Clarão sobre os pesadelos da história


Por LUIS S. KRAUSZ É PROFESSOR DE LITERATURA JUDAICA e HEBRAICA DA USP

LUIS S. KRAUSZA vasta obra de Michael Löwy, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, caracteriza-se pelo interesse pelo pensamento libertário, e pela amplitude de seus direcionamentos, que vão de Marx ao Surrealismo, passando pela filosofia de pensadores como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Gershom Scholem. Nascido em São Paulo em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena, Löwy formou-se pela USP e concluiu seu doutorado em Paris, com uma tese sobre o jovem Marx, orientado por Lucien Goldmann. Posteriormente tornou-se assistente de Nicos Poulantzas, na Universidade de Paris VIII. Em São Paulo, onde esteve recentemente para ministrar um curso na USP, ele lançou Judeus Heterodoxos: Messianismo, Romantismo, Utopia, em que aborda, sob o prisma das influências mútuas, o pensamento libertário judaico-alemão do século 20. Ao mesmo tempo, chegou às livrarias a nova edição do seu A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Em entrevista ao Sabático, Löwy falou sobre as duas obras e suas ideias. Acompanhe.Seu novo livro mapeia a confluência entre cultura alemã e tradição judaica, que formou uma das vertentes mais interessantes do humanismo europeu do século 20. Para onde vai esta vertente?Não faço aqui um mapeamento - isto tentei fazer em meu livro anterior, Redenção e Utopia. Trata-se, agora, de uma espécie de "canteiro de obras'' em que reuni ensaios sobre autores desta configuração cujas obras analiso a partir do ponto de vista da comparação e das influências mútuas. Martin Buber, Gershom Scholem, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Ernst Bloch e outros constituem esse universo do judaísmo de cultura alemã do começo do século 20, brutalmente interrompido pelo nazismo e hoje um continente desaparecido. Essa vertente específica, messiânica e romântica da cultura judaico-alemã é heterodoxa, distante dos cânones da ortodoxia - da ortodoxia religiosa, obviamente, mas também da ortodoxia liberal burguesa, que era uma outra ortodoxia judaico-alemã. Há hoje interesse pela cultura judaico-alemã, e não só no mundo acadêmico: é uma forma de se revisitar esta tradição. E meu trabalho é isto, uma revisita.Alguns desses pensadores têm hoje influência mundial, como Walter Benjamin, que via a história como um pesadelo. No que consiste o pesadelo da história?Walter Benjamin via o curso da história como uma sucessão de catástrofes porque a enxergava do ponto de vista das vítimas dos processos históricos - os camponeses, os escravos, os proletários, etc. Essa sucessão de catástrofes vai fazendo uma pilha de escombros. Ele escreve isto em 1940, em suas Teses Sobre o Conceito de História, e o faz de maneira profética, quando estão prestes a acrescentar-se a esses escombros os de Auschwitz e Hiroshima. Mas há também os sonhos: utopias emancipatórias, que ajudam as pessoas a despertarem do pesadelo. E para que haja este despertar, é preciso que as pessoas se libertem de uma espécie de ópio do povo que, para Benjamin, é a ideologia do progresso, segundo a qual basta deixar o rio correr para que tudo se encaminhe em direção a um amanhecer glorioso da humanidade.Seu livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx, que acaba de ser reeditado, reflete sobre a crise das ideologias hoje?A ideologia do neoliberalismo vai muito bem; é um discurso dominante, com uma influência tremenda, planetária. Quanto ao pensamento marxista, eu não classifico como ideologia e sim como utopia, no sentido do conceito sociológico de utopia em Karl Mannheim: conjunto de representações que tem uma função subversiva em relação à realidade social. A utopia marxista passou a sofrer questionamentos crescentes a partir da queda do Muro de Berlim. Mas quando isso aconteceu, já havia bastante