou um de seus melhores filmes, Boleiros, com direito até a sequência. Não apenas. A par das ficções, Giorgetti também fez Pelé Eterno e Um Craque Chamado Divino

Em Boleiros - o 1 -, todos aqueles amigos que se reúnem para falar de futebol são desdobramentos do próprio diretor e roteirista. O que dizem as pessoas, como falam. “Como descendente de imigrantes acho que a minha obra termina refletindo esses linguajares. A São Paulo do começo dos anos 1950, da época de Eder Jofre, que documentei em Quebrando a Cara, de 1986, não é a mesma de O Príncipe, de 2002.” Nesse quadro emerge um personagem como Paulinho Majestade, de Boleiros - Era Uma Vez o Futebol - o verdadeiro príncipe, no cinema de Giorgetti, é ele. 

“No Majestade, eu projetei a história de um grande craque santista, Joel Camargo. Ele chegou a ser campeão do mundo em 1970, mas na reserva. Era um grande jogador que teve muitos reveses na vida.” O que os franceses chamam de ‘mauvaise étoile’. A má estrela. Majestade é precioso porque permite fazer uma distinção importante no cinema de Giorgetti, entre tipo e personagem. O tipo é pitoresco, o personagem é trágico. Grande Paulinho, grande Joel Camargo. O cinema - e o futebol - agradecem.

Beirando os 80, Giorgetti encara sem tristeza a própria finitude. “Ainda posso fazer mais alguns filmes, e quero fazer, mas o grosso da minha obra já está concluído.”  Sentimentalismo? “Se há uma coisa à qual sou avesso é isso.” Melancolia? É onde entra a influência dos mestres da comédia italiana. “Se existe, disfarço bem”, ele conta. O repórter polemiza um pouco. Giorgetti ama Monicelli, O Incrível Exército de Brancaleone, Parente É Serpente. Voltam as histórias de imigrantes. Paul Singer, o grande economista, fundador do PT, que Giorgetti documentou em Uma Utopia Militante, exibido no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade em abril deste ano. 

“O que mais me atraiu nesse trabalho foi a possibilidade de mostrar o homem de ação.” Singer chegou criança ao Brasil, integrando uma família de judeus austríacos que fugia do nazismo. Terminou fundamentando o conceito da economia solidária. Talvez a melhor definição para o artista homenageado nos 20 anos do Espaço Itaú do Frei Caneca seja a seguinte - com a limpidez de seu estilo, Giorgetti aprimorou, ao longo dos anos, a arte de dizer as coisas complicadas de forma simples e direta.

As salas do shopping Itaú Frei Caneca completam 20 anos e a comemoração inclui reprises como a de ‘Cidade de Deus'

Quando começou a pensar numa programação especial para comemorar os 20 anos do Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca, Adhemar Oliveira não contava que a efeméride viesse no meio da crise sanitária que colocou o Brasil na vanguarda do número de mortos em todo o mundo. A epidemia do coronavírus paralisou o mercado exibidor de cinema no ano passado. Os filmes foram retomados, principalmente no streaming. Nas salas, a frequência continua caída, mas, com os 80% da população de São Paulo vacinada, a expectativa é de que esses números comecem a melhorar. Adhemar aposta na programação de aniversário para atrair mais público. 

Embora o Shopping Frei Caneca tenha sido inaugurado em maio de 2001, os cinemas demoraram mais um pouco para começar a funcionar - em 3 de agosto daquele ano. O conceito era novo - “A ideia, desde o início, considerando-se que são salas de shopping, era mesclar o cinema de arte que estava no nosso DNA - meu, do Leon (Cakoff) - com os blockbusters”, lembra Adhemar. “Houve um estranhamento inicial, por parte do público. Os cinéfilos de carteirinha achavam que a gente estava desvirtuando o conceito da arte, mas, com o tempo, as pessoas passaram a entender a proposta. Os filmes de grandes estúdios podem conviver pacificamente com a produção brasileira e a independente de vários lugares do mundo. Formamos nosso público fiel”, ele avalia. 

A pandemia afastou a massa desses espectadores, mas agora as pesquisas apontam para cerca de 20% do público de 2019, já que o de 2020 foi nulo. Rememorando - com nove salas, bonbonnière, cafeteria e aquela área de convivência que tem abrigado exposições de fotos, o Frei Caneca recebeu, ao longo desses 20 anos, mais de 8 milhões de espectadores que assistiram a cerca de dez mil filmes. O conjunto de salas abrigou mostras e eventos e promoveu ações de formação e ampliação de público, como o Clube do Professor, o Clube Jovem, Clube da Terceira Idade e Sessão Popular. Foram criados complexos semelhantes em diferentes regiões do Brasil, abrigando a mesma diversidade de programas e de ações que tem facilitado o livre acesso ou o desconto no valor dos ingressos. 

