Confira trecho de ´As Flores do Jardim da Nossa Casa´


Leia parte do primeiro capítulo do livro que Marco Lacerda lança nesta terça-feira

Por Redação

O escritor Marco Lacerda lança nesta terça-feira, 26, no Ritz Itaim, As Flores do Jardim da Nossa Casa (Terceiro Nome, 224 págs., R$ 34). Leia trecho do primeiro capítulo: Tarde de inverno nublada e de escuridão precoce. Um chuvisco em forma de agulhas enviesadas apazigua o sábado com seu crepitar nos vidros da janela do quarto. Passa das quatro, mas não muito. O interfone toca. O som rasga a quietude, parecendo vir de muito longe, embora o aparelho esteja logo ali na copa, a alguns passos do quarto e da cama onde durmo. O alarde me encontra naquele momento do sono que já não é mais que a última fronteira da vigília. - O Caio está aqui na portaria, pode deixar subir? - pergunta o porteiro. A ficha demora a cair. Caio, que Caio? Bombardeio a memória com uma investigação de emergência. Vejo a cama deserta no quarto. Alguém dormiu comigo esta noite, mas não se chamava Caio. Caio… Caio... claro, Caio Lúcio! Como é que eu pude esquecer? Mas é cedo demais para o Caio chegar. O combinado era ele e Marta passarem às dez da noite. Foi o que tratamos. Amanhã, domingo, é meu aniversário, mas eles vão estar fora de São Paulo. Marcamos de comemorar com um jantar, hoje. Respiro aliviado. - Manda subir - digo ao porteiro. Corro até a sala, abro a porta, deixando-a entreaberta, e volto ao quarto para vestir alguma coisa. Quarenta anos. Amanhã faço 40 anos, lembro, recobrando um pouco a memória. Nunca pensei que tivesse força de vontade suficiente para chegar aos 40, mas já que cheguei... penso, no banheiro, enquanto passo uma água no rosto. Sinto como se a cabeça não fizesse parte do corpo. Ressaca é um purgatório entre um ontem que parece não ter existido e um amanhã que não chega nunca. Ouço o ruído da porta da sala sendo fechada e o som - clac, clac - das duas voltas da chave na fechadura. - Caio! - grito. - Pensei que tivéssemos marcado às dez! Silêncio. - Caiooô! - repito mais alto, já a caminho da sala, imaginando encontrá-los, ele e Marta, em pé na porta com algum presente absurdo ou um bolo de aniversário com quarenta velinhas, cheios de parabéns para dar. Em vez de Caio e Marta, deparo com dois estranhos: um rapaz com cara de 19, 20 anos e outro de uns 30, 35 no máximo. Bem vestidos, bem apanhados. O que está na frente é alto, usa uns óculos de professor que lhe dão ares de confiabilidade, mas só o ar. O sorriso é dissimulado, furtivo. A fisionomia é vagamente familiar, lembro de já tê-la visto. Atrás dele, meio escondido, o outro, mais novo, corpo atlético, cabelo preto desarrumado pelo gel. Evita me encarar, mas quando olha o reconheço de pronto. É o cara que dormiu comigo ontem. - Você não é o... como é mesmo o seu nome? - tento recordar. - Desculpe, ontem a gente bebeu bastante. Eduardo? Seu nome é Eduardo, não é? À noite, sob o efeito do álcool e da cocaína, eu não notara, mas agora, à luz do dia, vejo que chamas saltam dos olhos grandes de Eduardo e que é impossível olhá-lo por muito tempo. Antes de ele responder, o outro cara, que já estava atrás de mim, tira um revólver que trazia escondido na cintura, enfia o cano dentro do meu ouvido e diz ao companheiro: - Eduardo, janelas e persianas, fecha tudo. Não é preciso ser detetive para perceber do que se trata. Os sintomas da ressaca desaparecem. O chão some sob os meus pés. - Você, pro quarto! - me diz com firmeza. Tento caminhar, mas as pernas não me obedecem. Só reagem ao cano frio do revólver - uma Magnum 357 - encostado na minha nuca, empurrando-me em direção ao quarto. Sinto o medo penetrar na pele, nos músculos, nos ossos. Titubeio pelo pequeno corredor empurrado pela arma. - O ouro e os dólar, onde é que tá? - pergunta o tal Eduardo. Uma descarga fria percorre meu corpo. Não consigo falar, o medo emudece, tira a fome e a sede, embora eu tenha o estômago vazio e a boca seca. A chuva parou, as últimas luzes do dia abatem-se com gravidade sobre os objetos do quarto. Uns poucos raios de sol ainda brilham lá fora, enquanto o breu do horror toma conta do apartamento. - Água, me dá um pouco d´água - peço, sentado na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos, mãos geladas segurando a cabeça. O cara que me ameaça com o revólver abre o tambor da arma, exibindo as seis balas alojadas em suas entranhas. - Tá vendo isso aqui, meu, não é de brinquedo não! - diz, arreganhando os dentes grandes de cavalo. - As coisas de ouro estão numa caixinha no bolso de dentro do paletó xadrez - murmuro, apontando para o armário embutido com voz sumida que se parte a cada sílaba. - Dólar eu não tenho. - Pega lá, Jáder, enquanto eu acabo de baixar as persianas - diz Eduardo, revelando o verdadeiro nome do companheiro, a caminho do escritório. Eduardo pode ser Eduardo, mas o nome do outro não é Jáder, tenho certeza. Conheço a figura de algum lugar, penso, sentado na cama, olhando para o carpete cinza manchado de farelos do pó de barro avermelhado que os dois trouxeram de alguma periferia. Jáder encontra sem dificuldade a caixinha japonesa onde guardo presentes que marcaram minha vida: o cordão de ouro que ganhei quando fiz 18 anos, a pulseira de quando fiz 21, o anel com rubi do ano em que passei no vestibular de Direito, abotoaduras, passadores de gravata e medalhinhas de santos que não parecem dispostos a me socorrer. Nunca usei nada daquilo, guardo pelo valor afetivo. A única jóia que uso é a argolinha de ouro que levo na orelha esquerda. - Passa pra cá a argola - intima Jáder, olhando para o pequeno aro. - Por favor, o brinco não - peço. - Foi presente de um amigo antes de morrer, há dois anos. É a única lembrança que tenho dele. - Dois anos? - pergunta com sarcasmo. - Já usou muito, agora é meu - e tira a argola da minha orelha. Ao revelar, sem resistência, o lugar onde as jóias estavam guardadas, sinto que ganhei a confiança deles. Minha esperança é que esqueçam os dólares. Na sala, escondidos atrás de um quadro, há dois envelopes com quinze mil dólares em espécie, que a editora onde trabalho me adiantou para viajar para o Japão. Dentro de duas semanas embarco para Tóquio com a missão de permanecer três anos como correspondente. Os assaltantes abrem um saco de