gente no campo do marxismo que não aceitava a identificação entre o socialismo real e as ideias de Marx. Havia um consenso entre os adversários do marxismo, que apontavam para a União Soviética e diziam: "Isto é a aplicação do marxismo". E que, com a crise do bloco soviético, proclamaram: "Agora acabou o socialismo, e agora acabou o marxismo". A opinião dissidente, que dissociava o marxismo do socialismo soviético, minoritária até 1989, fortaleceu-se, pois via o chamado socialismo real como uma ideologia, isto é, uma construção doutrinária a serviço da manutenção de uma ordem. Há, portanto, um retorno no interesse por Marx, mas é claro que não se trata de uma repetição ritual daquilo que ele escreveu e sim de uma reflexão nova. Qual é o papel da utopia e da nostalgia românticas na crítica marxista ao neoliberalismo? O pensamento de Marx articula os dois momentos. A nostalgia romântica, isto é, a crítica ao presente tomando por base valores do passado, se manifesta quando ele afirma, por exemplo, que, no capitalismo, a dignidade humana se tornou uma mercadoria, e implicitamente reconhece que houve épocas em que isso era diferente. Em seu aspecto utópico, faz uma crítica do presente em nome de um futuro possível, em que o presente aparece como política, social e moralmente inaceitável. Acho que esses dois elementos estão presentes, em proporções diversas, em qualquer movimento de contestação da ordem estabelecida. Se tomarmos um movimento que hoje me parece importante, o movimento chamado altermundialismo, no qual estão presentes várias vertentes da esquerda, veremos o aspecto da nostalgia nas questões ecológicas e indígenas, na ideia de que temos algo a aprender com os que têm valores que não o da mercadoria e do lucro, e que têm a capacidade de viver em harmonia com a natureza. Como você explica que a humanidade pareça cruzar os braços diante da aproximação da catástrofe ecológica? O sistema funciona com sua lógica própria, independentemente das decisões boas ou ruins das pessoas: há uma regra de ferro, ou melhor, de aço, para usar a fórmula de Max Weber, que se impõe sobre as vidas dos membros de todas as classes sociais. O sistema é impessoal, move-se de maneira autônoma, desencadeia crises, desemprego e desastres ecológicos que não são fruto de decisões, mas resultado de um movimento que nutre a si mesmo, que ninguém controla. E a crise presente é uma ilustração dessa impossibilidade de controle. A tradição judaica tem esta metáfora do Golem, um monstro que foi criado por um rabino para proteger a comunidade de Praga, que acaba ganhando vida própria, escapando do controle e se voltando contra os seus criadores. Acho uma metáfora muito pertinente para a catástrofe ecológica que se aproxima.Além da crise econômica, a Europa vive uma crise cultural profunda. Seus parâmetros civilizatórios estão outra vez em xeque?O que mais me preocupa na Europa é o desenvolvimento exponencial de correntes xenofóbicas, fundadas no ódio ao outro, e de movimentos racistas, em alguns casos diretamente inspirados pelo nazi-fascismo. Na França, temos a Frente Nacional, que representa quase 8% do eleitorado. O mesmo se passa na Bélgica. Na Áustria, é pior ainda. O objeto dessas tendências racistas eram, tradicionalmente, os judeus. Hoje são, por exemplo, os ciganos e os africanos. Temos também o exemplo da Grécia, onde um partido que se declara abertamente neonazista, e faz do antissemitismo uma de suas principais bandeiras, está triunfando. De outro lado, há um questionamento interessante que reflete sobre o projeto europeu de civilização, tomando como ponto de partida a crise ecológica. É uma tendência que avalia que o simples crescimento não será solução para a crise contemporânea, pois só agrava os problemas ambientais e não os resolve. Assim, é preciso pensar no decrescimento ou no ecossocialismo. Já está em busca de novos paradigmas."