Espaço Itaú de Cinema Frei Canecacompleta 20 anos Foto: Aline Arruda

Para comemorar a data redonda, o Itaú Frei Caneca resgata a obra de um autor importante, que também festeja seus 80 anos em 2022. “Ao longo desses 20 anos, o Espaço estabeleceu uma parceria com Ugo (Giorgetti). Todos os filmes dele passaram aqui com a gente. Vamos ter uma semana com a reapresentação de 11 filmes e a pré-estreia de Dora e Gabriel. No total, serão 12 títulos. O Ugo é esse cara finíssimo. Diante de tudo o que acontece no Brasil e no mundo, creio que será muito bacana resgatar essa espécie de gentileza que está no centro da obra dele.” Os filmes irão, na sequência, para a plataforma Itaú Cultural Play

Nas demais salas, Adhemar seguirá resgatando outros títulos e autores necessários do cinema brasileiro. “O que esse cara tem feito pela promoção e divulgação do cinema feito no País é o que nos permite seguir em frente. Não preciso nem lembrar que estamos sofrendo com esse governo totalmente refratário à produção artística nacional, e não só o cinema”, reflete Giorgetti. A partir de quinta, também será possível (re)ver dois premiados filmes nacionais - Memórias Póstumas, de André Klotzel, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o primeiro de 2001, o segundo de 2002, ambos contemporâneos da inauguração do Espaço. 

Baseado no clássico da literatura brasileira Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - que já havia inspirado o Brás Cubas, de Júlio Bressane, de 1985 -, o filme de Klotzel venceu cinco prêmios no Festival de Gramado. Além do Kikito de melhor direção, ganhou os prêmios de melhor filme do júri e da crítica, mais as estatuetas de melhor roteiro, do próprio Klotzel, e o de melhor atriz coadjuvante para Sônia Braga, como Marcela. Cidade de Deus virou o maior fenômeno do cinema brasileiro da época. Os anos 1990 haviam se pautado pela chamada “retomada”, após a política de terra arrasada do governo Collor, e não apenas para a cultura. 

Com o título de City of God, o filme fez carreira internacional e foi indicado para quatro Oscars, inclusive o de direção. No Brasil, parte da crítica alimentou uma polêmica que rendeu réplicas e tréplicas. O diretor Meirelles teria transformado a estética da fome do Cinema Novo em cosmética. Ancorado na discussão, o filme fez sucesso de público e, em Hollywood, até Steven Spielberg quis saber do diretor como havia sido feita a cena da galinha, no começo - com imaginação, mais do que com dinheiro.

Outro destaque da programação é A Melhor Juventude, a história da Itália dos anos 1960 aos 2000, através da ligação de dois irmãos. Marco Tullio Giordana fez, em 2003, sua obra-prima, que só cresce com o tempo.

Ugo Giorgetti comemorou, recentemente, 79 anos. Em maio do ano que vem, no dia 28, serão 80. A data redonda ganha a homenagem antecipada no Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca, que completa 20 anos em 1.º de agosto e promove uma retrospectiva dedicada ao autor, com 12 títulos, a partir desta quinta, 29 - a partir do dia 6 (e até 5 de outubro), a mostra estará disponível gratuitamente na plataforma de streaming Itaú Cultural Play. “Sou um velho cercado de mortos”, Ugo reflete, sem mágoa. Os amigos foram sempre importantes - Antonio De Francheschi, Roberto Piva. Ele se lembra quando, jovem, ia aos cinemas para ver os filmes do neorrealismo e da nascente nouvelle vague. A italianidade estava no DNA, mas a nova onda, por volta de 1960, era o cinema dos jovens. “Vimos Os Primos, do (Claude) Chabrol, e comentávamos como aquilo era novo.” 

O cineasta Ugo Giorgetti ganha retrospectiva Foto: Werther Santana/Estadão

Naquela época, não pensava que seria cineasta, nem publicitário. Filho de pai engenheiro e mãe professora, vivia a juventude despreocupada de um garoto da classe média paulistana. Mas consciência não lhe faltava. Começou a achar que já era tempo de ganhar o próprio sustento. A publicidade veio assim. “Ganhava muito bem”, lembra. Foi parar na Alcântara Machado, uma grande agência. Fez todas aquelas (novas) amizades - atores, técnicos. Tornou-se cineasta. Produziu seus clássicos. Festa, de 1989, Sábado, 1994, Boleiros 1 e 2, de 1998 e 2006. 

