Em 'Patriotismo', Yukio Mishima revela seu extremismo político


Escritor japonês narra tentativa frustrada de golpe de Estado que acaba em suicídio, antecipando a maneira como ele próprio morreria

Por Flávio Ricardo Vassoler

Em Patriotismo (Editora Autêntica), o escritor e dramaturgo japonês Yukio Mishima (1925-1970), pseudônimo de Kimitake Hiraoka, narra o desenlace suicida, por meio do ritual do seppuku/harakiri, para o tenente Shinji Takeyama e sua esposa Reiko, após a tentativa frustrada de golpe de Estado perpetrada por jovens oficiais do Exército Imperial japonês, no episódio que ficou conhecido como incidente de 26 de fevereiro de 1936. 

'Rito de Amor e de Morte' (1966), filme dirigido por Yukio Mishima e Masaki Dômoto Foto: Yukio Mishima Production

Bastante ativos nos anos 1920 e 30, os golpistas de extrema direita da facção imperial pretendiam estabelecer um governo militar, totalitário e imperialista – algo como a versão nipônica do nazifascismo. Dadas as dissensões e clivagens nas forças armadas, a moderada facção de controle conseguiu desbaratar o golpe e submeter os oficiais a severas penas disciplinares ou mesmo a sentenças capitais. 

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Ainda que não pretendamos estabelecer, inequivocamente, ilações entre o trágico fim do tenente Shinji Takeyama e a morte do próprio Yukio Mishima, é importante frisar que, em novembro de 1970, o escritor e outros quatro membros da milícia privada Tatenokai renderam o comandante do quartel-general das forças de autodefesa japonesas em Tóquio. A Tatenokai (Sociedade dos Escudos) defendia os valores tradicionais japoneses, tais como a ética samurai, a prática do kendo, arte marcial à base de espadas desenvolvida à época do Japão feudal, e a veneração ao imperador, cujos poderes haviam sido cerceados após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e a consequente ocupação do país por tropas norte-americanas. Após a tomada do quartel-general, Mishima profere um discurso patriótico a fim de persuadir os soldados a restituírem plenos poderes ao imperador. Em face da indiferença da soldadela, Yukio Mishima comete suicídio por meio do seppuku e acaba por emular o fim das personagens de Patriotismo

Segundo a ética samurai, o seppuku configura uma morte altamente honorável, por meio da qual o suicida se oferece em holocausto e naufraga, heroicamente, junto com a sacralidade de sua causa. (Resguardadas as diferenças históricas e culturais, é possível entrever afinidades eletivas entre o seppuku e a paixão de Jesus Cristo, já que, de acordo com a tradicional interpretação católico-protestante, o Messias teria se oferecido em holocausto, por meio da crucificação, para expiar os nossos pecados.) Durante a Segunda Guerra Mundial, o teatro de operações no Oceano Pacífico se viu eivado pela temerária e desconcertante presença dos kamikazes, pilotos da força aérea japonesa que, a bordo de aviões repletos de explosivos, se lançavam contra as embarcações norte-americanas, seguindo a mesma (escato)lógica de sacrifício em nome da causa sagrada da pátria em guerra. 

Engana-se, no entanto, quem imagina que encontrará, ao longo de Patriotismo, uma narrativa transpassada univocamente por um fanatismo febril a ser arrematado pelo esventramento do tenente Takeyama e a consequente degola de Reiko, já que, na tradição samurai e patriarcal do seppuku, a mulher, servil por excelência, naufraga junto com o marido. Yukio Mishima centra a trama no recinto forrado por tatames em que o harakiri terá lugar. Mas, a despeito da morbidez final, o carinho e o desejo que marido e mulher nutrem um pelo outro despontam em imagens como que talhadas pela ourivesaria do poeta. É assim que, “alguns meses após o casamento, a beleza de Reiko se refinara, tornando-se nítida como a lua após a chuva”. Reiko, ademais, “já não se surpreendia com o fato de um homem que até alguns meses antes não passava de um completo desconhecido ter se tornado o sol de todo o seu mundo”.