LUIS S. KRAUSZA vasta obra de Michael Löwy, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, caracteriza-se pelo interesse pelo pensamento libertário, e pela amplitude de seus direcionamentos, que vão de Marx ao Surrealismo, passando pela filosofia de pensadores como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Gershom Scholem. Nascido em São Paulo em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena, Löwy formou-se pela USP e concluiu seu doutorado em Paris, com uma tese sobre o jovem Marx, orientado por Lucien Goldmann. Posteriormente tornou-se assistente de Nicos Poulantzas, na Universidade de Paris VIII. Em São Paulo, onde esteve recentemente para ministrar um curso na USP, ele lançou Judeus Heterodoxos: Messianismo, Romantismo, Utopia, em que aborda, sob o prisma das influências mútuas, o pensamento libertário judaico-alemão do século 20. Ao mesmo tempo, chegou às livrarias a nova edição do seu A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Em entrevista ao Sabático, Löwy falou sobre as duas obras e suas ideias. Acompanhe.Seu novo livro mapeia a confluência entre cultura alemã e tradição judaica, que formou uma das vertentes mais interessantes do humanismo europeu do século 20. Para onde vai esta vertente?Não faço aqui um mapeamento - isto tentei fazer em meu livro anterior, Redenção e Utopia. Trata-se, agora, de uma espécie de "canteiro de obras'' em que reuni ensaios sobre autores desta configuração cujas obras analiso a partir do ponto de vista da comparação e das influências mútuas. Martin Buber, Gershom Scholem, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Ernst Bloch e outros constituem esse universo do judaísmo de cultura alemã do começo do século 20, brutalmente interrompido pelo nazismo e hoje um continente desaparecido. Essa vertente específica, messiânica e romântica da cultura judaico-alemã é heterodoxa, distante dos cânones da ortodoxia - da ortodoxia religiosa, obviamente, mas também da ortodoxia liberal burguesa, que era uma outra ortodoxia judaico-alemã. Há hoje interesse pela cultura judaico-alemã, e não só no mundo acadêmico: é uma forma de se revisitar esta tradição. E meu trabalho é isto, uma revisita.Alguns desses pensadores têm hoje influência mundial, como Walter Benjamin, que via a história como um pesadelo. No que consiste o pesadelo da história?Walter Benjamin via o curso da história como uma sucessão de catástrofes porque a enxergava do ponto de vista das vítimas dos processos históricos - os camponeses, os escravos, os proletários, etc. Essa sucessão de catástrofes vai fazendo uma pilha de escombros. Ele escreve isto em 1940, em suas Teses Sobre o Conceito de História, e o faz de maneira profética, quando estão prestes a acrescentar-se a esses escombros os de Auschwitz e Hiroshima. Mas há também os sonhos: utopias emancipatórias, que ajudam as pessoas a despertarem do pesadelo. E para que haja este despertar, é preciso que as pessoas se libertem de uma espécie de ópio do povo que, para Benjamin, é a ideologia do progresso, segundo a qual basta deixar o rio correr para que tudo se encaminhe em direção a um amanhecer glorioso da humanidade.Seu livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx, que acaba de ser reeditado, reflete sobre a crise das ideologias hoje?A ideologia do neoliberalismo vai muito bem; é um discurso dominante, com uma influência tremenda, planetária. Quanto ao pensamento marxista, eu não classifico como ideologia e sim como utopia, no sentido do conceito sociológico de utopia em Karl Mannheim: conjunto de representações que tem uma função subversiva em relação à realidade social. A utopia marxista passou a sofrer questionamentos crescentes a partir da queda do Muro de Berlim. Mas quando isso aconteceu, já havia bastante gente no campo do marxismo que não aceitava a identificação entre o socialismo real e as ideias de Marx. Havia um consenso entre os adversários do marxismo, que apontavam para a União Soviética e diziam: "Isto é a aplicação do marxismo". E que, com a crise do bloco soviético, proclamaram: "Agora acabou o socialismo, e agora acabou o marxismo". A opinião dissidente, que dissociava o marxismo do socialismo soviético, minoritária até 1989, fortaleceu-se, pois via o chamado socialismo real como uma ideologia, isto é, uma construção doutrinária a serviço da manutenção de uma ordem. Há, portanto, um retorno no interesse por Marx, mas é claro que não se trata de uma repetição ritual daquilo que ele escreveu e sim de uma reflexão nova. Qual é o papel da utopia e da nostalgia românticas na crítica marxista ao neoliberalismo? O pensamento de Marx articula os dois momentos. A nostalgia romântica, isto é, a crítica ao presente tomando por base valores do passado, se manifesta quando ele afirma, por exemplo, que, no capitalismo, a dignidade humana se tornou uma mercadoria, e implicitamente reconhece que houve épocas em que isso era diferente. Em seu aspecto utópico, faz uma crítica do presente em nome de um futuro possível, em que o presente aparece como política, social e moralmente inaceitável. Acho que esses dois elementos