náilon no meio do quarto e o enchem com calças, camisas, tênis e todas as roupas que eu trouxe da minha última viagem aos Estados Unidos. Me viram de bruços na cama, amarram meus pés, voltam meus braços para trás e os amarram também, sempre usando cintos de couro tirados do armário, deixando-me completamente imobilizado. Antes de me vedar a boca com fita adesiva, Jáder pega o cartão do banco, que estava dentro da minha carteira, e exige que eu lhe revele a senha. - Sete-oito-três-dois-nove - digo sem saber sequer quanto dinheiro estaria disponível na conta corrente. - Escuta bem, cara - diz Jáder me encarando -, o Eduardo vai até o caixa eletrônico sacar a grana. Se a senha estiver errada, ele vai ligar de lá e eu acabo com você, sacou? - Mete um lenço dentro da minha boca e passa uma tira de silver tape, grudando-a sobre os pêlos da barba ainda por fazer. Eduardo volta do escritório trazendo uma pequena bandeja com restos da cocaína que eu e ele cheiramos na véspera. De pé, ao lado da cama onde me encontro fora de combate, os dois devoram, numa só cafungada, pelo menos dois gramas de pó. Saem do quarto, cochicham coisas no corredor. Ouço a porta da sala sendo fechada. Eduardo deve estar a caminho do caixa eletrônico. São cinco da tarde. Estou sozinho, amarrado e amordaçado, com um assaltante armado dentro do meu apartamento no sétimo andar de um edifício nos Jardins paulistanos. Escuto ruídos vindos da sala e do escritório: portas e gavetas sendo abertas, papéis remexidos, móveis arrastados. O telefone toca uma, duas, três vezes. Depois do quarto toque, a secretária eletrônica é acionada e a gravação ecoa no apartamento: - "Você ligou para 3282-9728. No momento não posso atender. Deixe o seu recado depois…" - O volume da secretária diminuiu e minha voz desapareceu como que abafada por alguma coisa colocada sobre o aparelho. A partir de agora as mensagens ficarão à espera de quem e quando as queira escutar. Recobro um pouco da calma. Alimento a esperança de que o porteiro desconfie de alguma coisa e não deixe Eduardo subir de volta ao apartamento quando retornar do caixa eletrônico. Melhor: algum amigo poderá dar uma passada rápida, como é costume aos sábados, para um drinque de fim de tarde. Tudo vai se resolver a tempo, penso, enquanto vasculho a memória tentando localizar de onde conheço o cara que está na sala e que atende por Jáder. Uma hora se passa desde que Eduardo saiu. O telefone toca sem parar. Com o volume da secretária abaixado, tudo o que escuto são bipes longínquos de mensagens sendo gravadas. A ansiedade toma conta. Algum contratempo deve ter ocorrido e Eduardo pode estar pensando que lhe dei a senha errada. Por isso tenta comunicar-se com Jáder. Repasso mentalmente o número para certificar-me de que não errei nenhum dígito: sete-oito-três-dois-nove. Quando o telefone soa de novo, faço movimentos bruscos na cama para chamar a atenção de Jáder. Ele aparece na porta do quarto apontando a arma na minha direção. Balanço a cabeça e movimento os olhos como que pedindo que ele tire a fita adesiva da minha boca para eu poder falar. Jáder faz sinal de negativo com o cano do revólver. Insisto nos movimentos com a cabeça e os olhos. Ele senta ao meu lado na cama, descola parcialmente a fita e retira da minha boca o lenço ensopado de cuspe. - Por favor, atenda o telefone - digo, ouvindo o bipe de outra mensagem sendo gravada. - Pode ser o seu companheiro, o Eduardo, chamando da rua. Jáder apressa-se até a sala, mas não chega a tempo. Tudo o que ouvimos é o bipe final da gravação de mais um recado. - Aperte o "rewind" para ouvir os recados gravados - sugiro. - Pssss… - Jáder sussurra, entrando de novo no quarto com o cano do revólver encostado nos lábios, indicando silêncio e revelando, naquele ângulo, novos traços de sua fisionomia familiar: do lado direito, o rosto parece carrancudo, desconfiado; do esquerdo, a expressão é apreensiva, tristonha. Não é um rosto bonito, mas tem um jeito perturbador. - Eduardo pode ter esquecido a senha - insisto. - Cala a boca! - diz, arreganhando de novo os dentes. - As mensagens podem ser do Eduardo chamando da rua - repito. - Ele pode achar que eu dei a senha errada. - Não sei mexer nessa geringonça - Jáder desconversa. - É só apertar o botão onde está escrito "rew". - Esse puto do Nélson já devia estar de volta - diz, exasperado, revelando, sem querer, o verdadeiro nome do companheiro e pela primeira vez deixando escapar uma ponta de nervosismo. - Não sei por que esse merda está demorando tanto. Vai ver sacou o dinheiro e foi embora, me deixou na mão. Noto em Jáder os sinais externos da enorme quantidade de cocaína que aspirou: expressão de cansaço, rosto coberto por um brilho gordurento, camisa manchada de suor. Tento acalmá-lo. E a melhor maneira de acalmar uma pessoa sob efeito de cocaína - digo por experiência própria - é conversar com ela, nunca deixá-la ruminando coisas. - Nélson? Pensei que o nome do seu companheiro fosse Eduardo. - Nélson, Eduardo, tanto faz. Nessa vida ninguém tem nome, qualquer nome serve. Jáder caminha de um lado para o outro dentro do apartamento, agora sem disfarçar a inquietação. Entra no quarto, dá voltas ao redor da cama roendo as unhas, pensativo, ignorando-me com a segurança de quem tem diante de si uma presa dominada. Observo seu rosto, a barba selvagem, a pele sardenta, o jeito altivo de caminhar e de pronunciar seu nome enfatizando cada sílaba com um sorriso irônico, como se os dentes de cavalo fossem seu sobrenome. Saltando de um porão da mente, o nome finalmente se revela: Benício. Será mesmo ele? Faz tempo que não o vejo. É minha chance de confirmar antes que o companheiro dele volte. Até porque nada tenho a perder. - Não lembro o seu nome, mas sei que não é Jáder - arrisco. - Bingo! Descobriu a América. - Estou falando sério, a gente se conhece. Não se lembra de mim? - Só falta dizer que dormiu comigo. - Dormi sim, Benício - atrevo-me a chamá-lo pelo nome. - Não lembra? Em Belo Horizonte, há muito tempo, uns dez anos... Benício volta-se para mim com uma expressão entre o susto e a dúvida. Reconheço, agora com certeza, aquele olhar que sempre me pareceu demoníaco, embora eu soubesse que, apesar da perversidade que transmitia à primeira vista, era um olhar submetido ao coração.

