Como apostas em tecnologia, mídia e estratégia têm ajudado ativistas a salvar os animais


No Brasil, estima-se que 38 milhões de animais são retirados da natureza todos os anos. E, de cada 20 capturados, apenas um é resgatado

Por André Caramuru Aubert

Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips e o genocídio dos Yanomamis representam bem mais do que uma trágica falência operacional do Estado brasileiro. Os dois eventos, genuinamente nacionais, não são, porém, exceções globais. Em reação a esse tipo de crime, o planeta assistiu, nos últimos anos, a uma avalanche de debates e iniciativas direcionadas à proteção da flora, da fauna, dos povos originários. Não que os debates tenham gerado unanimidade ou que as iniciativas tenham sido necessariamente positivas; o fato é que muita coisa foi falada e feita, enquanto o Brasil ficava à margem do debate, mas não, é óbvio, dos problemas.

Em Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade (Segurança e Preservação: A Política do Comércio Ilegal de Animais Selvagens), livro publicado pela Yale University Press, a pesquisadora britânica Rosaleen Duffy analisa as transformações, em anos recentes, da abordagem global diante das ameaças à biodiversidade. A maioria dos países aceitou, há algum tempo, que a situação ambiental é crítica e que crimes contra o meio ambiente são graves em si, e não apenas porque eventualmente prejudiquem seres humanos.

Rinocerontes pastando na África do Sul Foto: Luiz Paulo Lima/Estadão
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Nas últimas décadas, cresceu a demanda por recursos naturais, de minerais a madeira e, também, por animais selvagens (vivos ou mortos). Neste último caso, o maior impacto foi sentido na África, onde houve um gigantesco declínio no número de elefantes, mortos por causa do marfim, usado para joias, esculturas e peças de decoração. Somente na década de 1980, a população de elefantes selvagens africanos encolheu de um milhão para a metade disso. Quanto aos rinocerontes, o que se cobiça são os chifres, usados em esculturas e na medicina tradicional asiática. Somente no Parque Kruger, na África do Sul (um dos mais protegidos), chegou a haver uma redução de 70% na população de rinocerontes.

No Brasil, onde a situação não é muito melhor, estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos. E, de cada 20 capturados, apenas um é resgatado. A ararinha-azul, por exemplo, foi extinta na natureza no ano 2000, restando uns 200 e poucos indivíduos em cativeiro. Para completar, os crimes ambientais estão relacionados ao tráfico de drogas, ao crime organizado internacional, à lavagem de dinheiro (os chamados “crimes do colarinho verde”), e ao financiamento de grupos terroristas, como o Al-Shabaab, filial da Al-Qaeda na Somália, e o Boko Haram, o grupo que sequestrou 276 meninas em uma escola nigeriana em 2014.

O alerta global para a preservação da vida selvagem se tornou ainda mais urgente após a pandemia da covid, diante da forte hipótese de que a doença teria começado na China a partir de animais selvagens vendidos em mercados urbanos – uma prática que já havia sido motivo de alarme em meados da década de 1990, com a epidemia do ebola, na África Central, e foi reforçada há poucas semanas, após a notificação, na Guiné Equatorial, de um surto do igualmente letal vírus de Marburg.

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No Brasil estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos

O principal efeito da mudança global de percepção sobre a urgência da preservação da vida selvagem talvez esteja no desembarque das instâncias de segurança militar, tanto estatais quanto privadas, no campo – literalmente – de batalha. O foco anterior, em reeducação e integração das comunidades locais no esforço de preservação, tem sido mais e mais complementado pela militarização, com o uso de aparatos estatais e privados.

O fato é que, com implicações ora positivas, ora nem tanto, cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento por satélite, cruzamento e análise de dados. Junto a isso tem havido o envolvimento cada vez maior de forças policiais e militares, com cooperação em escalas nacional, regional e global, e um processo em que guardas florestais têm sido armados e treinados para combate real. Um sinal das mudanças está na proliferação de órgãos governamentais, internacionais e de organizações filantrópicas ligadas ao tema, que se contam às dezenas.