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Em uma cena de amor ardente – é como se o desejo do casal (o falo, o sêmen) fosse ainda mais avivado pela morte iminente (a espada, o sangue) –, interpôs-se um silêncio entre Shinji e Reiko, em meio ao qual “havia uma limpidez semelhante à do curso de água formado pela neve derretida”. Súbito, enquanto faz cafunés no marido, Reiko discerne que “a pele do tenente tem um brilho semelhante ao de um campo de trigo”. Mas, “antes mesmo que se dessem conta, os dois estavam nus diante da chama do aquecedor. Embora permanecessem mudos, seus corações, seus corpos e seus peitos ofegantes ardiam com a consciência de que aquela seria sua última vez. Era como se as palavras ‘última vez’ estivessem gravadas com tinta nanquim invisível por todas as partes de seus corpos”.

Chegada a hora da despedida solene e sagrada, “o tenente sentou-se sobre os calcanhares e pousou o sabre no tatame, diante dos joelhos. Reiko sentou-se aprumada diante dele, mantendo entre os dois a distância de um tatame. Por estar toda de branco, o batom avermelhado em seus lábios se destacava de forma bastante sedutora”. [Diante do entrelaçamento visceral entre Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte na ardência de Shinji e Reiko, é possível discernir por que os franceses se referem ao cume vertiginoso do orgasmo como la petite mort (a pequena morte).]

Tomado pelo sentimento de honraria militar – era como se o tenente Takeyama tivesse levado Reiko para o campo de batalha, para que a esposa pudesse testemunhar a bravura de seu marido guerreiro a cavalgar o dorso da morte –, Shinji se regozija ao pensar que “ter cada momento de seu fim observado pelos lindos olhos de sua esposa era como se render à morte ao sopro de uma brisa fragrante”.

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“Longa Vida ao Exército Imperial!” – assim exclama o tenente Shinji Takeyama no momento em que sua lâmina de guerra está prestes a retalhá-lo. Enquanto isso, Reiko luta consigo mesma para evitar correr ao encontro do marido no instante em que ele introduz a lâmina no flanco esquerdo do abdômen. É quando ela vê, mediada pelo lirismo do narrador, “o sangue se esvair de sua face como uma cortina que se fecha bruscamente”.

A despeito da suma poesia com que Yukio Mishima embebe o ritual do seppuku, de modo a incensar ainda mais a aura historicamente honorável do autossacrifício, precisamos mediar nossa leitura de Patriotismo com o espírito da dúvida, esse movimento mundano, herético e inerentemente avesso a quaisquer fanatismos sacrificiais. Assim, em contraposição à certeza translúcida que conduz Shinji e Reiko ao cadafalso, o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) nos alerta para o fato de que “uma causa não é necessariamente verdadeira porque alguém morre por ela”. Imbuídos do espírito cético de Wilde (e em oposição ao patriotismo de Mishima), nós assim poderíamos sentenciar: melhor do que uma causa pela qual vale a pena morrer é uma causa pela qual vale a pena viver. 

Numa época ensandecida e enceguecida por fanatismos dos mais variados matizes – da negação da esfericidade da Terra e do aquecimento global à falta de afã político e científico, por parte de líderes tão despreparados quanto deslumbrados com a própria ignorância, para coibir uma das mais graves pandemias de que a humanidade já foi vítima –, é preciso temperar a leitura do belo e visceral Patriotismo com pinceladas céticas e bem-humoradas (você já viu um fanático conseguir rir de si mesmo?), de modo a insuflar ar democrático e plural nas certezas que se petrificam (e nos aprisionam) em dogmas ditatoriais. Afinal, ao fanático que despreza a própria vida a ponto de dar cabo de si mesmo em nome de uma causa (supostamente) inquestionável, não falta muito para que a vida do outro se torne igualmente perecível.

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Patriotismo Autor: Yukio Mishima Tradução: Victor Kinjo Editora: Autêntica 128 páginas R$ 67,90

*Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor de O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019). 