O escritor Marco Lacerda lança nesta terça-feira, 26, no Ritz Itaim, As Flores do Jardim da Nossa Casa (Terceiro Nome, 224 págs., R$ 34). Leia trecho do primeiro capítulo: Tarde de inverno nublada e de escuridão precoce. Um chuvisco em forma de agulhas enviesadas apazigua o sábado com seu crepitar nos vidros da janela do quarto. Passa das quatro, mas não muito. O interfone toca. O som rasga a quietude, parecendo vir de muito longe, embora o aparelho esteja logo ali na copa, a alguns passos do quarto e da cama onde durmo. O alarde me encontra naquele momento do sono que já não é mais que a última fronteira da vigília. - O Caio está aqui na portaria, pode deixar subir? - pergunta o porteiro. A ficha demora a cair. Caio, que Caio? Bombardeio a memória com uma investigação de emergência. Vejo a cama deserta no quarto. Alguém dormiu comigo esta noite, mas não se chamava Caio. Caio… Caio... claro, Caio Lúcio! Como é que eu pude esquecer? Mas é cedo demais para o Caio chegar. O combinado era ele e Marta passarem às dez da noite. Foi o que tratamos. Amanhã, domingo, é meu aniversário, mas eles vão estar fora de São Paulo. Marcamos de comemorar com um jantar, hoje. Respiro aliviado. - Manda subir - digo ao porteiro. Corro até a sala, abro a porta, deixando-a entreaberta, e volto ao quarto para vestir alguma coisa. Quarenta anos. Amanhã faço 40 anos, lembro, recobrando um pouco a memória. Nunca pensei que tivesse força de vontade suficiente para chegar aos 40, mas já que cheguei... penso, no banheiro, enquanto passo uma água no rosto. Sinto como se a cabeça não fizesse parte do corpo. Ressaca é um purgatório entre um ontem que parece não ter existido e um amanhã que não chega nunca. Ouço o ruído da porta da sala sendo fechada e o som - clac, clac - das duas voltas da chave na fechadura. - Caio! - grito. - Pensei que tivéssemos marcado às dez! Silêncio. - Caiooô! - repito mais alto, já a caminho da sala, imaginando encontrá-los, ele e Marta, em pé na porta com algum presente absurdo ou um bolo de aniversário com quarenta velinhas, cheios de parabéns para dar. Em vez de Caio e Marta, deparo com dois estranhos: um rapaz com cara de 19, 20 anos e outro de uns 30, 35 no máximo. Bem vestidos, bem apanhados. O que está na frente é alto, usa uns óculos de professor que lhe dão ares de confiabilidade, mas só o ar. O sorriso é dissimulado, furtivo. A fisionomia é vagamente familiar, lembro de já tê-la visto. Atrás dele, meio escondido, o outro, mais novo, corpo atlético, cabelo preto desarrumado pelo gel. Evita me encarar, mas quando olha o reconheço de pronto. É o cara que dormiu comigo ontem. - Você não é o... como é mesmo o seu nome? - tento recordar. - Desculpe, ontem a gente bebeu bastante. Eduardo? Seu nome é Eduardo, não é? À noite, sob o efeito do álcool e da cocaína, eu não notara, mas agora, à luz do dia, vejo que chamas saltam dos olhos grandes de Eduardo e que é impossível olhá-lo por muito tempo. Antes de ele responder, o outro cara, que já estava atrás de mim, tira um revólver que trazia escondido na cintura, enfia o cano dentro do meu ouvido e diz ao companheiro: - Eduardo, janelas e persianas, fecha tudo. Não é preciso ser detetive para perceber do que se trata. Os sintomas da ressaca desaparecem. O chão some sob os meus pés. - Você, pro quarto! - me diz com firmeza. Tento caminhar, mas as pernas não me obedecem. Só reagem ao cano frio do revólver - uma Magnum 357 - encostado na minha nuca, empurrando-me em direção ao quarto. Sinto o medo penetrar na pele, nos músculos, nos ossos. Titubeio pelo pequeno corredor empurrado pela arma. - O ouro e os dólar, onde é que tá? - pergunta o tal Eduardo. Uma descarga fria percorre meu corpo. Não consigo falar, o medo emudece, tira a fome e a sede, embora eu tenha o estômago vazio e a boca seca. A chuva parou, as últimas luzes do dia abatem-se com gravidade sobre os objetos do quarto. Uns poucos raios de sol ainda brilham lá fora, enquanto o breu do horror toma conta do apartamento. - Água, me dá um pouco d´água - peço, sentado na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos, mãos geladas segurando a cabeça. O cara que me ameaça com o revólver abre o tambor da arma, exibindo as seis balas alojadas em suas entranhas. - Tá vendo isso aqui, meu, não é de brinquedo não! - diz, arreganhando os dentes grandes de cavalo. - As coisas de ouro estão numa caixinha no bolso de dentro do paletó xadrez - murmuro, apontando para o armário embutido com voz sumida que se parte a cada sílaba. - Dólar eu não tenho. - Pega lá, Jáder, enquanto eu acabo de baixar as persianas - diz Eduardo, revelando o verdadeiro nome do companheiro, a caminho do escritório. Eduardo pode ser Eduardo, mas o nome do outro não é Jáder, tenho certeza. Conheço a figura de algum lugar, penso, sentado na cama, olhando para o carpete cinza manchado de farelos do pó de barro avermelhado que os dois trouxeram de alguma periferia. Jáder encontra sem dificuldade a caixinha japonesa onde guardo presentes que marcaram minha vida: o cordão de ouro que ganhei quando fiz 18 anos, a pulseira de quando fiz 21, o anel com rubi do ano em que passei no vestibular de Direito, abotoaduras, passadores de gravata e medalhinhas de santos que não parecem dispostos a me socorrer. Nunca usei nada daquilo, guardo pelo valor afetivo. A única jóia que uso é a argolinha de ouro que levo na orelha esquerda. - Passa pra cá a argola - intima Jáder, olhando para o pequeno aro. - Por favor, o brinco não - peço. - Foi presente de um amigo antes de morrer, há dois anos. É a única lembrança que tenho dele. - Dois anos? - pergunta com sarcasmo. - Já usou muito, agora é meu - e tira a argola da minha orelha. Ao revelar, sem resistência, o lugar onde as jóias estavam guardadas, sinto que ganhei a confiança deles. Minha esperança é que esqueçam os dólares. Na sala, escondidos atrás de um quadro, há dois envelopes com quinze mil dólares em espécie, que a editora onde trabalho me adiantou para viajar para o Japão. Dentro de duas semanas embarco para Tóquio com a missão de permanecer três anos como correspondente. Os assaltantes abrem um saco de náilon no meio do quarto e o enchem com calças, camisas, tênis e todas as roupas