Colocou o Brasil numa festa, os bacanas e o pessoal da cozinha, divididos pela desigualdade. Uma equipe de publicidade invade um prédio do centro velho para gravar um comercial e o elevador quebrado cria a maior confusão com os moradores. Amigos reúnem-se em rodas de bar para discutir futebol. No inédito Dora e Gabriel, que terá pré-estreia durante a programação, o casal assaltado vai parar no porta-malas do carro. A vida aqui fora, eles lá dentro. Todos esses filmes refletem as transformações na cidade - São Paulo - em que Ugo nasceu, cresceu, fez-se homem. “Não consigo dizer que isso foi intencional, refletir sobre a cidade, mas ela faz parte da minha vida e da vida das personagens.” 

O cinema, segundo Giorgetti. Outro paulistano ilustre do cinema, Roberto Santos, bebeu na fonte social do neorrealismo em O Grande Momento, no final dos anos 1950. Giorgetti fez outro percurso. O humor de Mario Monicelli, seu favorito, mas com um viés particular. Os grandes filmes de Giorgetti são minimalistas, enxutos até o limite. O diálogo lembra o dos grandes escritores norte-americanos, Ernest Hemingway, como os mestres das narrativas policiais. Todo esse melting point fez parte da sua geração e forjou o autor singular que ele é. Giorgetti já tem estrada suficiente, como realizador de documentários e ficções, para saber como é misterioso o processo de criação. 

“Muitas vezes o significado profundo que me levou a fazer determinados filmes só apareceu mais tarde.” O tempo no processo criativo. “É muito importante, tenho a impressão de que o tempo dos personagens, da própria sociedade, atravessa meu cinema. Já ouvi que o tempo confere uma dimensão filosófica ao meu trabalho.” Pode ser. Afinal, lá atrás, ele frequentou a faculdade de filosofia por dois anos. “Essas coisas marcam a gente, me marcaram.” Palmeirense, o futebol sempre fez parte da sua vida e inspirou um de seus melhores filmes, Boleiros, com direito até a sequência. Não apenas. A par das ficções, Giorgetti também fez Pelé Eterno e Um Craque Chamado Divino

Em Boleiros - o 1 -, todos aqueles amigos que se reúnem para falar de futebol são desdobramentos do próprio diretor e roteirista. O que dizem as pessoas, como falam. “Como descendente de imigrantes acho que a minha obra termina refletindo esses linguajares. A São Paulo do começo dos anos 1950, da época de Eder Jofre, que documentei em Quebrando a Cara, de 1986, não é a mesma de O Príncipe, de 2002.” Nesse quadro emerge um personagem como Paulinho Majestade, de Boleiros - Era Uma Vez o Futebol - o verdadeiro príncipe, no cinema de Giorgetti, é ele. 

“No Majestade, eu projetei a história de um grande craque santista, Joel Camargo. Ele chegou a ser campeão do mundo em 1970, mas na reserva. Era um grande jogador que teve muitos reveses na vida.” O que os franceses chamam de ‘mauvaise étoile’. A má estrela. Majestade é precioso porque permite fazer uma distinção importante no cinema de Giorgetti, entre tipo e personagem. O tipo é pitoresco, o personagem é trágico. Grande Paulinho, grande Joel Camargo. O cinema - e o futebol - agradecem.

Beirando os 80, Giorgetti encara sem tristeza a própria finitude. “Ainda posso fazer mais alguns filmes, e quero fazer, mas o grosso da minha obra já está concluído.”  Sentimentalismo? “Se há uma coisa à qual sou avesso é isso.” Melancolia? É onde entra a influência dos mestres da comédia italiana. “Se existe, disfarço bem”, ele conta. O repórter polemiza um pouco. Giorgetti ama Monicelli, O Incrível Exército de Brancaleone, Parente É Serpente. Voltam as histórias de imigrantes. Paul Singer, o grande economista, fundador do PT, que Giorgetti documentou em Uma Utopia Militante, exibido no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade em abril deste ano. 

“O que mais me atraiu nesse trabalho foi a possibilidade de mostrar o homem de ação.” Singer chegou criança ao Brasil, integrando uma família de judeus austríacos que fugia do nazismo. Terminou fundamentando o conceito da economia solidária. Talvez a melhor definição para o artista homenageado nos 20 anos do Espaço Itaú do Frei Caneca seja a seguinte - com a limpidez de seu estilo, Giorgetti aprimorou, ao longo dos anos, a arte de dizer as coisas complicadas de forma simples e direta.

As salas do shopping Itaú Frei Caneca completam 20 anos e a comemoração inclui reprises como a de ‘Cidade de Deus'

Quando começou a pensar numa programação especial para comemorar os 20 anos do Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca, Adhemar Oliveira não contava que a efeméride viesse no meio da crise sanitária que colocou o Brasil na vanguarda do número de mortos em todo o mundo. A epidemia do coronavírus paralisou o mercado exibidor de cinema no ano passado. Os filmes foram retomados, principalmente no streaming. Nas salas, a frequência continua caída, mas, com os 80% da população de São Paulo vacinada, a expectativa é de que esses números comecem a melhorar. Adhemar aposta na programação de aniversário para atrair mais público. 