Em Patriotismo (Editora Autêntica), o escritor e dramaturgo japonês Yukio Mishima (1925-1970), pseudônimo de Kimitake Hiraoka, narra o desenlace suicida, por meio do ritual do seppuku/harakiri, para o tenente Shinji Takeyama e sua esposa Reiko, após a tentativa frustrada de golpe de Estado perpetrada por jovens oficiais do Exército Imperial japonês, no episódio que ficou conhecido como incidente de 26 de fevereiro de 1936. 

'Rito de Amor e de Morte' (1966), filme dirigido por Yukio Mishima e Masaki Dômoto Foto: Yukio Mishima Production

Bastante ativos nos anos 1920 e 30, os golpistas de extrema direita da facção imperial pretendiam estabelecer um governo militar, totalitário e imperialista – algo como a versão nipônica do nazifascismo. Dadas as dissensões e clivagens nas forças armadas, a moderada facção de controle conseguiu desbaratar o golpe e submeter os oficiais a severas penas disciplinares ou mesmo a sentenças capitais. 

Ainda que não pretendamos estabelecer, inequivocamente, ilações entre o trágico fim do tenente Shinji Takeyama e a morte do próprio Yukio Mishima, é importante frisar que, em novembro de 1970, o escritor e outros quatro membros da milícia privada Tatenokai renderam o comandante do quartel-general das forças de autodefesa japonesas em Tóquio. A Tatenokai (Sociedade dos Escudos) defendia os valores tradicionais japoneses, tais como a ética samurai, a prática do kendo, arte marcial à base de espadas desenvolvida à época do Japão feudal, e a veneração ao imperador, cujos poderes haviam sido cerceados após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e a consequente ocupação do país por tropas norte-americanas. Após a tomada do quartel-general, Mishima profere um discurso patriótico a fim de persuadir os soldados a restituírem plenos poderes ao imperador. Em face da indiferença da soldadela, Yukio Mishima comete suicídio por meio do seppuku e acaba por emular o fim das personagens de Patriotismo

Segundo a ética samurai, o seppuku configura uma morte altamente honorável, por meio da qual o suicida se oferece em holocausto e naufraga, heroicamente, junto com a sacralidade de sua causa. (Resguardadas as diferenças históricas e culturais, é possível entrever afinidades eletivas entre o seppuku e a paixão de Jesus Cristo, já que, de acordo com a tradicional interpretação católico-protestante, o Messias teria se oferecido em holocausto, por meio da crucificação, para expiar os nossos pecados.) Durante a Segunda Guerra Mundial, o teatro de operações no Oceano Pacífico se viu eivado pela temerária e desconcertante presença dos kamikazes, pilotos da força aérea japonesa que, a bordo de aviões repletos de explosivos, se lançavam contra as embarcações norte-americanas, seguindo a mesma (escato)lógica de sacrifício em nome da causa sagrada da pátria em guerra. 

Engana-se, no entanto, quem imagina que encontrará, ao longo de Patriotismo, uma narrativa transpassada univocamente por um fanatismo febril a ser arrematado pelo esventramento do tenente Takeyama e a consequente degola de Reiko, já que, na tradição samurai e patriarcal do seppuku, a mulher, servil por excelência, naufraga junto com o marido. Yukio Mishima centra a trama no recinto forrado por tatames em que o harakiri terá lugar. Mas, a despeito da morbidez final, o carinho e o desejo que marido e mulher nutrem um pelo outro despontam em imagens como que talhadas pela ourivesaria do poeta. É assim que, “alguns meses após o casamento, a beleza de Reiko se refinara, tornando-se nítida como a lua após a chuva”. Reiko, ademais, “já não se surpreendia com o fato de um homem que até alguns meses antes não passava de um completo desconhecido ter se tornado o sol de todo o seu mundo”.