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Elefantes na unidade de Conservação Transfronteiriça Kavango Zambezi (KAZA)  Foto: Helge Denker/WWF

De um jeito ou de outro, há o consenso de que, só na base da conversa, a preservação não se sustenta. Como disse Luis Arranz, gerente da ONG WWF no parque Dzanga-Sangha, na República Centro-Africana: “Eu preciso de armas para proteger as pessoas que protegem os elefantes. Se toparem com caçadores, e estiverem desarmadas, elas morrem”. Não há exagero aí. Levantamento de alguns organismos, entre os quais a WWF, estimou em 2014 que, a cada ano, cerca de cem guardas florestais e ativistas ambientais eram assassinados no mundo. Nada indica que esses números tenham melhorado desde então.

A militarização da defesa do meio ambiente também traz problemas. Em alguns casos, a violência apenas troca de lado, passando das mãos dos traficantes e garimpeiros para as de quem os combate. Há relatos, na África, de guardas florestais, agora pesadamente armados, cometendo crimes (incluindo estupros) contra as populações locais. E eles às vezes não aceitam o fato de que as populações tradicionais sempre caçaram e cortaram árvores de maneira sustentável, tratando-as como traficantes.

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Um outro aspecto da mudança de abordagem das questões ambientais está na chegada do capital privado, seja no incentivo a empresas “ambientalmente responsáveis”, seja em negócios como a venda de créditos de carbono, seja na privatização de parques para a exploração de ecoturismo. Esta última, em particular, tem despertado bastante polêmica. Afinal, o melhor, para uma área de preservação, é que ela seja simplesmente... preservada; sem trilhas, pousadas ou restaurantes, com o mínimo de presença humana. Por outro lado, na prática sabemos que aos governos costumam faltar recursos e vontade política para a conservação de áreas protegidas, e que a alternância no poder pode representar interrupção de políticas, como pudemos testemunhar no Brasil dos anos recentes.

Cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento

No Brasil, país que ainda confunde áreas rurais não desmatadas com terras improdutivas – com absurda incidência tributária maior –, a possibilidade de se ganhar dinheiro mantendo as árvores em seus lugares pode ser bastante promissora. Isso é chamado de “capitalismo verde” e, também, de “conservacionismo neoliberal”. O argumento, no caso, de que a melhor maneira de proteger a vida selvagem é lucrando com ela.

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Grandes empresas globais, como Disney, Starbucks e Coca-Cola, cada vez mais se envolvem no financiamento de ações ambientais. Celebridades que já gostavam de se associar a causas humanitárias passaram a incluir as agendas ambientais em seus projetos. Desde que Al Gore produziu e estrelou o documentário Uma Verdade Inconveniente, em 2006, a lista só fez crescer, incluindo Gisele Bündchen como embaixadora do meio ambiente da ONU e Leonardo DiCaprio se envolvendo, com a Netflix, na produção do filme Virunga, sobre a luta pela preservação dos animais no parque do mesmo nome, na República Democrática do Congo.

A luta pela preservação da vida selvagem costumava ser uma agenda das esquerdas e, até mesmo, de idealistas quixotescos. Não mais. Em função da emergência imposta pelas mudanças climáticas e pela iminente possibilidade de extinção de espécies carismáticas como elefantes, rinocerontes e tigres (ninguém liga muito para o desaparecimento de alguma rã numa região remota da Amazônia), o grande capital e os países ricos abraçaram definitivamente a causa. Os resultados não têm sido muito animadores; no Parque Kruger, por exemplo, onde centenas de caçadores têm sido presos e condenados, a queda na população de rinocerontes continua firme, ainda que com índices ligeiramente melhores.

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Em 2021, no Parque Virunga, até mesmo o embaixador italiano no Congo, Luca Attanasio, foi assassinado, quando estava em missão humanitária da ONU – criminosos emboscaram o comboio em que ele viajava. Mas a radicalização das ações de proteção, por vezes armada, parece inevitável, mesmo sem garantia de sucesso. Como atesta, aliás, o caso recente dos Yanomamis, resgatados emergencialmente do genocídio por uma ação conjunta de órgãos estatais, incluindo forças militares; se a ação inicial pareceu bem-sucedida, só o tempo dirá se as comunidades indígenas conseguirão sobreviver às investidas do garimpo ilegal.

Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade

Autora: Rosaleen Duffy

Editora: Yale University Press

304 págs., US$ 35

US$ 32,50 (e-book)

Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips e o genocídio dos Yanomamis representam bem mais do que uma trágica falência operacional do Estado brasileiro. Os dois eventos, genuinamente nacionais, não são, porém, exceções globais. Em reação a esse tipo de crime, o planeta assistiu, nos últimos anos, a uma avalanche de debates e iniciativas direcionadas à proteção da flora, da fauna, dos povos originários. Não que os debates tenham gerado unanimidade ou que as iniciativas tenham sido necessariamente positivas; o fato é que muita coisa foi falada e feita, enquanto o Brasil ficava à margem do debate, mas não, é óbvio, dos problemas.

Em Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade (Segurança e Preservação: A Política do Comércio Ilegal de Animais Selvagens), livro publicado pela Yale University Press, a pesquisadora britânica Rosaleen Duffy analisa as transformações, em anos recentes, da abordagem global diante das ameaças à biodiversidade. A maioria dos países aceitou, há algum tempo, que a situação ambiental é crítica e que crimes contra o meio ambiente são graves em si, e não apenas porque eventualmente prejudiquem seres humanos.

Rinocerontes pastando na África do Sul Foto: Luiz Paulo Lima/Estadão

Nas últimas décadas, cresceu a demanda por recursos naturais, de minerais a madeira e, também, por animais selvagens (vivos ou mortos). Neste último caso, o maior impacto foi sentido na África, onde houve um gigantesco declínio no número de elefantes, mortos por causa do marfim, usado para joias, esculturas e peças de decoração. Somente na década de 1980, a população de elefantes selvagens africanos encolheu de um milhão para a metade disso. Quanto aos rinocerontes, o que se cobiça são os chifres, usados em esculturas e na medicina tradicional asiática. Somente no Parque Kruger, na África do Sul (um dos mais protegidos), chegou a haver uma redução de 70% na população de rinocerontes.

No Brasil, onde a situação não é muito melhor, estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos. E, de cada 20 capturados, apenas um é resgatado. A ararinha-azul, por exemplo, foi extinta na natureza no ano 2000, restando uns 200 e poucos indivíduos em cativeiro. Para completar, os crimes ambientais estão relacionados ao tráfico de drogas, ao crime organizado internacional, à lavagem de dinheiro (os chamados “crimes do colarinho verde”), e ao financiamento de grupos terroristas, como o Al-Shabaab, filial da Al-Qaeda na Somália, e o Boko Haram, o grupo que sequestrou 276 meninas em uma escola nigeriana em 2014.

O alerta global para a preservação da vida selvagem se tornou ainda mais urgente após a pandemia da covid, diante da forte hipótese de que a doença teria começado na China a partir de animais selvagens vendidos em mercados urbanos – uma prática que já havia sido motivo de alarme em meados da década de 1990, com a epidemia do ebola, na África Central, e foi reforçada há poucas semanas, após a notificação, na Guiné Equatorial, de um surto do igualmente letal vírus de Marburg.

No Brasil estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos

O principal efeito da mudança global de percepção sobre a urgência da preservação da vida selvagem talvez esteja no desembarque das instâncias de segurança militar, tanto estatais quanto privadas, no campo – literalmente – de batalha. O foco anterior, em reeducação e integração das comunidades locais no esforço de preservação, tem sido mais e mais complementado pela militarização, com o uso de aparatos estatais e privados.

O fato é que, com implicações ora positivas, ora nem tanto, cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento por satélite, cruzamento e análise de dados. Junto a isso tem havido o envolvimento cada vez maior de forças policiais e militares, com cooperação em escalas nacional, regional e global, e um processo em que guardas florestais têm sido armados e treinados para combate real. Um sinal das mudanças está na proliferação de órgãos governamentais, internacionais e de organizações filantrópicas ligadas ao tema, que se contam às dezenas.

