Entenda por que obras de arte se tornaram alvo de ativistas do clima


Entre as justificativas dos ativistas, um objetivo fica claro ao atacar as pinturas: obter holofotes da mídia

Por Jerônimo Teixeira

Em 1914, uma ativista rasgou uma tela de Diego Velázquez na National Gallery, em Londres. Mary Richardson, uma sufragista (militante pelo direito das mulheres ao voto), deu golpes de cutelo em Vênus no Espelho. A obra foi restaurada. Na mesma National Gallery, no mês passado, duas jovens, em um ato de protesto contra o consumo de combustíveis fósseis, jogaram sopa de tomate em Os Girassóis, de Vincent Van Gogh, e depois colaram suas mãos à parede abaixo do quadro. Protegida por um vidro, a tela não sofreu dano. Ataques similares vêm se repetindo desde meados do ano em museus europeus (houve só um caso fora da Europa: na Austrália, dois ambientalistas colaram as mãos em um quadro de Pablo Picasso). O ato tresloucado de Mary Richardson oferece um paralelo esclarecedor para compreender o significado desse surto de vandalismo: hoje como em 1914, os ataques a obras-primas têm a intenção declarada de apoiar causas de importância indiscutível, mas, na verdade, expressam uma hostilidade obscurantista à arte.

Mary Richardson alegou que sua tentativa de destruir “o quadro da mais bela mulher na história mitológica” foi um protesto contra a perseguição do governo à líder sufragista Emmeline Pankhurst, que teria “o mais belo caráter da história moderna”. O paralelo entre beleza física e espiritual deixa suspeitar um fundo puritano na agressão à obra de Velázquez. Único nu conhecido do mestre espanhol, Vênus no Espelho flagra a deusa da beleza na intimidade de seus aposentos, deitada de costas para o espectador. Mary mais tarde admitiria que ficava incomodada com o olhar lúbrico que os homens dedicavam às nádegas de Vênus.

Ativistas do 'Just Stop Oil' jogam sopa de tomate na tela 'Os Girassóis', de Van Gogh  Foto: EFE / EFE
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As justificativas para ações ambientalistas em museus não são mais consistentes. Por que atacar objetos produzidos há séculos e que não emitem carbono na atmosfera? Busca-se o efeito de choque, que se propaga pela internet: os ataques são gravados e divulgados em redes sociais. Nos discursos que berram nos museus, os ativistas às vezes sugerem que esse choque está mal direcionado: as pessoas se horrorizariam com danos a uma obra de arte, mas seriam indiferentes à destruição do planeta. É possível, claro, preocupar-se tanto com a qualidade do ar que respiramos quanto com a preservação da herança cultural –, mas, para o fervor militante, devotar-se a qualquer outra atividade que não o combate aos combustíveis fósseis constitui um pecado. Esta é, de novo, uma noção puritana. Em suas manifestações mais extremas, o puritanismo não abomina somente arte de conteúdo sexual: rejeita a arte como um todo, pois ela é uma distração, um desvio do espírito.

O primeiro ataque do ano, em maio, foi contra um quadro que não ofenderia Mary Richardson: a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, abrigada pelo Louvre, em Paris. Um homem jogou uma torta no vidro que protege a obra, gritando frases desconexas sobre a destruição do planeta. Ele não era ligado a grupos ambientalistas. Na virada de junho para julho, o movimento britânico Just Stop Oil (Pare com o Petróleo) – também responsável pela sopa de tomate na tela Os Girassóis, de Van Gogh – realizou quatro ações em diferentes museus do Reino Unido. Na National Gallery, cobriram A Carroça de Feno, paisagem pastoril do inglês John Constable, com uma versão apocalíptica do quadro, na qual o céu azul do original aparecia coberto pela fumaça das fábricas. Em julho, o grupo italiano Ultima Generazione (Última Geração) ganhou os holofotes quando dois de seus membros colaram as mãos ao vidro que protege A Primavera, de Sandro Botticelli, na Galeria Uffizi, de Florença. Em outubro, dias depois da sopa de tomate na National Gallery, ativistas do Letze Generation (Última Geração – não relacionado ao movimento italiano de mesmo nome), da Alemanha, jogaram purê de batata em uma pintura de Claude Monet, no museu Barberini, em Potsdam. No caso mais recente, em 30 de outubro, um homem jogou sangue falso em um quadro de Toulouse Lautrec, na Alte Nationalgalerie, de Berlim. Não se sabe sua motivação. Na competição pela maior bizarria, ganha o Just Stop Oil. Um militante do grupo colou a cabeça no vidro que protege Moça com Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer, em um museu de Haia, na Holanda.

A polícia do lado de fora do museu Mauritshuis, após ativistas tentarem manchar a pintura 'Moça com brinco de pérola', de Johannes Vermeer Foto: PHIL NIJHUIS/AFP
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Guardas atentos no Museu de Orsay, em Paris, conseguiram deter uma ativista que planejava jogar sopa de tomate em mais um Van Gogh. Mas não há muito o que os museus possam fazer, se não quiserem implementar normas de segurança draconianas. Três museus paulistanos consultados pelo Estadão – Masp, MAM e Pinacoteca – se mostraram um tanto reticentes em expor suas medidas de segurança. A Pinacoteca tem detector de metal, o MAM informa que tem câmeras, o Masp não quis dar detalhes, mas se sabe que sua segurança revista bolsas e mochilas.