Em uma cena de amor ardente – é como se o desejo do casal (o falo, o sêmen) fosse ainda mais avivado pela morte iminente (a espada, o sangue) –, interpôs-se um silêncio entre Shinji e Reiko, em meio ao qual “havia uma limpidez semelhante à do curso de água formado pela neve derretida”. Súbito, enquanto faz cafunés no marido, Reiko discerne que “a pele do tenente tem um brilho semelhante ao de um campo de trigo”. Mas, “antes mesmo que se dessem conta, os dois estavam nus diante da chama do aquecedor. Embora permanecessem mudos, seus corações, seus corpos e seus peitos ofegantes ardiam com a consciência de que aquela seria sua última vez. Era como se as palavras ‘última vez’ estivessem gravadas com tinta nanquim invisível por todas as partes de seus corpos”.

Chegada a hora da despedida solene e sagrada, “o tenente sentou-se sobre os calcanhares e pousou o sabre no tatame, diante dos joelhos. Reiko sentou-se aprumada diante dele, mantendo entre os dois a distância de um tatame. Por estar toda de branco, o batom avermelhado em seus lábios se destacava de forma bastante sedutora”. [Diante do entrelaçamento visceral entre Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte na ardência de Shinji e Reiko, é possível discernir por que os franceses se referem ao cume vertiginoso do orgasmo como la petite mort (a pequena morte).]

Tomado pelo sentimento de honraria militar – era como se o tenente Takeyama tivesse levado Reiko para o campo de batalha, para que a esposa pudesse testemunhar a bravura de seu marido guerreiro a cavalgar o dorso da morte –, Shinji se regozija ao pensar que “ter cada momento de seu fim observado pelos lindos olhos de sua esposa era como se render à morte ao sopro de uma brisa fragrante”.

“Longa Vida ao Exército Imperial!” – assim exclama o tenente Shinji Takeyama no momento em que sua lâmina de guerra está prestes a retalhá-lo. Enquanto isso, Reiko luta consigo mesma para evitar correr ao encontro do marido no instante em que ele introduz a lâmina no flanco esquerdo do abdômen. É quando ela vê, mediada pelo lirismo do narrador, “o sangue se esvair de sua face como uma cortina que se fecha bruscamente”.

A despeito da suma poesia com que Yukio Mishima embebe o ritual do seppuku, de modo a incensar ainda mais a aura historicamente honorável do autossacrifício, precisamos mediar nossa leitura de Patriotismo com o espírito da dúvida, esse movimento mundano, herético e inerentemente avesso a quaisquer fanatismos sacrificiais. Assim, em contraposição à certeza translúcida que conduz Shinji e Reiko ao cadafalso, o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) nos alerta para o fato de que “uma causa não é necessariamente verdadeira porque alguém morre por ela”. Imbuídos do espírito cético de Wilde (e em oposição ao patriotismo de Mishima), nós assim poderíamos sentenciar: melhor do que uma causa pela qual vale a pena morrer é uma causa pela qual vale a pena viver. 

Numa época ensandecida e enceguecida por fanatismos dos mais variados matizes – da negação da esfericidade da Terra e do aquecimento global à falta de afã político e científico, por parte de líderes tão despreparados quanto deslumbrados com a própria ignorância, para coibir uma das mais graves pandemias de que a humanidade já foi vítima –, é preciso temperar a leitura do belo e visceral Patriotismo com pinceladas céticas e bem-humoradas (você já viu um fanático conseguir rir de si mesmo?), de modo a insuflar ar democrático e plural nas certezas que se petrificam (e nos aprisionam) em dogmas ditatoriais. Afinal, ao fanático que despreza a própria vida a ponto de dar cabo de si mesmo em nome de uma causa (supostamente) inquestionável, não falta muito para que a vida do outro se torne igualmente perecível.

Patriotismo Autor: Yukio Mishima Tradução: Victor Kinjo Editora: Autêntica 128 páginas R$ 67,90

*Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor de O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019). 