Elefantes na unidade de Conservação Transfronteiriça Kavango Zambezi (KAZA)  Foto: Helge Denker/WWF

De um jeito ou de outro, há o consenso de que, só na base da conversa, a preservação não se sustenta. Como disse Luis Arranz, gerente da ONG WWF no parque Dzanga-Sangha, na República Centro-Africana: “Eu preciso de armas para proteger as pessoas que protegem os elefantes. Se toparem com caçadores, e estiverem desarmadas, elas morrem”. Não há exagero aí. Levantamento de alguns organismos, entre os quais a WWF, estimou em 2014 que, a cada ano, cerca de cem guardas florestais e ativistas ambientais eram assassinados no mundo. Nada indica que esses números tenham melhorado desde então.

A militarização da defesa do meio ambiente também traz problemas. Em alguns casos, a violência apenas troca de lado, passando das mãos dos traficantes e garimpeiros para as de quem os combate. Há relatos, na África, de guardas florestais, agora pesadamente armados, cometendo crimes (incluindo estupros) contra as populações locais. E eles às vezes não aceitam o fato de que as populações tradicionais sempre caçaram e cortaram árvores de maneira sustentável, tratando-as como traficantes.

Um outro aspecto da mudança de abordagem das questões ambientais está na chegada do capital privado, seja no incentivo a empresas “ambientalmente responsáveis”, seja em negócios como a venda de créditos de carbono, seja na privatização de parques para a exploração de ecoturismo. Esta última, em particular, tem despertado bastante polêmica. Afinal, o melhor, para uma área de preservação, é que ela seja simplesmente... preservada; sem trilhas, pousadas ou restaurantes, com o mínimo de presença humana. Por outro lado, na prática sabemos que aos governos costumam faltar recursos e vontade política para a conservação de áreas protegidas, e que a alternância no poder pode representar interrupção de políticas, como pudemos testemunhar no Brasil dos anos recentes.

Cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento

No Brasil, país que ainda confunde áreas rurais não desmatadas com terras improdutivas – com absurda incidência tributária maior –, a possibilidade de se ganhar dinheiro mantendo as árvores em seus lugares pode ser bastante promissora. Isso é chamado de “capitalismo verde” e, também, de “conservacionismo neoliberal”. O argumento, no caso, de que a melhor maneira de proteger a vida selvagem é lucrando com ela.

Grandes empresas globais, como Disney, Starbucks e Coca-Cola, cada vez mais se envolvem no financiamento de ações ambientais. Celebridades que já gostavam de se associar a causas humanitárias passaram a incluir as agendas ambientais em seus projetos. Desde que Al Gore produziu e estrelou o documentário Uma Verdade Inconveniente, em 2006, a lista só fez crescer, incluindo Gisele Bündchen como embaixadora do meio ambiente da ONU e Leonardo DiCaprio se envolvendo, com a Netflix, na produção do filme Virunga, sobre a luta pela preservação dos animais no parque do mesmo nome, na República Democrática do Congo.

A luta pela preservação da vida selvagem costumava ser uma agenda das esquerdas e, até mesmo, de idealistas quixotescos. Não mais. Em função da emergência imposta pelas mudanças climáticas e pela iminente possibilidade de extinção de espécies carismáticas como elefantes, rinocerontes e tigres (ninguém liga muito para o desaparecimento de alguma rã numa região remota da Amazônia), o grande capital e os países ricos abraçaram definitivamente a causa. Os resultados não têm sido muito animadores; no Parque Kruger, por exemplo, onde centenas de caçadores têm sido presos e condenados, a queda na população de rinocerontes continua firme, ainda que com índices ligeiramente melhores.

Em 2021, no Parque Virunga, até mesmo o embaixador italiano no Congo, Luca Attanasio, foi assassinado, quando estava em missão humanitária da ONU – criminosos emboscaram o comboio em que ele viajava. Mas a radicalização das ações de proteção, por vezes armada, parece inevitável, mesmo sem garantia de sucesso. Como atesta, aliás, o caso recente dos Yanomamis, resgatados emergencialmente do genocídio por uma ação conjunta de órgãos estatais, incluindo forças militares; se a ação inicial pareceu bem-sucedida, só o tempo dirá se as comunidades indígenas conseguirão sobreviver às investidas do garimpo ilegal.

Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade

Autora: Rosaleen Duffy

Editora: Yale University Press

304 págs., US$ 35

US$ 32,50 (e-book)

Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips e o genocídio dos Yanomamis representam bem mais do que uma trágica falência operacional do Estado brasileiro. Os dois eventos, genuinamente nacionais, não são, porém, exceções globais. Em reação a esse tipo de crime, o planeta assistiu, nos últimos anos, a uma avalanche de debates e iniciativas direcionadas à proteção da flora, da fauna, dos povos originários. Não que os debates tenham gerado unanimidade ou que as iniciativas tenham sido necessariamente positivas; o fato é que muita coisa foi falada e feita, enquanto o Brasil ficava à margem do debate, mas não, é óbvio, dos problemas.

Em Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade (Segurança e Preservação: A Política do Comércio Ilegal de Animais Selvagens), livro publicado pela Yale University Press, a pesquisadora britânica Rosaleen Duffy analisa as transformações, em anos recentes, da abordagem global diante das ameaças à biodiversidade. A maioria dos países aceitou, há algum tempo, que a situação ambiental é crítica e que crimes contra o meio ambiente são graves em si, e não apenas porque eventualmente prejudiquem seres humanos.

Rinocerontes pastando na África do Sul Foto: Luiz Paulo Lima/Estadão

Nas últimas décadas, cresceu a demanda por recursos naturais, de minerais a madeira e, também, por animais selvagens (vivos ou mortos). Neste último caso, o maior impacto foi sentido na África, onde houve um gigantesco declínio no número de elefantes, mortos por causa do marfim, usado para joias, esculturas e peças de decoração. Somente na década de 1980, a população de elefantes selvagens africanos encolheu de um milhão para a metade disso. Quanto aos rinocerontes, o que se cobiça são os chifres, usados em esculturas e na medicina tradicional asiática. Somente no Parque Kruger, na África do Sul (um dos mais protegidos), chegou a haver uma redução de 70% na população de rinocerontes.

No Brasil, onde a situação não é muito melhor, estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos. E, de cada 20 capturados, apenas um é resgatado. A ararinha-azul, por exemplo, foi extinta na natureza no ano 2000, restando uns 200 e poucos indivíduos em cativeiro. Para completar, os crimes ambientais estão relacionados ao tráfico de drogas, ao crime organizado internacional, à lavagem de dinheiro (os chamados “crimes do colarinho verde”), e ao financiamento de grupos terroristas, como o Al-Shabaab, filial da Al-Qaeda na Somália, e o Boko Haram, o grupo que sequestrou 276 meninas em uma escola nigeriana em 2014.

O alerta global para a preservação da vida selvagem se tornou ainda mais urgente após a pandemia da covid, diante da forte hipótese de que a doença teria começado na China a partir de animais selvagens vendidos em mercados urbanos – uma prática que já havia sido motivo de alarme em meados da década de 1990, com a epidemia do ebola, na África Central, e foi reforçada há poucas semanas, após a notificação, na Guiné Equatorial, de um surto do igualmente letal vírus de Marburg.

No Brasil estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos

O principal efeito da mudança global de percepção sobre a urgência da preservação da vida selvagem talvez esteja no desembarque das instâncias de segurança militar, tanto estatais quanto privadas, no campo – literalmente – de batalha. O foco anterior, em reeducação e integração das comunidades locais no esforço de preservação, tem sido mais e mais complementado pela militarização, com o uso de aparatos estatais e privados.

O fato é que, com implicações ora positivas, ora nem tanto, cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento por satélite, cruzamento e análise de dados. Junto a isso tem havido o envolvimento cada vez maior de forças policiais e militares, com cooperação em escalas nacional, regional e global, e um processo em que guardas florestais têm sido armados e treinados para combate real. Um sinal das mudanças está na proliferação de órgãos governamentais, internacionais e de organizações filantrópicas ligadas ao tema, que se contam às dezenas.