que eu trouxe da minha última viagem aos Estados Unidos. Me viram de bruços na cama, amarram meus pés, voltam meus braços para trás e os amarram também, sempre usando cintos de couro tirados do armário, deixando-me completamente imobilizado. Antes de me vedar a boca com fita adesiva, Jáder pega o cartão do banco, que estava dentro da minha carteira, e exige que eu lhe revele a senha. - Sete-oito-três-dois-nove - digo sem saber sequer quanto dinheiro estaria disponível na conta corrente. - Escuta bem, cara - diz Jáder me encarando -, o Eduardo vai até o caixa eletrônico sacar a grana. Se a senha estiver errada, ele vai ligar de lá e eu acabo com você, sacou? - Mete um lenço dentro da minha boca e passa uma tira de silver tape, grudando-a sobre os pêlos da barba ainda por fazer. Eduardo volta do escritório trazendo uma pequena bandeja com restos da cocaína que eu e ele cheiramos na véspera. De pé, ao lado da cama onde me encontro fora de combate, os dois devoram, numa só cafungada, pelo menos dois gramas de pó. Saem do quarto, cochicham coisas no corredor. Ouço a porta da sala sendo fechada. Eduardo deve estar a caminho do caixa eletrônico. São cinco da tarde. Estou sozinho, amarrado e amordaçado, com um assaltante armado dentro do meu apartamento no sétimo andar de um edifício nos Jardins paulistanos. Escuto ruídos vindos da sala e do escritório: portas e gavetas sendo abertas, papéis remexidos, móveis arrastados. O telefone toca uma, duas, três vezes. Depois do quarto toque, a secretária eletrônica é acionada e a gravação ecoa no apartamento: - "Você ligou para 3282-9728. No momento não posso atender. Deixe o seu recado depois…" - O volume da secretária diminuiu e minha voz desapareceu como que abafada por alguma coisa colocada sobre o aparelho. A partir de agora as mensagens ficarão à espera de quem e quando as queira escutar. Recobro um pouco da calma. Alimento a esperança de que o porteiro desconfie de alguma coisa e não deixe Eduardo subir de volta ao apartamento quando retornar do caixa eletrônico. Melhor: algum amigo poderá dar uma passada rápida, como é costume aos sábados, para um drinque de fim de tarde. Tudo vai se resolver a tempo, penso, enquanto vasculho a memória tentando localizar de onde conheço o cara que está na sala e que atende por Jáder. Uma hora se passa desde que Eduardo saiu. O telefone toca sem parar. Com o volume da secretária abaixado, tudo o que escuto são bipes longínquos de mensagens sendo gravadas. A ansiedade toma conta. Algum contratempo deve ter ocorrido e Eduardo pode estar pensando que lhe dei a senha errada. Por isso tenta comunicar-se com Jáder. Repasso mentalmente o número para certificar-me de que não errei nenhum dígito: sete-oito-três-dois-nove. Quando o telefone soa de novo, faço movimentos bruscos na cama para chamar a atenção de Jáder. Ele aparece na porta do quarto apontando a arma na minha direção. Balanço a cabeça e movimento os olhos como que pedindo que ele tire a fita adesiva da minha boca para eu poder falar. Jáder faz sinal de negativo com o cano do revólver. Insisto nos movimentos com a cabeça e os olhos. Ele senta ao meu lado na cama, descola parcialmente a fita e retira da minha boca o lenço ensopado de cuspe. - Por favor, atenda o telefone - digo, ouvindo o bipe de outra mensagem sendo gravada. - Pode ser o seu companheiro, o Eduardo, chamando da rua. Jáder apressa-se até a sala, mas não chega a tempo. Tudo o que ouvimos é o bipe final da gravação de mais um recado. - Aperte o "rewind" para ouvir os recados gravados - sugiro. - Pssss… - Jáder sussurra, entrando de novo no quarto com o cano do revólver encostado nos lábios, indicando silêncio e revelando, naquele ângulo, novos traços de sua fisionomia familiar: do lado direito, o rosto parece carrancudo, desconfiado; do esquerdo, a expressão é apreensiva, tristonha. Não é um rosto bonito, mas tem um jeito perturbador. - Eduardo pode ter esquecido a senha - insisto. - Cala a boca! - diz, arreganhando de novo os dentes. - As mensagens podem ser do Eduardo chamando da rua - repito. - Ele pode achar que eu dei a senha errada. - Não sei mexer nessa geringonça - Jáder desconversa. - É só apertar o botão onde está escrito "rew". - Esse puto do Nélson já devia estar de volta - diz, exasperado, revelando, sem querer, o verdadeiro nome do companheiro e pela primeira vez deixando escapar uma ponta de nervosismo. - Não sei por que esse merda está demorando tanto. Vai ver sacou o dinheiro e foi embora, me deixou na mão. Noto em Jáder os sinais externos da enorme quantidade de cocaína que aspirou: expressão de cansaço, rosto coberto por um brilho gordurento, camisa manchada de suor. Tento acalmá-lo. E a melhor maneira de acalmar uma pessoa sob efeito de cocaína - digo por experiência própria - é conversar com ela, nunca deixá-la ruminando coisas. - Nélson? Pensei que o nome do seu companheiro fosse Eduardo. - Nélson, Eduardo, tanto faz. Nessa vida ninguém tem nome, qualquer nome serve. Jáder caminha de um lado para o outro dentro do apartamento, agora sem disfarçar a inquietação. Entra no quarto, dá voltas ao redor da cama roendo as unhas, pensativo, ignorando-me com a segurança de quem tem diante de si uma presa dominada. Observo seu rosto, a barba selvagem, a pele sardenta, o jeito altivo de caminhar e de pronunciar seu nome enfatizando cada sílaba com um sorriso irônico, como se os dentes de cavalo fossem seu sobrenome. Saltando de um porão da mente, o nome finalmente se revela: Benício. Será mesmo ele? Faz tempo que não o vejo. É minha chance de confirmar antes que o companheiro dele volte. Até porque nada tenho a perder. - Não lembro o seu nome, mas sei que não é Jáder - arrisco. - Bingo! Descobriu a América. - Estou falando sério, a gente se conhece. Não se lembra de mim? - Só falta dizer que dormiu comigo. - Dormi sim, Benício - atrevo-me a chamá-lo pelo nome. - Não lembra? Em Belo Horizonte, há muito tempo, uns dez anos... Benício volta-se para mim com uma expressão entre o susto e a dúvida. Reconheço, agora com certeza, aquele olhar que sempre me pareceu demoníaco, embora eu soubesse que, apesar da perversidade que transmitia à primeira vista, era um olhar submetido ao coração.