Em Patriotismo (Editora Autêntica), o escritor e dramaturgo japonês Yukio Mishima (1925-1970), pseudônimo de Kimitake Hiraoka, narra o desenlace suicida, por meio do ritual do seppuku/harakiri, para o tenente Shinji Takeyama e sua esposa Reiko, após a tentativa frustrada de golpe de Estado perpetrada por jovens oficiais do Exército Imperial japonês, no episódio que ficou conhecido como incidente de 26 de fevereiro de 1936. 

'Rito de Amor e de Morte' (1966), filme dirigido por Yukio Mishima e Masaki Dômoto Foto: Yukio Mishima Production

Bastante ativos nos anos 1920 e 30, os golpistas de extrema direita da facção imperial pretendiam estabelecer um governo militar, totalitário e imperialista – algo como a versão nipônica do nazifascismo. Dadas as dissensões e clivagens nas forças armadas, a moderada facção de controle conseguiu desbaratar o golpe e submeter os oficiais a severas penas disciplinares ou mesmo a sentenças capitais. 

Ainda que não pretendamos estabelecer, inequivocamente, ilações entre o trágico fim do tenente Shinji Takeyama e a morte do próprio Yukio Mishima, é importante frisar que, em novembro de 1970, o escritor e outros quatro membros da milícia privada Tatenokai renderam o comandante do quartel-general das forças de autodefesa japonesas em Tóquio. A Tatenokai (Sociedade dos Escudos) defendia os valores tradicionais japoneses, tais como a ética samurai, a prática do kendo, arte marcial à base de espadas desenvolvida à época do Japão feudal, e a veneração ao imperador, cujos poderes haviam sido cerceados após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e a consequente ocupação do país por tropas norte-americanas. Após a tomada do quartel-general, Mishima profere um discurso patriótico a fim de persuadir os soldados a restituírem plenos poderes ao imperador. Em face da indiferença da soldadela, Yukio Mishima comete suicídio por meio do seppuku e acaba por emular o fim das personagens de Patriotismo

Segundo a ética samurai, o seppuku configura uma morte altamente honorável, por meio da qual o suicida se oferece em holocausto e naufraga, heroicamente, junto com a sacralidade de sua causa. (Resguardadas as diferenças históricas e culturais, é possível entrever afinidades eletivas entre o seppuku e a paixão de Jesus Cristo, já que, de acordo com a tradicional interpretação católico-protestante, o Messias teria se oferecido em holocausto, por meio da crucificação, para expiar os nossos pecados.) Durante a Segunda Guerra Mundial, o teatro de operações no Oceano Pacífico se viu eivado pela temerária e desconcertante presença dos kamikazes, pilotos da força aérea japonesa que, a bordo de aviões repletos de explosivos, se lançavam contra as embarcações norte-americanas, seguindo a mesma (escato)lógica de sacrifício em nome da causa sagrada da pátria em guerra. 

Engana-se, no entanto, quem imagina que encontrará, ao longo de Patriotismo, uma narrativa transpassada univocamente por um fanatismo febril a ser arrematado pelo esventramento do tenente Takeyama e a consequente degola de Reiko, já que, na tradição samurai e patriarcal do seppuku, a mulher, servil por excelência, naufraga junto com o marido. Yukio Mishima centra a trama no recinto forrado por tatames em que o harakiri terá lugar. Mas, a despeito da morbidez final, o carinho e o desejo que marido e mulher nutrem um pelo outro despontam em imagens como que talhadas pela ourivesaria do poeta. É assim que, “alguns meses após o casamento, a beleza de Reiko se refinara, tornando-se nítida como a lua após a chuva”. Reiko, ademais, “já não se surpreendia com o fato de um homem que até alguns meses antes não passava de um completo desconhecido ter se tornado o sol de todo o seu mundo”.