estão presentes, em proporções diversas, em qualquer movimento de contestação da ordem estabelecida. Se tomarmos um movimento que hoje me parece importante, o movimento chamado altermundialismo, no qual estão presentes várias vertentes da esquerda, veremos o aspecto da nostalgia nas questões ecológicas e indígenas, na ideia de que temos algo a aprender com os que têm valores que não o da mercadoria e do lucro, e que têm a capacidade de viver em harmonia com a natureza. Como você explica que a humanidade pareça cruzar os braços diante da aproximação da catástrofe ecológica? O sistema funciona com sua lógica própria, independentemente das decisões boas ou ruins das pessoas: há uma regra de ferro, ou melhor, de aço, para usar a fórmula de Max Weber, que se impõe sobre as vidas dos membros de todas as classes sociais. O sistema é impessoal, move-se de maneira autônoma, desencadeia crises, desemprego e desastres ecológicos que não são fruto de decisões, mas resultado de um movimento que nutre a si mesmo, que ninguém controla. E a crise presente é uma ilustração dessa impossibilidade de controle. A tradição judaica tem esta metáfora do Golem, um monstro que foi criado por um rabino para proteger a comunidade de Praga, que acaba ganhando vida própria, escapando do controle e se voltando contra os seus criadores. Acho uma metáfora muito pertinente para a catástrofe ecológica que se aproxima.Além da crise econômica, a Europa vive uma crise cultural profunda. Seus parâmetros civilizatórios estão outra vez em xeque?O que mais me preocupa na Europa é o desenvolvimento exponencial de correntes xenofóbicas, fundadas no ódio ao outro, e de movimentos racistas, em alguns casos diretamente inspirados pelo nazi-fascismo. Na França, temos a Frente Nacional, que representa quase 8% do eleitorado. O mesmo se passa na Bélgica. Na Áustria, é pior ainda. O objeto dessas tendências racistas eram, tradicionalmente, os judeus. Hoje são, por exemplo, os ciganos e os africanos. Temos também o exemplo da Grécia, onde um partido que se declara abertamente neonazista, e faz do antissemitismo uma de suas principais bandeiras, está triunfando. De outro lado, há um questionamento interessante que reflete sobre o projeto europeu de civilização, tomando como ponto de partida a crise ecológica. É uma tendência que avalia que o simples crescimento não será solução para a crise contemporânea, pois só agrava os problemas ambientais e não os resolve. Assim, é preciso pensar no decrescimento ou no ecossocialismo. Já está em busca de novos paradigmas."

LUIS S. KRAUSZA vasta obra de Michael Löwy, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, caracteriza-se pelo interesse pelo pensamento libertário, e pela amplitude de seus direcionamentos, que vão de Marx ao Surrealismo, passando pela filosofia de pensadores como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Gershom Scholem. Nascido em São Paulo em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena, Löwy formou-se pela USP e concluiu seu doutorado em Paris, com uma tese sobre o jovem Marx, orientado por Lucien Goldmann. Posteriormente tornou-se assistente de Nicos Poulantzas, na Universidade de Paris VIII. Em São Paulo, onde esteve recentemente para ministrar um curso na USP, ele lançou Judeus Heterodoxos: Messianismo, Romantismo, Utopia, em que aborda, sob o prisma das influências mútuas, o pensamento libertário judaico-alemão do século 20. Ao mesmo tempo, chegou às livrarias a nova edição do seu A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Em entrevista ao Sabático, Löwy falou sobre as duas obras e suas ideias. Acompanhe.Seu novo livro mapeia a confluência entre cultura alemã e tradição judaica, que formou uma das vertentes mais interessantes do humanismo europeu do século 20. Para onde vai esta vertente?Não faço aqui um mapeamento - isto tentei fazer em meu livro anterior, Redenção e Utopia. Trata-se, agora, de uma espécie de "canteiro de obras'' em que reuni ensaios sobre autores desta configuração cujas obras analiso a partir do ponto de vista da comparação e das influências mútuas. Martin Buber, Gershom Scholem, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Ernst Bloch e outros constituem esse universo do judaísmo de cultura alemã do começo do século 20, brutalmente interrompido pelo nazismo e hoje um continente desaparecido. Essa vertente específica, messiânica e romântica da cultura judaico-alemã é heterodoxa, distante dos cânones da ortodoxia - da ortodoxia religiosa, obviamente, mas também da ortodoxia liberal burguesa, que era uma outra ortodoxia judaico-alemã. Há hoje interesse pela cultura judaico-alemã, e não só no mundo acadêmico: é uma forma de se revisitar esta tradição. E meu trabalho é isto, uma revisita.Alguns desses pensadores têm hoje influência mundial, como Walter Benjamin, que via a história como um pesadelo. No que consiste o pesadelo da história?Walter Benjamin via o curso da história como uma sucessão de catástrofes porque a enxergava do ponto de vista das vítimas dos processos históricos - os camponeses, os escravos, os proletários, etc. Essa sucessão