O livro A Máquina Performática: A Literatura no Campo Experimental, dos ensaístas argentinos Gonzalo Aguilar e Mario Cámara, ambos professores de literatura brasileira na Universidade de Buenos Aires, está dividido em quatro capítulos, dedicados a revelar um aspecto pouco estudado da literatura nacional: “A ideia é convocar a performance para mostrar que sua presença transforma as leituras de uma obra”. Abrangendo diferentes momentos históricos (privilegia-se, porém, a época vanguardista, na qual a máquina performática acelerou seu funcionamento), os dois primeiros capítulos são dedicados ao século 20, enquanto os outros, justamente os mais instigantes, adentram o século 21, tratando, sobretudo o último, das singularidades da literatura atual.
Do primeiro capítulo, Nudez Sem Vergonha, destacarei o resgate do Movimento Arte Pornô, dos anos 1980, cujos textos eram muitas vezes escritos à mão e traziam “marcas corporais (lábios que deixam uma marca de batom, por exemplo) como se escrita e corpo fossem parte de um mesmo devir”. Um dos seus expoentes, Eduardo Kac, explorou depois o holograma e chegou à arte transgênica, como somos informados numa breve nota: “Desse modo, em uma deriva inesperada, mas lógica em relação às transformações políticas, Kac se centrou no caráter performativo da ciência e no papel dos laboratórios na modificação dos corpos vivos”. É uma pena que os ensaístas não tenham explorado mais o papel do corpo na obra desse artista singular, preferindo, em vez disso, propor uma sucinta genealogia da nudez na cultura brasileira, citando autores consagrados, como Jorge Amado e Nelson Rodrigues.
No capítulo seguinte, Mapas Acústicos, Constelações Sonoras, valorizam as origens modernistas da nossa literatura, fazendo uma leitura, por exemplo, do célebre poema O Sapo, de Manuel Bandeira, mas a parte mais reveladora é o breve comentário, muito perspicaz, sobre o “farfalho” (o não dizer ou o dizer pela metade), que caracteriza as vocalizações do romancista João Gilberto Noll: “As leituras públicas de Noll proporcionam outras interpretações para seus textos, descobrem em sua prosa caudalosa e dinâmica as marcas desse farfalho”. Ao caracterizar esse tipo de discurso como um solilóquio hesitante, os autores concluem: “O farfalho permite a constituição de uma língua literária sempre próxima do fracasso e do desvario, é um procedimento que estilhaça tramas e gêneros”.
No terceiro capítulo, Espaços: Táticas de Ocupação, o mais abrangente de todos, os autores citam a carta de Pero Vaz de Caminha, os pré-modernistas, os modernistas e os pós-modernistas, e, no final, falam da criatividade no espaço público do nosso século, com destaque para os saraus, que utilizam todos os gêneros já estabelecidos: “O corpo que recita não só se coloca como testemunha de uma vida (e um pertencimento social), mas também dota os textos de inflexões coloquiais, gestos de rua e, frequentemente, um ritmo de rap e hip-hop que combina oposição e pertencimento”, afirmam. É nesse momento, segundo Aguilar e Cámara, que a senzala e o quarto de despejo tomam a palavra na literatura brasileira.
Se a modernidade literária era o tema principal dos outros capítulos, no último, A Máscara e a Pose, estamos em tempos de Facebook, mas, curiosamente, o escritor contemporâneo não está reduzido à sua dimensão virtual. “Desde 2000, a vida literária no Brasil tem exigido cada vez mais a presença física do autor, ao mesmo tempo em que sua projeção virtual”, constatam os ensaístas, que então se debruçam sobre as feiras literárias. O escritor bem-sucedido é, nesse contexto, um tipo de figura pública, realizando constantes viagens de divulgação no Brasil e no exterior. Porém, sobre o que escreve o autor contemporâneo? “Sem lugar para grandes gestos, sem mártires, cínicos ou românticos”, sustentam Gonzalo e Cámara, no final do livro, “desfazer-se do enigma do escritor modernista parece ser a performance do presente”.
Essa “performance do presente” teria, no entanto, um componente polêmico, a ira. É a tese mais ousada do livro, e também a mais discutível. Primeiro, os ensaístas afirmam que, nos últimos anos, “é difícil encontrar na cultura brasileira momentos de ira”, o que, a meu ver, pode ser facilmente contestado, oferecendo exemplos de atitudes irascíveis que nunca deixaram de existir; a seguir, acrescentam: “Em 2013, entretanto, com o prenúncio da Copa do Mundo no Brasil, as palavras de Luiz Ruffato no discurso de abertura da Feira de Frankfurt pareciam anunciar uma nova performance da ira, talvez em sintonia com as manifestações de rua então recentes, ainda frescas na memória dos brasileiros”. O debate sobre a ira contemporânea está apenas começando, e este livro, fácil de ler, chama a atenção para sua pertinência e atualidade.
*Sérgio Medeiros é poeta, dramaturgo e ensaísta. Publicou, entre outros, os livros 'A Idolatria Poética e a Febre de Imagens' (poesia) e 'As Emas do General Stroessner' (teatro), ambos pela editora Iluminuras
A Máquina Performática Autores: Mario Cámara e Gonzalo AguilarTradução: Gênese AndradeEditora: Rocco 192 páginas R$ 34,50