Em uma cena de amor ardente – é como se o desejo do casal (o falo, o sêmen) fosse ainda mais avivado pela morte iminente (a espada, o sangue) –, interpôs-se um silêncio entre Shinji e Reiko, em meio ao qual “havia uma limpidez semelhante à do curso de água formado pela neve derretida”. Súbito, enquanto faz cafunés no marido, Reiko discerne que “a pele do tenente tem um brilho semelhante ao de um campo de trigo”. Mas, “antes mesmo que se dessem conta, os dois estavam nus diante da chama do aquecedor. Embora permanecessem mudos, seus corações, seus corpos e seus peitos ofegantes ardiam com a consciência de que aquela seria sua última vez. Era como se as palavras ‘última vez’ estivessem gravadas com tinta nanquim invisível por todas as partes de seus corpos”.

Chegada a hora da despedida solene e sagrada, “o tenente sentou-se sobre os calcanhares e pousou o sabre no tatame, diante dos joelhos. Reiko sentou-se aprumada diante dele, mantendo entre os dois a distância de um tatame. Por estar toda de branco, o batom avermelhado em seus lábios se destacava de forma bastante sedutora”. [Diante do entrelaçamento visceral entre Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte na ardência de Shinji e Reiko, é possível discernir por que os franceses se referem ao cume vertiginoso do orgasmo como la petite mort (a pequena morte).]

Tomado pelo sentimento de honraria militar – era como se o tenente Takeyama tivesse levado Reiko para o campo de batalha, para que a esposa pudesse testemunhar a bravura de seu marido guerreiro a cavalgar o dorso da morte –, Shinji se regozija ao pensar que “ter cada momento de seu fim observado pelos lindos olhos de sua esposa era como se render à morte ao sopro de uma brisa fragrante”.

“Longa Vida ao Exército Imperial!” – assim exclama o tenente Shinji Takeyama no momento em que sua lâmina de guerra está prestes a retalhá-lo. Enquanto isso, Reiko luta consigo mesma para evitar correr ao encontro do marido no instante em que ele introduz a lâmina no flanco esquerdo do abdômen. É quando ela vê, mediada pelo lirismo do narrador, “o sangue se esvair de sua face como uma cortina que se fecha bruscamente”.

A despeito da suma poesia com que Yukio Mishima embebe o ritual do seppuku, de modo a incensar ainda mais a aura historicamente honorável do autossacrifício, precisamos mediar nossa leitura de Patriotismo com o espírito da dúvida, esse movimento mundano, herético e inerentemente avesso a quaisquer fanatismos sacrificiais. Assim, em contraposição à certeza translúcida que conduz Shinji e Reiko ao cadafalso, o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) nos alerta para o fato de que “uma causa não é necessariamente verdadeira porque alguém morre por ela”. Imbuídos do espírito cético de Wilde (e em oposição ao patriotismo de Mishima), nós assim poderíamos sentenciar: melhor do que uma causa pela qual vale a pena morrer é uma causa pela qual vale a pena viver. 

Numa época ensandecida e enceguecida por fanatismos dos mais variados matizes – da negação da esfericidade da Terra e do aquecimento global à falta de afã político e científico, por parte de líderes tão despreparados quanto deslumbrados com a própria ignorância, para coibir uma das mais graves pandemias de que a humanidade já foi vítima –, é preciso temperar a leitura do belo e visceral Patriotismo com pinceladas céticas e bem-humoradas (você já viu um fanático conseguir rir de si mesmo?), de modo a insuflar ar democrático e plural nas certezas que se petrificam (e nos aprisionam) em dogmas ditatoriais. Afinal, ao fanático que despreza a própria vida a ponto de dar cabo de si mesmo em nome de uma causa (supostamente) inquestionável, não falta muito para que a vida do outro se torne igualmente perecível.

Patriotismo Autor: Yukio Mishima Tradução: Victor Kinjo Editora: Autêntica 128 páginas R$ 67,90

*Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor de O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019). 

Em Patriotismo (Editora Autêntica), o escritor e dramaturgo japonês Yukio Mishima (1925-1970), pseudônimo de Kimitake Hiraoka, narra o desenlace suicida, por meio do ritual do seppuku/harakiri, para o tenente Shinji Takeyama e sua esposa Reiko, após a tentativa frustrada de golpe de Estado perpetrada por jovens oficiais do Exército Imperial japonês, no episódio que ficou conhecido como incidente de 26 de fevereiro de 1936. 