O escritor Marco Lacerda lança nesta terça-feira, 26, no Ritz Itaim, As Flores do Jardim da Nossa Casa (Terceiro Nome, 224 págs., R$ 34). Leia trecho do primeiro capítulo: Tarde de inverno nublada e de escuridão precoce. Um chuvisco em forma de agulhas enviesadas apazigua o sábado com seu crepitar nos vidros da janela do quarto. Passa das quatro, mas não muito. O interfone toca. O som rasga a quietude, parecendo vir de muito longe, embora o aparelho esteja logo ali na copa, a alguns passos do quarto e da cama onde durmo. O alarde me encontra naquele momento do sono que já não é mais que a última fronteira da vigília. - O Caio está aqui na portaria, pode deixar subir? - pergunta o porteiro. A ficha demora a cair. Caio, que Caio? Bombardeio a memória com uma investigação de emergência. Vejo a cama deserta no quarto. Alguém dormiu comigo esta noite, mas não se chamava Caio. Caio… Caio... claro, Caio Lúcio! Como é que eu pude esquecer? Mas é cedo demais para o Caio chegar. O combinado era ele e Marta passarem às dez da noite. Foi o que tratamos. Amanhã, domingo, é meu aniversário, mas eles vão estar fora de São Paulo. Marcamos de comemorar com um jantar, hoje. Respiro aliviado. - Manda subir - digo ao porteiro. Corro até a sala, abro a porta, deixando-a entreaberta, e volto ao quarto para vestir alguma coisa. Quarenta anos. Amanhã faço 40 anos, lembro, recobrando um pouco a memória. Nunca pensei que tivesse força de vontade suficiente para chegar aos 40, mas já que cheguei... penso, no banheiro, enquanto passo uma água no rosto. Sinto como se a cabeça não fizesse parte do corpo. Ressaca é um purgatório entre um ontem que parece não ter existido e um amanhã que não chega nunca. Ouço o ruído da porta da sala sendo fechada e o som - clac, clac - das duas voltas da chave na fechadura. - Caio! - grito. - Pensei que tivéssemos marcado às dez! Silêncio. - Caiooô! - repito mais alto, já a caminho da sala, imaginando encontrá-los, ele e Marta, em pé na porta com algum presente absurdo ou um bolo de aniversário com quarenta velinhas, cheios de parabéns para dar. Em vez de Caio e Marta, deparo com dois estranhos: um rapaz com cara de 19, 20 anos e outro de uns 30, 35 no máximo. Bem vestidos, bem apanhados. O que está na frente é alto, usa uns óculos de professor que lhe dão ares de confiabilidade, mas só o ar. O sorriso é dissimulado, furtivo. A fisionomia é vagamente familiar, lembro de já tê-la visto. Atrás dele, meio escondido, o outro, mais novo, corpo atlético, cabelo preto desarrumado pelo gel. Evita me encarar, mas quando olha o reconheço de pronto. É o cara que dormiu comigo ontem. - Você não é o... como é mesmo o seu nome? - tento recordar. - Desculpe, ontem a gente bebeu bastante. Eduardo? Seu nome é Eduardo, não é? À noite, sob o efeito do álcool e da cocaína, eu não notara, mas agora, à luz do dia, vejo que chamas saltam dos olhos grandes de Eduardo e que é impossível olhá-lo por muito tempo. Antes de ele responder, o outro cara, que já estava atrás de mim, tira um revólver que trazia escondido na cintura, enfia o cano dentro do meu ouvido e diz ao companheiro: - Eduardo, janelas e persianas, fecha tudo. Não é preciso ser detetive para perceber do que se trata. Os sintomas da ressaca desaparecem. O chão some sob os meus pés. - Você, pro quarto! - me diz com firmeza. Tento caminhar, mas as pernas não me obedecem. Só reagem ao cano frio do revólver - uma Magnum 357 - encostado na minha nuca, empurrando-me em direção ao quarto. Sinto o medo penetrar na pele, nos músculos, nos ossos. Titubeio pelo pequeno corredor empurrado pela arma. - O ouro e os dólar, onde é que tá? - pergunta o tal Eduardo. Uma descarga fria percorre meu corpo. Não consigo falar, o medo emudece, tira a fome e a sede, embora eu tenha o estômago vazio e a boca seca. A chuva parou, as últimas luzes do dia abatem-se com gravidade sobre os objetos do quarto. Uns poucos raios de sol ainda brilham lá fora, enquanto o breu do horror toma conta do apartamento. - Água, me dá um pouco d´água - peço, sentado na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos, mãos geladas segurando a cabeça. O cara que me ameaça com o revólver abre o tambor da arma, exibindo as seis balas alojadas em suas entranhas. - Tá vendo isso aqui, meu, não é de brinquedo não! - diz, arreganhando os dentes grandes de cavalo. - As coisas de ouro estão numa caixinha no bolso de dentro do paletó xadrez - murmuro, apontando para o armário embutido com voz sumida que se parte a cada sílaba. - Dólar eu não tenho. - Pega lá, Jáder, enquanto eu acabo de baixar as persianas - diz Eduardo, revelando o verdadeiro nome do companheiro, a caminho do escritório. Eduardo pode ser Eduardo, mas o nome do outro não é Jáder, tenho certeza. Conheço a figura de algum lugar, penso, sentado na cama, olhando para o carpete cinza manchado de farelos do pó de barro avermelhado que os dois trouxeram de alguma periferia. Jáder encontra sem dificuldade a caixinha japonesa onde guardo presentes que marcaram minha vida: o cordão de ouro que ganhei quando fiz 18 anos, a pulseira de quando fiz 21, o anel com rubi do ano em que passei no vestibular de Direito, abotoaduras, passadores de gravata e medalhinhas de santos que não parecem dispostos a me socorrer. Nunca usei nada daquilo, guardo pelo valor afetivo. A única jóia que uso é a argolinha de ouro que levo na orelha esquerda. - Passa pra cá a argola - intima Jáder, olhando para o pequeno aro. - Por favor, o brinco não - peço. - Foi presente de um amigo antes de morrer, há dois anos. É a única lembrança que tenho dele. - Dois anos? - pergunta com sarcasmo. - Já usou muito, agora é meu - e tira a argola da minha orelha. Ao revelar, sem resistência, o lugar onde as jóias estavam guardadas, sinto que ganhei a confiança deles. Minha esperança é que esqueçam os dólares. Na sala, escondidos atrás de um quadro, há dois envelopes com quinze mil dólares em espécie, que a editora onde trabalho me adiantou para viajar para o Japão. Dentro de duas semanas embarco para Tóquio com a missão de permanecer três anos como correspondente. Os assaltantes abrem um saco de náilon no meio do quarto e o enchem com calças, camisas, tênis e todas as roupas