de catástrofes vai fazendo uma pilha de escombros. Ele escreve isto em 1940, em suas Teses Sobre o Conceito de História, e o faz de maneira profética, quando estão prestes a acrescentar-se a esses escombros os de Auschwitz e Hiroshima. Mas há também os sonhos: utopias emancipatórias, que ajudam as pessoas a despertarem do pesadelo. E para que haja este despertar, é preciso que as pessoas se libertem de uma espécie de ópio do povo que, para Benjamin, é a ideologia do progresso, segundo a qual basta deixar o rio correr para que tudo se encaminhe em direção a um amanhecer glorioso da humanidade.Seu livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx, que acaba de ser reeditado, reflete sobre a crise das ideologias hoje?A ideologia do neoliberalismo vai muito bem; é um discurso dominante, com uma influência tremenda, planetária. Quanto ao pensamento marxista, eu não classifico como ideologia e sim como utopia, no sentido do conceito sociológico de utopia em Karl Mannheim: conjunto de representações que tem uma função subversiva em relação à realidade social. A utopia marxista passou a sofrer questionamentos crescentes a partir da queda do Muro de Berlim. Mas quando isso aconteceu, já havia bastante gente no campo do marxismo que não aceitava a identificação entre o socialismo real e as ideias de Marx. Havia um consenso entre os adversários do marxismo, que apontavam para a União Soviética e diziam: "Isto é a aplicação do marxismo". E que, com a crise do bloco soviético, proclamaram: "Agora acabou o socialismo, e agora acabou o marxismo". A opinião dissidente, que dissociava o marxismo do socialismo soviético, minoritária até 1989, fortaleceu-se, pois via o chamado socialismo real como uma ideologia, isto é, uma construção doutrinária a serviço da manutenção de uma ordem. Há, portanto, um retorno no interesse por Marx, mas é claro que não se trata de uma repetição ritual daquilo que ele escreveu e sim de uma reflexão nova. Qual é o papel da utopia e da nostalgia românticas na crítica marxista ao neoliberalismo? O pensamento de Marx articula os dois momentos. A nostalgia romântica, isto é, a crítica ao presente tomando por base valores do passado, se manifesta quando ele afirma, por exemplo, que, no capitalismo, a dignidade humana se tornou uma mercadoria, e implicitamente reconhece que houve épocas em que isso era diferente. Em seu aspecto utópico, faz uma crítica do presente em nome de um futuro possível, em que o presente aparece como política, social e moralmente inaceitável. Acho que esses dois elementos estão presentes, em proporções diversas, em qualquer movimento de contestação da ordem estabelecida. Se tomarmos um movimento que hoje me parece importante, o movimento chamado altermundialismo, no qual estão presentes várias vertentes da esquerda, veremos o aspecto da nostalgia nas questões ecológicas e indígenas, na ideia de que temos algo a aprender com os que têm valores que não o da mercadoria e do lucro, e que têm a capacidade de viver em harmonia com a natureza. Como você explica que a humanidade pareça cruzar os braços diante da aproximação da catástrofe ecológica? O sistema funciona com sua lógica própria, independentemente das decisões boas ou ruins das pessoas: há uma regra de ferro, ou melhor, de aço, para usar a fórmula de Max Weber, que se impõe sobre as vidas dos membros de todas as classes sociais. O sistema é impessoal, move-se de maneira autônoma, desencadeia crises, desemprego e desastres ecológicos que não são fruto de decisões, mas resultado de um movimento que nutre a si mesmo, que ninguém controla. E a crise presente é uma ilustração dessa impossibilidade de controle. A tradição judaica tem esta metáfora do Golem, um monstro que foi criado por um rabino para proteger a comunidade de Praga, que acaba ganhando vida própria, escapando do controle e se voltando contra os seus criadores. Acho uma metáfora muito pertinente para a catástrofe ecológica que se aproxima.Além da crise econômica, a Europa vive uma crise cultural profunda. Seus parâmetros civilizatórios estão outra vez em xeque?O que mais me preocupa na Europa é o desenvolvimento exponencial de correntes xenofóbicas, fundadas no ódio ao outro, e de movimentos racistas, em alguns casos diretamente inspirados pelo nazi-fascismo. Na França, temos a Frente Nacional, que representa quase 8% do eleitorado. O mesmo se passa na Bélgica. Na Áustria, é pior ainda. O objeto dessas tendências racistas eram, tradicionalmente, os judeus. Hoje são, por exemplo, os ciganos e os africanos. Temos também o exemplo da Grécia, onde um partido que se declara abertamente neonazista, e faz do antissemitismo uma de suas principais bandeiras, está triunfando. De outro lado, há um questionamento interessante que reflete sobre o projeto europeu de civilização, tomando como ponto de partida a crise ecológica. É uma tendência que avalia que o simples crescimento não será solução para a crise contemporânea, pois só agrava os problemas ambientais e não os resolve. Assim, é preciso pensar no decrescimento ou no ecossocialismo. Já está em busca de novos paradigmas."