'Rito de Amor e de Morte' (1966), filme dirigido por Yukio Mishima e Masaki Dômoto Foto: Yukio Mishima Production

Bastante ativos nos anos 1920 e 30, os golpistas de extrema direita da facção imperial pretendiam estabelecer um governo militar, totalitário e imperialista – algo como a versão nipônica do nazifascismo. Dadas as dissensões e clivagens nas forças armadas, a moderada facção de controle conseguiu desbaratar o golpe e submeter os oficiais a severas penas disciplinares ou mesmo a sentenças capitais. 

Ainda que não pretendamos estabelecer, inequivocamente, ilações entre o trágico fim do tenente Shinji Takeyama e a morte do próprio Yukio Mishima, é importante frisar que, em novembro de 1970, o escritor e outros quatro membros da milícia privada Tatenokai renderam o comandante do quartel-general das forças de autodefesa japonesas em Tóquio. A Tatenokai (Sociedade dos Escudos) defendia os valores tradicionais japoneses, tais como a ética samurai, a prática do kendo, arte marcial à base de espadas desenvolvida à época do Japão feudal, e a veneração ao imperador, cujos poderes haviam sido cerceados após a derrota japonesa na Segunda Guerra Mundial e a consequente ocupação do país por tropas norte-americanas. Após a tomada do quartel-general, Mishima profere um discurso patriótico a fim de persuadir os soldados a restituírem plenos poderes ao imperador. Em face da indiferença da soldadela, Yukio Mishima comete suicídio por meio do seppuku e acaba por emular o fim das personagens de Patriotismo

Segundo a ética samurai, o seppuku configura uma morte altamente honorável, por meio da qual o suicida se oferece em holocausto e naufraga, heroicamente, junto com a sacralidade de sua causa. (Resguardadas as diferenças históricas e culturais, é possível entrever afinidades eletivas entre o seppuku e a paixão de Jesus Cristo, já que, de acordo com a tradicional interpretação católico-protestante, o Messias teria se oferecido em holocausto, por meio da crucificação, para expiar os nossos pecados.) Durante a Segunda Guerra Mundial, o teatro de operações no Oceano Pacífico se viu eivado pela temerária e desconcertante presença dos kamikazes, pilotos da força aérea japonesa que, a bordo de aviões repletos de explosivos, se lançavam contra as embarcações norte-americanas, seguindo a mesma (escato)lógica de sacrifício em nome da causa sagrada da pátria em guerra. 

Engana-se, no entanto, quem imagina que encontrará, ao longo de Patriotismo, uma narrativa transpassada univocamente por um fanatismo febril a ser arrematado pelo esventramento do tenente Takeyama e a consequente degola de Reiko, já que, na tradição samurai e patriarcal do seppuku, a mulher, servil por excelência, naufraga junto com o marido. Yukio Mishima centra a trama no recinto forrado por tatames em que o harakiri terá lugar. Mas, a despeito da morbidez final, o carinho e o desejo que marido e mulher nutrem um pelo outro despontam em imagens como que talhadas pela ourivesaria do poeta. É assim que, “alguns meses após o casamento, a beleza de Reiko se refinara, tornando-se nítida como a lua após a chuva”. Reiko, ademais, “já não se surpreendia com o fato de um homem que até alguns meses antes não passava de um completo desconhecido ter se tornado o sol de todo o seu mundo”.

Em uma cena de amor ardente – é como se o desejo do casal (o falo, o sêmen) fosse ainda mais avivado pela morte iminente (a espada, o sangue) –, interpôs-se um silêncio entre Shinji e Reiko, em meio ao qual “havia uma limpidez semelhante à do curso de água formado pela neve derretida”. Súbito, enquanto faz cafunés no marido, Reiko discerne que “a pele do tenente tem um brilho semelhante ao de um campo de trigo”. Mas, “antes mesmo que se dessem conta, os dois estavam nus diante da chama do aquecedor. Embora permanecessem mudos, seus corações, seus corpos e seus peitos ofegantes ardiam com a consciência de que aquela seria sua última vez. Era como se as palavras ‘última vez’ estivessem gravadas com tinta nanquim invisível por todas as partes de seus corpos”.