que eu trouxe da minha última viagem aos Estados Unidos. Me viram de bruços na cama, amarram meus pés, voltam meus braços para trás e os amarram também, sempre usando cintos de couro tirados do armário, deixando-me completamente imobilizado. Antes de me vedar a boca com fita adesiva, Jáder pega o cartão do banco, que estava dentro da minha carteira, e exige que eu lhe revele a senha. - Sete-oito-três-dois-nove - digo sem saber sequer quanto dinheiro estaria disponível na conta corrente. - Escuta bem, cara - diz Jáder me encarando -, o Eduardo vai até o caixa eletrônico sacar a grana. Se a senha estiver errada, ele vai ligar de lá e eu acabo com você, sacou? - Mete um lenço dentro da minha boca e passa uma tira de silver tape, grudando-a sobre os pêlos da barba ainda por fazer. Eduardo volta do escritório trazendo uma pequena bandeja com restos da cocaína que eu e ele cheiramos na véspera. De pé, ao lado da cama onde me encontro fora de combate, os dois devoram, numa só cafungada, pelo menos dois gramas de pó. Saem do quarto, cochicham coisas no corredor. Ouço a porta da sala sendo fechada. Eduardo deve estar a caminho do caixa eletrônico. São cinco da tarde. Estou sozinho, amarrado e amordaçado, com um assaltante armado dentro do meu apartamento no sétimo andar de um edifício nos Jardins paulistanos. Escuto ruídos vindos da sala e do escritório: portas e gavetas sendo abertas, papéis remexidos, móveis arrastados. O telefone toca uma, duas, três vezes. Depois do quarto toque, a secretária eletrônica é acionada e a gravação ecoa no apartamento: - "Você ligou para 3282-9728. No momento não posso atender. Deixe o seu recado depois…" - O volume da secretária diminuiu e minha voz desapareceu como que abafada por alguma coisa colocada sobre o aparelho. A partir de agora as mensagens ficarão à espera de quem e quando as queira escutar. Recobro um pouco da calma. Alimento a esperança de que o porteiro desconfie de alguma coisa e não deixe Eduardo subir de volta ao apartamento quando retornar do caixa eletrônico. Melhor: algum amigo poderá dar uma passada rápida, como é costume aos sábados, para um drinque de fim de tarde. Tudo vai se resolver a tempo, penso, enquanto vasculho a memória tentando localizar de onde conheço o cara que está na sala e que atende por Jáder. Uma hora se passa desde que Eduardo saiu. O telefone toca sem parar. Com o volume da secretária abaixado, tudo o que escuto são bipes longínquos de mensagens sendo gravadas. A ansiedade toma conta. Algum contratempo deve ter ocorrido e Eduardo pode estar pensando que lhe dei a senha errada. Por isso tenta comunicar-se com Jáder. Repasso mentalmente o número para certificar-me de que não errei nenhum dígito: sete-oito-três-dois-nove. Quando o telefone soa de novo, faço movimentos bruscos na cama para chamar a atenção de Jáder. Ele aparece na porta do quarto apontando a arma na minha direção. Balanço a cabeça e movimento os olhos como que pedindo que ele tire a fita adesiva da minha boca para eu poder falar. Jáder faz sinal de negativo com o cano do revólver. Insisto nos movimentos com a cabeça e os olhos. Ele senta ao meu lado na cama, descola parcialmente a fita e retira da minha boca o lenço ensopado de cuspe. - Por favor, atenda o telefone - digo, ouvindo o bipe de outra mensagem sendo gravada. - Pode ser o seu companheiro, o Eduardo, chamando da rua. Jáder apressa-se até a sala, mas não chega a tempo. Tudo o que ouvimos é o bipe final da gravação de mais um recado. - Aperte o "rewind" para ouvir os recados gravados - sugiro. - Pssss… - Jáder sussurra, entrando de novo no quarto com o cano do revólver encostado nos lábios, indicando silêncio e revelando, naquele ângulo, novos traços de sua fisionomia familiar: do lado direito, o rosto parece carrancudo, desconfiado; do esquerdo, a expressão é apreensiva, tristonha. Não é um rosto bonito, mas tem um jeito perturbador. - Eduardo pode ter esquecido a senha - insisto. - Cala a boca! - diz, arreganhando de novo os dentes. - As mensagens podem ser do Eduardo chamando da rua - repito. - Ele pode achar que eu dei a senha errada. - Não sei mexer nessa geringonça - Jáder desconversa. - É só apertar o botão onde está escrito "rew". - Esse puto do Nélson já devia estar de volta - diz, exasperado, revelando, sem querer, o verdadeiro nome do companheiro e pela primeira vez deixando escapar uma ponta de nervosismo. - Não sei por que esse merda está demorando tanto. Vai ver sacou o dinheiro e foi embora, me deixou na mão. Noto em Jáder os sinais externos da enorme quantidade de cocaína que aspirou: expressão de cansaço, rosto coberto por um brilho gordurento, camisa manchada de suor. Tento acalmá-lo. E a melhor maneira de acalmar uma pessoa sob efeito de cocaína - digo por experiência própria - é conversar com ela, nunca deixá-la ruminando coisas. - Nélson? Pensei que o nome do seu companheiro fosse Eduardo. - Nélson, Eduardo, tanto faz. Nessa vida ninguém tem nome, qualquer nome serve. Jáder caminha de um lado para o outro dentro do apartamento, agora sem disfarçar a inquietação. Entra no quarto, dá voltas ao redor da cama roendo as unhas, pensativo, ignorando-me com a segurança de quem tem diante de si uma presa dominada. Observo seu rosto, a barba selvagem, a pele sardenta, o jeito altivo de caminhar e de pronunciar seu nome enfatizando cada sílaba com um sorriso irônico, como se os dentes de cavalo fossem seu sobrenome. Saltando de um porão da mente, o nome finalmente se revela: Benício. Será mesmo ele? Faz tempo que não o vejo. É minha chance de confirmar antes que o companheiro dele volte. Até porque nada tenho a perder. - Não lembro o seu nome, mas sei que não é Jáder - arrisco. - Bingo! Descobriu a América. - Estou falando sério, a gente se conhece. Não se lembra de mim? - Só falta dizer que dormiu comigo. - Dormi sim, Benício - atrevo-me a chamá-lo pelo nome. - Não lembra? Em Belo Horizonte, há muito tempo, uns dez anos... Benício volta-se para mim com uma expressão entre o susto e a dúvida. Reconheço, agora com certeza, aquele olhar que sempre me pareceu demoníaco, embora eu soubesse que, apesar da perversidade que transmitia à primeira vista, era um olhar submetido ao coração.