Elefantes na unidade de Conservação Transfronteiriça Kavango Zambezi (KAZA)  Foto: Helge Denker/WWF

De um jeito ou de outro, há o consenso de que, só na base da conversa, a preservação não se sustenta. Como disse Luis Arranz, gerente da ONG WWF no parque Dzanga-Sangha, na República Centro-Africana: “Eu preciso de armas para proteger as pessoas que protegem os elefantes. Se toparem com caçadores, e estiverem desarmadas, elas morrem”. Não há exagero aí. Levantamento de alguns organismos, entre os quais a WWF, estimou em 2014 que, a cada ano, cerca de cem guardas florestais e ativistas ambientais eram assassinados no mundo. Nada indica que esses números tenham melhorado desde então.

A militarização da defesa do meio ambiente também traz problemas. Em alguns casos, a violência apenas troca de lado, passando das mãos dos traficantes e garimpeiros para as de quem os combate. Há relatos, na África, de guardas florestais, agora pesadamente armados, cometendo crimes (incluindo estupros) contra as populações locais. E eles às vezes não aceitam o fato de que as populações tradicionais sempre caçaram e cortaram árvores de maneira sustentável, tratando-as como traficantes.

Um outro aspecto da mudança de abordagem das questões ambientais está na chegada do capital privado, seja no incentivo a empresas “ambientalmente responsáveis”, seja em negócios como a venda de créditos de carbono, seja na privatização de parques para a exploração de ecoturismo. Esta última, em particular, tem despertado bastante polêmica. Afinal, o melhor, para uma área de preservação, é que ela seja simplesmente... preservada; sem trilhas, pousadas ou restaurantes, com o mínimo de presença humana. Por outro lado, na prática sabemos que aos governos costumam faltar recursos e vontade política para a conservação de áreas protegidas, e que a alternância no poder pode representar interrupção de políticas, como pudemos testemunhar no Brasil dos anos recentes.

Cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento

No Brasil, país que ainda confunde áreas rurais não desmatadas com terras improdutivas – com absurda incidência tributária maior –, a possibilidade de se ganhar dinheiro mantendo as árvores em seus lugares pode ser bastante promissora. Isso é chamado de “capitalismo verde” e, também, de “conservacionismo neoliberal”. O argumento, no caso, de que a melhor maneira de proteger a vida selvagem é lucrando com ela.

Grandes empresas globais, como Disney, Starbucks e Coca-Cola, cada vez mais se envolvem no financiamento de ações ambientais. Celebridades que já gostavam de se associar a causas humanitárias passaram a incluir as agendas ambientais em seus projetos. Desde que Al Gore produziu e estrelou o documentário Uma Verdade Inconveniente, em 2006, a lista só fez crescer, incluindo Gisele Bündchen como embaixadora do meio ambiente da ONU e Leonardo DiCaprio se envolvendo, com a Netflix, na produção do filme Virunga, sobre a luta pela preservação dos animais no parque do mesmo nome, na República Democrática do Congo.

A luta pela preservação da vida selvagem costumava ser uma agenda das esquerdas e, até mesmo, de idealistas quixotescos. Não mais. Em função da emergência imposta pelas mudanças climáticas e pela iminente possibilidade de extinção de espécies carismáticas como elefantes, rinocerontes e tigres (ninguém liga muito para o desaparecimento de alguma rã numa região remota da Amazônia), o grande capital e os países ricos abraçaram definitivamente a causa. Os resultados não têm sido muito animadores; no Parque Kruger, por exemplo, onde centenas de caçadores têm sido presos e condenados, a queda na população de rinocerontes continua firme, ainda que com índices ligeiramente melhores.

Em 2021, no Parque Virunga, até mesmo o embaixador italiano no Congo, Luca Attanasio, foi assassinado, quando estava em missão humanitária da ONU – criminosos emboscaram o comboio em que ele viajava. Mas a radicalização das ações de proteção, por vezes armada, parece inevitável, mesmo sem garantia de sucesso. Como atesta, aliás, o caso recente dos Yanomamis, resgatados emergencialmente do genocídio por uma ação conjunta de órgãos estatais, incluindo forças militares; se a ação inicial pareceu bem-sucedida, só o tempo dirá se as comunidades indígenas conseguirão sobreviver às investidas do garimpo ilegal.

Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade

Autora: Rosaleen Duffy

Editora: Yale University Press

304 págs., US$ 35

US$ 32,50 (e-book)

Os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips e o genocídio dos Yanomamis representam bem mais do que uma trágica falência operacional do Estado brasileiro. Os dois eventos, genuinamente nacionais, não são, porém, exceções globais. Em reação a esse tipo de crime, o planeta assistiu, nos últimos anos, a uma avalanche de debates e iniciativas direcionadas à proteção da flora, da fauna, dos povos originários. Não que os debates tenham gerado unanimidade ou que as iniciativas tenham sido necessariamente positivas; o fato é que muita coisa foi falada e feita, enquanto o Brasil ficava à margem do debate, mas não, é óbvio, dos problemas.

Em Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade (Segurança e Preservação: A Política do Comércio Ilegal de Animais Selvagens), livro publicado pela Yale University Press, a pesquisadora britânica Rosaleen Duffy analisa as transformações, em anos recentes, da abordagem global diante das ameaças à biodiversidade. A maioria dos países aceitou, há algum tempo, que a situação ambiental é crítica e que crimes contra o meio ambiente são graves em si, e não apenas porque eventualmente prejudiquem seres humanos.

Rinocerontes pastando na África do Sul Foto: Luiz Paulo Lima/Estadão

Nas últimas décadas, cresceu a demanda por recursos naturais, de minerais a madeira e, também, por animais selvagens (vivos ou mortos). Neste último caso, o maior impacto foi sentido na África, onde houve um gigantesco declínio no número de elefantes, mortos por causa do marfim, usado para joias, esculturas e peças de decoração. Somente na década de 1980, a população de elefantes selvagens africanos encolheu de um milhão para a metade disso. Quanto aos rinocerontes, o que se cobiça são os chifres, usados em esculturas e na medicina tradicional asiática. Somente no Parque Kruger, na África do Sul (um dos mais protegidos), chegou a haver uma redução de 70% na população de rinocerontes.

No Brasil, onde a situação não é muito melhor, estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos. E, de cada 20 capturados, apenas um é resgatado. A ararinha-azul, por exemplo, foi extinta na natureza no ano 2000, restando uns 200 e poucos indivíduos em cativeiro. Para completar, os crimes ambientais estão relacionados ao tráfico de drogas, ao crime organizado internacional, à lavagem de dinheiro (os chamados “crimes do colarinho verde”), e ao financiamento de grupos terroristas, como o Al-Shabaab, filial da Al-Qaeda na Somália, e o Boko Haram, o grupo que sequestrou 276 meninas em uma escola nigeriana em 2014.

O alerta global para a preservação da vida selvagem se tornou ainda mais urgente após a pandemia da covid, diante da forte hipótese de que a doença teria começado na China a partir de animais selvagens vendidos em mercados urbanos – uma prática que já havia sido motivo de alarme em meados da década de 1990, com a epidemia do ebola, na África Central, e foi reforçada há poucas semanas, após a notificação, na Guiné Equatorial, de um surto do igualmente letal vírus de Marburg.

No Brasil estima-se que 38 milhões de animais são capturados na natureza todos os anos

O principal efeito da mudança global de percepção sobre a urgência da preservação da vida selvagem talvez esteja no desembarque das instâncias de segurança militar, tanto estatais quanto privadas, no campo – literalmente – de batalha. O foco anterior, em reeducação e integração das comunidades locais no esforço de preservação, tem sido mais e mais complementado pela militarização, com o uso de aparatos estatais e privados.

O fato é que, com implicações ora positivas, ora nem tanto, cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento por satélite, cruzamento e análise de dados. Junto a isso tem havido o envolvimento cada vez maior de forças policiais e militares, com cooperação em escalas nacional, regional e global, e um processo em que guardas florestais têm sido armados e treinados para combate real. Um sinal das mudanças está na proliferação de órgãos governamentais, internacionais e de organizações filantrópicas ligadas ao tema, que se contam às dezenas.

Elefantes na unidade de Conservação Transfronteiriça Kavango Zambezi (KAZA)  Foto: Helge Denker/WWF

De um jeito ou de outro, há o consenso de que, só na base da conversa, a preservação não se sustenta. Como disse Luis Arranz, gerente da ONG WWF no parque Dzanga-Sangha, na República Centro-Africana: “Eu preciso de armas para proteger as pessoas que protegem os elefantes. Se toparem com caçadores, e estiverem desarmadas, elas morrem”. Não há exagero aí. Levantamento de alguns organismos, entre os quais a WWF, estimou em 2014 que, a cada ano, cerca de cem guardas florestais e ativistas ambientais eram assassinados no mundo. Nada indica que esses números tenham melhorado desde então.