LUIS S. KRAUSZA vasta obra de Michael Löwy, diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique de Paris, caracteriza-se pelo interesse pelo pensamento libertário, e pela amplitude de seus direcionamentos, que vão de Marx ao Surrealismo, passando pela filosofia de pensadores como Hannah Arendt, Walter Benjamin e Gershom Scholem. Nascido em São Paulo em 1938, filho de imigrantes judeus de Viena, Löwy formou-se pela USP e concluiu seu doutorado em Paris, com uma tese sobre o jovem Marx, orientado por Lucien Goldmann. Posteriormente tornou-se assistente de Nicos Poulantzas, na Universidade de Paris VIII. Em São Paulo, onde esteve recentemente para ministrar um curso na USP, ele lançou Judeus Heterodoxos: Messianismo, Romantismo, Utopia, em que aborda, sob o prisma das influências mútuas, o pensamento libertário judaico-alemão do século 20. Ao mesmo tempo, chegou às livrarias a nova edição do seu A Teoria da Revolução no Jovem Marx. Em entrevista ao Sabático, Löwy falou sobre as duas obras e suas ideias. Acompanhe.Seu novo livro mapeia a confluência entre cultura alemã e tradição judaica, que formou uma das vertentes mais interessantes do humanismo europeu do século 20. Para onde vai esta vertente?Não faço aqui um mapeamento - isto tentei fazer em meu livro anterior, Redenção e Utopia. Trata-se, agora, de uma espécie de "canteiro de obras'' em que reuni ensaios sobre autores desta configuração cujas obras analiso a partir do ponto de vista da comparação e das influências mútuas. Martin Buber, Gershom Scholem, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Ernst Bloch e outros constituem esse universo do judaísmo de cultura alemã do começo do século 20, brutalmente interrompido pelo nazismo e hoje um continente desaparecido. Essa vertente específica, messiânica e romântica da cultura judaico-alemã é heterodoxa, distante dos cânones da ortodoxia - da ortodoxia religiosa, obviamente, mas também da ortodoxia liberal burguesa, que era uma outra ortodoxia judaico-alemã. Há hoje interesse pela cultura judaico-alemã, e não só no mundo acadêmico: é uma forma de se revisitar esta tradição. E meu trabalho é isto, uma revisita.Alguns desses pensadores têm hoje influência mundial, como Walter Benjamin, que via a história como um pesadelo. No que consiste o pesadelo da história?Walter Benjamin via o curso da história como uma sucessão de catástrofes porque a enxergava do ponto de vista das vítimas dos processos históricos - os camponeses, os escravos, os proletários, etc. Essa sucessão de catástrofes vai fazendo uma pilha de escombros. Ele escreve isto em 1940, em suas Teses Sobre o Conceito de História, e o faz de maneira profética, quando estão prestes a acrescentar-se a esses escombros os de Auschwitz e Hiroshima. Mas há também os sonhos: utopias emancipatórias, que ajudam as pessoas a despertarem do pesadelo. E para que haja este despertar, é preciso que as pessoas se libertem de uma espécie de ópio do povo que, para Benjamin, é a ideologia do progresso, segundo a qual basta deixar o rio correr para que tudo se encaminhe em direção a um amanhecer glorioso da humanidade.Seu livro A Teoria da Revolução no Jovem Marx, que acaba de ser reeditado, reflete sobre a crise das ideologias hoje?A ideologia do neoliberalismo vai muito bem; é um discurso dominante, com uma influência tremenda, planetária. Quanto ao pensamento marxista, eu não classifico como ideologia e sim como utopia, no sentido do conceito sociológico de utopia em Karl Mannheim: conjunto de representações que tem uma função subversiva em relação à realidade social. A utopia marxista passou a sofrer questionamentos crescentes a partir da queda do Muro de Berlim. Mas quando isso aconteceu, já havia bastante gente no campo do marxismo que não aceitava a identificação entre o socialismo real e as ideias de Marx. Havia