Embora o Shopping Frei Caneca tenha sido inaugurado em maio de 2001, os cinemas demoraram mais um pouco para começar a funcionar - em 3 de agosto daquele ano. O conceito era novo - “A ideia, desde o início, considerando-se que são salas de shopping, era mesclar o cinema de arte que estava no nosso DNA - meu, do Leon (Cakoff) - com os blockbusters”, lembra Adhemar. “Houve um estranhamento inicial, por parte do público. Os cinéfilos de carteirinha achavam que a gente estava desvirtuando o conceito da arte, mas, com o tempo, as pessoas passaram a entender a proposta. Os filmes de grandes estúdios podem conviver pacificamente com a produção brasileira e a independente de vários lugares do mundo. Formamos nosso público fiel”, ele avalia. 

A pandemia afastou a massa desses espectadores, mas agora as pesquisas apontam para cerca de 20% do público de 2019, já que o de 2020 foi nulo. Rememorando - com nove salas, bonbonnière, cafeteria e aquela área de convivência que tem abrigado exposições de fotos, o Frei Caneca recebeu, ao longo desses 20 anos, mais de 8 milhões de espectadores que assistiram a cerca de dez mil filmes. O conjunto de salas abrigou mostras e eventos e promoveu ações de formação e ampliação de público, como o Clube do Professor, o Clube Jovem, Clube da Terceira Idade e Sessão Popular. Foram criados complexos semelhantes em diferentes regiões do Brasil, abrigando a mesma diversidade de programas e de ações que tem facilitado o livre acesso ou o desconto no valor dos ingressos. 

Espaço Itaú de Cinema Frei Canecacompleta 20 anos Foto: Aline Arruda

Para comemorar a data redonda, o Itaú Frei Caneca resgata a obra de um autor importante, que também festeja seus 80 anos em 2022. “Ao longo desses 20 anos, o Espaço estabeleceu uma parceria com Ugo (Giorgetti). Todos os filmes dele passaram aqui com a gente. Vamos ter uma semana com a reapresentação de 11 filmes e a pré-estreia de Dora e Gabriel. No total, serão 12 títulos. O Ugo é esse cara finíssimo. Diante de tudo o que acontece no Brasil e no mundo, creio que será muito bacana resgatar essa espécie de gentileza que está no centro da obra dele.” Os filmes irão, na sequência, para a plataforma Itaú Cultural Play

Nas demais salas, Adhemar seguirá resgatando outros títulos e autores necessários do cinema brasileiro. “O que esse cara tem feito pela promoção e divulgação do cinema feito no País é o que nos permite seguir em frente. Não preciso nem lembrar que estamos sofrendo com esse governo totalmente refratário à produção artística nacional, e não só o cinema”, reflete Giorgetti. A partir de quinta, também será possível (re)ver dois premiados filmes nacionais - Memórias Póstumas, de André Klotzel, e Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, o primeiro de 2001, o segundo de 2002, ambos contemporâneos da inauguração do Espaço. 

Baseado no clássico da literatura brasileira Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis - que já havia inspirado o Brás Cubas, de Júlio Bressane, de 1985 -, o filme de Klotzel venceu cinco prêmios no Festival de Gramado. Além do Kikito de melhor direção, ganhou os prêmios de melhor filme do júri e da crítica, mais as estatuetas de melhor roteiro, do próprio Klotzel, e o de melhor atriz coadjuvante para Sônia Braga, como Marcela. Cidade de Deus virou o maior fenômeno do cinema brasileiro da época. Os anos 1990 haviam se pautado pela chamada “retomada”, após a política de terra arrasada do governo Collor, e não apenas para a cultura. 

Com o título de City of God, o filme fez carreira internacional e foi indicado para quatro Oscars, inclusive o de direção. No Brasil, parte da crítica alimentou uma polêmica que rendeu réplicas e tréplicas. O diretor Meirelles teria transformado a estética da fome do Cinema Novo em cosmética. Ancorado na discussão, o filme fez sucesso de público e, em Hollywood, até Steven Spielberg quis saber do diretor como havia sido feita a cena da galinha, no começo - com imaginação, mais do que com dinheiro.

Outro destaque da programação é A Melhor Juventude, a história da Itália dos anos 1960 aos 2000, através da ligação de dois irmãos. Marco Tullio Giordana fez, em 2003, sua obra-prima, que só cresce com o tempo.

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