A militarização da defesa do meio ambiente também traz problemas. Em alguns casos, a violência apenas troca de lado, passando das mãos dos traficantes e garimpeiros para as de quem os combate. Há relatos, na África, de guardas florestais, agora pesadamente armados, cometendo crimes (incluindo estupros) contra as populações locais. E eles às vezes não aceitam o fato de que as populações tradicionais sempre caçaram e cortaram árvores de maneira sustentável, tratando-as como traficantes.

Um outro aspecto da mudança de abordagem das questões ambientais está na chegada do capital privado, seja no incentivo a empresas “ambientalmente responsáveis”, seja em negócios como a venda de créditos de carbono, seja na privatização de parques para a exploração de ecoturismo. Esta última, em particular, tem despertado bastante polêmica. Afinal, o melhor, para uma área de preservação, é que ela seja simplesmente... preservada; sem trilhas, pousadas ou restaurantes, com o mínimo de presença humana. Por outro lado, na prática sabemos que aos governos costumam faltar recursos e vontade política para a conservação de áreas protegidas, e que a alternância no poder pode representar interrupção de políticas, como pudemos testemunhar no Brasil dos anos recentes.

Cada vez mais a preservação da vida selvagem depende da participação das comunidades de inteligência, com uso intenso de monitoramento

No Brasil, país que ainda confunde áreas rurais não desmatadas com terras improdutivas – com absurda incidência tributária maior –, a possibilidade de se ganhar dinheiro mantendo as árvores em seus lugares pode ser bastante promissora. Isso é chamado de “capitalismo verde” e, também, de “conservacionismo neoliberal”. O argumento, no caso, de que a melhor maneira de proteger a vida selvagem é lucrando com ela.

Grandes empresas globais, como Disney, Starbucks e Coca-Cola, cada vez mais se envolvem no financiamento de ações ambientais. Celebridades que já gostavam de se associar a causas humanitárias passaram a incluir as agendas ambientais em seus projetos. Desde que Al Gore produziu e estrelou o documentário Uma Verdade Inconveniente, em 2006, a lista só fez crescer, incluindo Gisele Bündchen como embaixadora do meio ambiente da ONU e Leonardo DiCaprio se envolvendo, com a Netflix, na produção do filme Virunga, sobre a luta pela preservação dos animais no parque do mesmo nome, na República Democrática do Congo.

A luta pela preservação da vida selvagem costumava ser uma agenda das esquerdas e, até mesmo, de idealistas quixotescos. Não mais. Em função da emergência imposta pelas mudanças climáticas e pela iminente possibilidade de extinção de espécies carismáticas como elefantes, rinocerontes e tigres (ninguém liga muito para o desaparecimento de alguma rã numa região remota da Amazônia), o grande capital e os países ricos abraçaram definitivamente a causa. Os resultados não têm sido muito animadores; no Parque Kruger, por exemplo, onde centenas de caçadores têm sido presos e condenados, a queda na população de rinocerontes continua firme, ainda que com índices ligeiramente melhores.

Em 2021, no Parque Virunga, até mesmo o embaixador italiano no Congo, Luca Attanasio, foi assassinado, quando estava em missão humanitária da ONU – criminosos emboscaram o comboio em que ele viajava. Mas a radicalização das ações de proteção, por vezes armada, parece inevitável, mesmo sem garantia de sucesso. Como atesta, aliás, o caso recente dos Yanomamis, resgatados emergencialmente do genocídio por uma ação conjunta de órgãos estatais, incluindo forças militares; se a ação inicial pareceu bem-sucedida, só o tempo dirá se as comunidades indígenas conseguirão sobreviver às investidas do garimpo ilegal.

Security and Conservation: The Politics of the Illegal Wildlife Trade

Autora: Rosaleen Duffy

Editora: Yale University Press

304 págs., US$ 35

US$ 32,50 (e-book)

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