um consenso entre os adversários do marxismo, que apontavam para a União Soviética e diziam: "Isto é a aplicação do marxismo". E que, com a crise do bloco soviético, proclamaram: "Agora acabou o socialismo, e agora acabou o marxismo". A opinião dissidente, que dissociava o marxismo do socialismo soviético, minoritária até 1989, fortaleceu-se, pois via o chamado socialismo real como uma ideologia, isto é, uma construção doutrinária a serviço da manutenção de uma ordem. Há, portanto, um retorno no interesse por Marx, mas é claro que não se trata de uma repetição ritual daquilo que ele escreveu e sim de uma reflexão nova. Qual é o papel da utopia e da nostalgia românticas na crítica marxista ao neoliberalismo? O pensamento de Marx articula os dois momentos. A nostalgia romântica, isto é, a crítica ao presente tomando por base valores do passado, se manifesta quando ele afirma, por exemplo, que, no capitalismo, a dignidade humana se tornou uma mercadoria, e implicitamente reconhece que houve épocas em que isso era diferente. Em seu aspecto utópico, faz uma crítica do presente em nome de um futuro possível, em que o presente aparece como política, social e moralmente inaceitável. Acho que esses dois elementos estão presentes, em proporções diversas, em qualquer movimento de contestação da ordem estabelecida. Se tomarmos um movimento que hoje me parece importante, o movimento chamado altermundialismo, no qual estão presentes várias vertentes da esquerda, veremos o aspecto da nostalgia nas questões ecológicas e indígenas, na ideia de que temos algo a aprender com os que têm valores que não o da mercadoria e do lucro, e que têm a capacidade de viver em harmonia com a natureza. Como você explica que a humanidade pareça cruzar os braços diante da aproximação da catástrofe ecológica? O sistema funciona com sua lógica própria, independentemente das decisões boas ou ruins das pessoas: há uma regra de ferro, ou melhor, de aço, para usar a fórmula de Max Weber, que se impõe sobre as vidas dos membros de todas as classes sociais. O sistema é impessoal, move-se de maneira autônoma, desencadeia crises, desemprego e desastres ecológicos que não são fruto de decisões, mas resultado de um movimento que nutre a si mesmo, que ninguém controla. E a crise presente é uma ilustração dessa impossibilidade de controle. A tradição judaica tem esta metáfora do Golem, um monstro que foi criado por um rabino para proteger a comunidade de Praga, que acaba ganhando vida própria, escapando do controle e se voltando contra os seus criadores. Acho uma metáfora muito pertinente para a catástrofe ecológica que se aproxima.Além da crise econômica, a Europa vive uma crise cultural profunda. Seus parâmetros civilizatórios estão outra vez em xeque?O que mais me preocupa na Europa é o desenvolvimento exponencial de correntes xenofóbicas, fundadas no ódio ao outro, e de movimentos racistas, em alguns casos diretamente inspirados pelo nazi-fascismo. Na França, temos a Frente Nacional, que representa quase 8% do eleitorado. O mesmo se passa na Bélgica. Na Áustria, é pior ainda. O objeto dessas tendências racistas eram, tradicionalmente, os judeus. Hoje são, por exemplo, os ciganos e os africanos. Temos também o exemplo da Grécia, onde um partido que se declara abertamente neonazista, e faz do antissemitismo uma de suas principais bandeiras, está triunfando. De outro lado, há um questionamento interessante que reflete sobre o projeto europeu de civilização, tomando como ponto de partida a crise ecológica. É uma tendência que avalia que o simples crescimento não será solução para a crise contemporânea, pois só agrava os problemas ambientais e não os resolve. Assim, é preciso pensar no decrescimento ou no ecossocialismo. Já está em busca de novos paradigmas."

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