O escritor Marco Lacerda lança nesta terça-feira, 26, no Ritz Itaim, As Flores do Jardim da Nossa Casa (Terceiro Nome, 224 págs., R$ 34). Leia trecho do primeiro capítulo: Tarde de inverno nublada e de escuridão precoce. Um chuvisco em forma de agulhas enviesadas apazigua o sábado com seu crepitar nos vidros da janela do quarto. Passa das quatro, mas não muito. O interfone toca. O som rasga a quietude, parecendo vir de muito longe, embora o aparelho esteja logo ali na copa, a alguns passos do quarto e da cama onde durmo. O alarde me encontra naquele momento do sono que já não é mais que a última fronteira da vigília. - O Caio está aqui na portaria, pode deixar subir? - pergunta o porteiro. A ficha demora a cair. Caio, que Caio? Bombardeio a memória com uma investigação de emergência. Vejo a cama deserta no quarto. Alguém dormiu comigo esta noite, mas não se chamava Caio. Caio… Caio... claro, Caio Lúcio! Como é que eu pude esquecer? Mas é cedo demais para o Caio chegar. O combinado era ele e Marta passarem às dez da noite. Foi o que tratamos. Amanhã, domingo, é meu aniversário, mas eles vão estar fora de São Paulo. Marcamos de comemorar com um jantar, hoje. Respiro aliviado. - Manda subir - digo ao porteiro. Corro até a sala, abro a porta, deixando-a entreaberta, e volto ao quarto para vestir alguma coisa. Quarenta anos. Amanhã faço 40 anos, lembro, recobrando um pouco a memória. Nunca pensei que tivesse força de vontade suficiente para chegar aos 40, mas já que cheguei... penso, no banheiro, enquanto passo uma água no rosto. Sinto como se a cabeça não fizesse parte do corpo. Ressaca é um purgatório entre um ontem que parece não ter existido e um amanhã que não chega nunca. Ouço o ruído da porta da sala sendo fechada e o som - clac, clac - das duas voltas da chave na fechadura. - Caio! - grito. - Pensei que tivéssemos marcado às dez! Silêncio. - Caiooô! - repito mais alto, já a caminho da sala, imaginando encontrá-los, ele e Marta, em pé na porta com algum presente absurdo ou um bolo de aniversário com quarenta velinhas, cheios de parabéns para dar. Em vez de Caio e Marta, deparo com dois estranhos: um rapaz com cara de 19, 20 anos e outro de uns 30, 35 no máximo. Bem vestidos, bem apanhados. O que está na frente é alto, usa uns óculos de professor que lhe dão ares de confiabilidade, mas só o ar. O sorriso é dissimulado, furtivo. A fisionomia é vagamente familiar, lembro de já tê-la visto. Atrás dele, meio escondido, o outro, mais novo, corpo atlético, cabelo preto desarrumado pelo gel. Evita me encarar, mas quando olha o reconheço de pronto. É o cara que dormiu comigo ontem. - Você não é o... como é mesmo o seu nome? - tento recordar. - Desculpe, ontem a gente bebeu bastante. Eduardo? Seu nome é Eduardo, não é? À noite, sob o efeito do álcool e da cocaína, eu não notara, mas agora, à luz do dia, vejo que chamas saltam dos olhos grandes de Eduardo e que é impossível olhá-lo por muito tempo. Antes de ele responder, o outro cara, que já estava atrás de mim, tira um revólver que trazia escondido na cintura, enfia o cano dentro do meu ouvido e diz ao companheiro: - Eduardo, janelas e persianas, fecha tudo. Não é preciso ser detetive para perceber do que se trata. Os sintomas da ressaca desaparecem. O chão some sob os meus pés. - Você, pro quarto! - me diz com firmeza. Tento caminhar, mas as pernas não me obedecem. Só reagem ao cano frio do revólver - uma Magnum 357 - encostado na minha nuca, empurrando-me em direção ao quarto. Sinto o medo penetrar na pele, nos músculos, nos ossos. Titubeio pelo pequeno corredor empurrado pela arma. - O ouro e os dólar, onde é que tá? - pergunta o tal Eduardo. Uma descarga fria percorre meu corpo. Não consigo falar, o medo emudece, tira a fome e a sede, embora eu tenha o estômago vazio e a boca seca. A chuva parou, as últimas luzes do dia abatem-se com gravidade sobre os objetos do quarto. Uns poucos raios de sol ainda brilham lá fora, enquanto o breu do horror toma conta do apartamento. - Água, me dá um pouco d´água - peço, sentado na cama com os cotovelos apoiados nos joelhos, mãos geladas segurando a cabeça. O cara que me ameaça com o revólver abre o tambor da arma, exibindo as seis balas alojadas em suas entranhas. - Tá vendo isso aqui, meu, não é de brinquedo não! - diz, arreganhando os dentes grandes de cavalo. - As coisas de ouro estão numa caixinha no bolso de dentro do paletó xadrez - murmuro, apontando para o armário embutido com voz sumida que se parte a cada sílaba. - Dólar eu não tenho. - Pega lá, Jáder, enquanto eu acabo de baixar as persianas - diz Eduardo, revelando o verdadeiro nome do companheiro, a caminho do escritório. Eduardo pode ser Eduardo, mas o nome do outro não é Jáder, tenho certeza. Conheço a figura de algum lugar, penso, sentado na cama, olhando para o carpete cinza manchado de farelos do pó de barro avermelhado que os dois trouxeram de alguma periferia. Jáder encontra sem dificuldade a caixinha japonesa onde guardo presentes que marcaram minha vida: o cordão de ouro que ganhei quando fiz 18 anos, a pulseira de quando fiz 21, o anel com rubi do ano em que passei no vestibular de Direito, abotoaduras, passadores de gravata e medalhinhas de santos que não parecem dispostos a me socorrer. Nunca usei nada daquilo, guardo pelo valor afetivo. A única jóia que uso é a argolinha de ouro que levo na orelha esquerda. - Passa pra cá a argola - intima Jáder, olhando para o pequeno aro. - Por favor, o brinco não - peço. - Foi presente de um amigo antes de morrer, há dois anos. É a única lembrança que tenho dele. - Dois anos? - pergunta com sarcasmo. - Já usou muito, agora é meu - e tira a argola da minha orelha. Ao revelar, sem resistência, o lugar onde as jóias estavam guardadas, sinto que ganhei a confiança deles. Minha esperança é que esqueçam os dólares. Na sala, escondidos atrás de um quadro, há dois envelopes com quinze mil dólares em espécie, que a editora onde trabalho me adiantou para viajar para o Japão. Dentro de duas semanas embarco para Tóquio com a missão de permanecer três anos como correspondente. Os assaltantes abrem um saco de náilon no meio do quarto e o enchem com calças, camisas, tênis e todas as roupas que eu trouxe da minha última