Chegada a hora da despedida solene e sagrada, “o tenente sentou-se sobre os calcanhares e pousou o sabre no tatame, diante dos joelhos. Reiko sentou-se aprumada diante dele, mantendo entre os dois a distância de um tatame. Por estar toda de branco, o batom avermelhado em seus lábios se destacava de forma bastante sedutora”. [Diante do entrelaçamento visceral entre Eros e Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte na ardência de Shinji e Reiko, é possível discernir por que os franceses se referem ao cume vertiginoso do orgasmo como la petite mort (a pequena morte).]

Tomado pelo sentimento de honraria militar – era como se o tenente Takeyama tivesse levado Reiko para o campo de batalha, para que a esposa pudesse testemunhar a bravura de seu marido guerreiro a cavalgar o dorso da morte –, Shinji se regozija ao pensar que “ter cada momento de seu fim observado pelos lindos olhos de sua esposa era como se render à morte ao sopro de uma brisa fragrante”.

“Longa Vida ao Exército Imperial!” – assim exclama o tenente Shinji Takeyama no momento em que sua lâmina de guerra está prestes a retalhá-lo. Enquanto isso, Reiko luta consigo mesma para evitar correr ao encontro do marido no instante em que ele introduz a lâmina no flanco esquerdo do abdômen. É quando ela vê, mediada pelo lirismo do narrador, “o sangue se esvair de sua face como uma cortina que se fecha bruscamente”.

A despeito da suma poesia com que Yukio Mishima embebe o ritual do seppuku, de modo a incensar ainda mais a aura historicamente honorável do autossacrifício, precisamos mediar nossa leitura de Patriotismo com o espírito da dúvida, esse movimento mundano, herético e inerentemente avesso a quaisquer fanatismos sacrificiais. Assim, em contraposição à certeza translúcida que conduz Shinji e Reiko ao cadafalso, o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) nos alerta para o fato de que “uma causa não é necessariamente verdadeira porque alguém morre por ela”. Imbuídos do espírito cético de Wilde (e em oposição ao patriotismo de Mishima), nós assim poderíamos sentenciar: melhor do que uma causa pela qual vale a pena morrer é uma causa pela qual vale a pena viver. 

Numa época ensandecida e enceguecida por fanatismos dos mais variados matizes – da negação da esfericidade da Terra e do aquecimento global à falta de afã político e científico, por parte de líderes tão despreparados quanto deslumbrados com a própria ignorância, para coibir uma das mais graves pandemias de que a humanidade já foi vítima –, é preciso temperar a leitura do belo e visceral Patriotismo com pinceladas céticas e bem-humoradas (você já viu um fanático conseguir rir de si mesmo?), de modo a insuflar ar democrático e plural nas certezas que se petrificam (e nos aprisionam) em dogmas ditatoriais. Afinal, ao fanático que despreza a própria vida a ponto de dar cabo de si mesmo em nome de uma causa (supostamente) inquestionável, não falta muito para que a vida do outro se torne igualmente perecível.

Patriotismo Autor: Yukio Mishima Tradução: Victor Kinjo Editora: Autêntica 128 páginas R$ 67,90

*Flávio Ricardo Vassoler, escritor e professor, é doutor em Letras pela USP, com pós-doutorado em Literatura Russa pela Northwestern University (EUA). É autor de O evangelho segundo talião (nVersos, 2013), Tiro de misericórdia (nVersos, 2014), Dostoiévski e a dialética: Fetichismo da forma, utopia como conteúdo (Hedra, 2018) e Diário de um escritor na Rússia (Hedra, 2019). 

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