viagem aos Estados Unidos. Me viram de bruços na cama, amarram meus pés, voltam meus braços para trás e os amarram também, sempre usando cintos de couro tirados do armário, deixando-me completamente imobilizado. Antes de me vedar a boca com fita adesiva, Jáder pega o cartão do banco, que estava dentro da minha carteira, e exige que eu lhe revele a senha. - Sete-oito-três-dois-nove - digo sem saber sequer quanto dinheiro estaria disponível na conta corrente. - Escuta bem, cara - diz Jáder me encarando -, o Eduardo vai até o caixa eletrônico sacar a grana. Se a senha estiver errada, ele vai ligar de lá e eu acabo com você, sacou? - Mete um lenço dentro da minha boca e passa uma tira de silver tape, grudando-a sobre os pêlos da barba ainda por fazer. Eduardo volta do escritório trazendo uma pequena bandeja com restos da cocaína que eu e ele cheiramos na véspera. De pé, ao lado da cama onde me encontro fora de combate, os dois devoram, numa só cafungada, pelo menos dois gramas de pó. Saem do quarto, cochicham coisas no corredor. Ouço a porta da sala sendo fechada. Eduardo deve estar a caminho do caixa eletrônico. São cinco da tarde. Estou sozinho, amarrado e amordaçado, com um assaltante armado dentro do meu apartamento no sétimo andar de um edifício nos Jardins paulistanos. Escuto ruídos vindos da sala e do escritório: portas e gavetas sendo abertas, papéis remexidos, móveis arrastados. O telefone toca uma, duas, três vezes. Depois do quarto toque, a secretária eletrônica é acionada e a gravação ecoa no apartamento: - "Você ligou para 3282-9728. No momento não posso atender. Deixe o seu recado depois…" - O volume da secretária diminuiu e minha voz desapareceu como que abafada por alguma coisa colocada sobre o aparelho. A partir de agora as mensagens ficarão à espera de quem e quando as queira escutar. Recobro um pouco da calma. Alimento a esperança de que o porteiro desconfie de alguma coisa e não deixe Eduardo subir de volta ao apartamento quando retornar do caixa eletrônico. Melhor: algum amigo poderá dar uma passada rápida, como é costume aos sábados, para um drinque de fim de tarde. Tudo vai se resolver a tempo, penso, enquanto vasculho a memória tentando localizar de onde conheço o cara que está na sala e que atende por Jáder. Uma hora se passa desde que Eduardo saiu. O telefone toca sem parar. Com o volume da secretária abaixado, tudo o que escuto são bipes longínquos de mensagens sendo gravadas. A ansiedade toma conta. Algum contratempo deve ter ocorrido e Eduardo pode estar pensando que lhe dei a senha errada. Por isso tenta comunicar-se com Jáder. Repasso mentalmente o número para certificar-me de que não errei nenhum dígito: sete-oito-três-dois-nove. Quando o telefone soa de novo, faço movimentos bruscos na cama para chamar a atenção de Jáder. Ele aparece na porta do quarto apontando a arma na minha direção. Balanço a cabeça e movimento os olhos como que pedindo que ele tire a fita adesiva da minha boca para eu poder falar. Jáder faz sinal de negativo com o cano do revólver. Insisto nos movimentos com a cabeça e os olhos. Ele senta ao meu lado na cama, descola parcialmente a fita e retira da minha boca o lenço ensopado de cuspe. - Por favor, atenda o telefone - digo, ouvindo o bipe de outra mensagem sendo gravada. - Pode ser o seu companheiro, o Eduardo, chamando da rua. Jáder apressa-se até a sala, mas não chega a tempo. Tudo o que ouvimos é o bipe final da gravação de mais um recado. - Aperte o "rewind" para ouvir os recados gravados - sugiro. - Pssss… - Jáder sussurra, entrando de novo no quarto com o cano do revólver encostado nos lábios, indicando silêncio e revelando, naquele ângulo, novos traços de sua fisionomia familiar: do lado direito, o rosto parece carrancudo, desconfiado; do esquerdo, a expressão é apreensiva, tristonha. Não é um rosto bonito, mas tem um jeito perturbador. - Eduardo pode ter esquecido a senha - insisto. - Cala a boca! - diz, arreganhando de novo os dentes. - As mensagens podem ser do Eduardo chamando da rua - repito. - Ele pode achar que eu dei a senha errada. - Não sei mexer nessa geringonça - Jáder desconversa. - É só apertar o botão onde está escrito "rew". - Esse puto do Nélson já devia estar de volta - diz, exasperado, revelando, sem querer, o verdadeiro nome do companheiro e pela primeira vez deixando escapar uma ponta de nervosismo. - Não sei por que esse merda está demorando tanto. Vai ver sacou o dinheiro e foi embora, me deixou na mão. Noto em Jáder os sinais externos da enorme quantidade de cocaína que aspirou: expressão de cansaço, rosto coberto por um brilho gordurento, camisa manchada de suor. Tento acalmá-lo. E a melhor maneira de acalmar uma pessoa sob efeito de cocaína - digo por experiência própria - é conversar com ela, nunca deixá-la ruminando coisas. - Nélson? Pensei que o nome do seu companheiro fosse Eduardo. - Nélson, Eduardo, tanto faz. Nessa vida ninguém tem nome, qualquer nome serve. Jáder caminha de um lado para o outro dentro do apartamento, agora sem disfarçar a inquietação. Entra no quarto, dá voltas ao redor da cama roendo as unhas, pensativo, ignorando-me com a segurança de quem tem diante de si uma presa dominada. Observo seu rosto, a barba selvagem, a pele sardenta, o jeito altivo de caminhar e de pronunciar seu nome enfatizando cada sílaba com um sorriso irônico, como se os dentes de cavalo fossem seu sobrenome. Saltando de um porão da mente, o nome finalmente se revela: Benício. Será mesmo ele? Faz tempo que não o vejo. É minha chance de confirmar antes que o companheiro dele volte. Até porque nada tenho a perder. - Não lembro o seu nome, mas sei que não é Jáder - arrisco. - Bingo! Descobriu a América. - Estou falando sério, a gente se conhece. Não se lembra de mim? - Só falta dizer que dormiu comigo. - Dormi sim, Benício - atrevo-me a chamá-lo pelo nome. - Não lembra? Em Belo Horizonte, há muito tempo, uns dez anos... Benício volta-se para mim com uma expressão entre o susto e a dúvida. Reconheço, agora com certeza, aquele olhar que sempre me pareceu demoníaco, embora eu soubesse que, apesar da perversidade que transmitia à primeira vista, era um olhar submetido ao coração.

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