Pelo menos dois protagonistas da onda de vandalismo, Just Stop Oil e Letze Generation, recebem dinheiro do Fundo Climático Internacional, que financia ações para deter o aquecimento global. Uma das maiores doadoras do fundo, a herdeira Aileen Getty – neta do magnata do petróleo Paul Getty –, publicou um artigo no jornal inglês The Guardian defendendo as ativistas que cobriram Os Girassóis de sopa. Afirmou que elas teriam “dado início a uma conversa sobre os problemas que realmente interessam”. Parece ter esquecido que, neste século, a conversa sobre a crise climática nunca saiu da pauta da imprensa e dos encontros de alto nível entre nações (se a conversa levou a providências efetivas é outro problema). E o filistinismo agressivo da militância climática só desqualifica o debate. Ninguém está discutindo, por exemplo, se seria exequível parar toda a produção de petróleo, como reivindicam os movimentos envolvidos. Em quase todos os textos na imprensa sobre ativistas que emporcalham obras de arte – incluindo o artigo de Aileen Getty e o texto que o leitor tem em mãos –, o tema não é emissão de carbono e mudança climática: discute-se apenas se essa linha de ação é válida.

Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura

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A resposta simples é não, não é válida. Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura. Mais: se esses protestos continuarem, as seguradoras podem cobrar mais pela cobertura de grandes acervos – como alerta, em entrevista à The Atlantic, o cientista do clima Jonathan Foley, que já foi diretor de um museu de ciências –, debilitando a saúde financeira de instituições que preservam o legado dos séculos.

A arte estava sob cerco antes da cola e do purê de batatas. O ambiente intelectual criado pelas novas esquerdas identitárias favorece a noção estreita de que museus são instituições excludentes devotadas à preservação de obras que reafirmam o privilégio branco e patriarcal. Ativistas ligados a essas causas já andavam pelos museus colando etiquetas junto aos quadros para denunciar a misoginia de Picasso ou a pedofilia de Gauguin. Um coletivo feminista chamado Guerrilla Girls especializou-se em inventariar museus para levantar a porcentagem de artistas mulheres nas paredes (previsivelmente baixa, pois por muito tempo estúdios e academias eram de fato espaços masculinos) e também a porcentagem de mulheres nuas retratadas (e assim retornamos ao puritanismo de Mary Richardson). Ao reconhecerem um inimigo até na celebração de Monet à cor e às luzes da natureza, os movimentos antipetróleo reforçam esse ódio à arte.

Obra do pintor Claude Monet é atingida por purê de batatas Foto: Associated Press
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O ativismo radical ainda não se compara ao Taleban, que dinamitou estátuas milenares de Buda no Afeganistão, ou ao padre dominicano Girolamo Savanarola, que na Florença do século 15 fez fogueiras com quadros de artistas da Renascença. Mas as ações contra obras protegidas por vidro guardam sempre a ameaça de que um dia se causará dano real a um Van Gogh ou a um Vermeer. Eventuais danos à causa não parecem importar para o Just Stop Oil. “Não estamos aqui para fazer amigos, mas para causar a mudança”, declarou um porta-voz do grupo quando um repórter do The Guardian perguntou se o ataque a Van Gogh não afastaria o cidadão comum. Esse culto da ação pela ação tem péssimo histórico político. A propósito, Mary Richardson, nos anos 1930, aderiu ao movimento fascista inglês.

Em 1914, uma ativista rasgou uma tela de Diego Velázquez na National Gallery, em Londres. Mary Richardson, uma sufragista (militante pelo direito das mulheres ao voto), deu golpes de cutelo em Vênus no Espelho. A obra foi restaurada. Na mesma National Gallery, no mês passado, duas jovens, em um ato de protesto contra o consumo de combustíveis fósseis, jogaram sopa de tomate em Os Girassóis, de Vincent Van Gogh, e depois colaram suas mãos à parede abaixo do quadro. Protegida por um vidro, a tela não sofreu dano. Ataques similares vêm se repetindo desde meados do ano em museus europeus (houve só um caso fora da Europa: na Austrália, dois ambientalistas colaram as mãos em um quadro de Pablo Picasso). O ato tresloucado de Mary Richardson oferece um paralelo esclarecedor para compreender o significado desse surto de vandalismo: hoje como em 1914, os ataques a obras-primas têm a intenção declarada de apoiar causas de importância indiscutível, mas, na verdade, expressam uma hostilidade obscurantista à arte.

Mary Richardson alegou que sua tentativa de destruir “o quadro da mais bela mulher na história mitológica” foi um protesto contra a perseguição do governo à líder sufragista Emmeline Pankhurst, que teria “o mais belo caráter da história moderna”. O paralelo entre beleza física e espiritual deixa suspeitar um fundo puritano na agressão à obra de Velázquez. Único nu conhecido do mestre espanhol, Vênus no Espelho flagra a deusa da beleza na intimidade de seus aposentos, deitada de costas para o espectador. Mary mais tarde admitiria que ficava incomodada com o olhar lúbrico que os homens dedicavam às nádegas de Vênus.

Ativistas do 'Just Stop Oil' jogam sopa de tomate na tela 'Os Girassóis', de Van Gogh  Foto: EFE / EFE

As justificativas para ações ambientalistas em museus não são mais consistentes. Por que atacar objetos produzidos há séculos e que não emitem carbono na atmosfera? Busca-se o efeito de choque, que se propaga pela internet: os ataques são gravados e divulgados em redes sociais. Nos discursos que berram nos museus, os ativistas às vezes sugerem que esse choque está mal direcionado: as pessoas se horrorizariam com danos a uma obra de arte, mas seriam indiferentes à destruição do planeta. É possível, claro, preocupar-se tanto com a qualidade do ar que respiramos quanto com a preservação da herança cultural –, mas, para o fervor militante, devotar-se a qualquer outra atividade que não o combate aos combustíveis fósseis constitui um pecado. Esta é, de novo, uma noção puritana. Em suas manifestações mais extremas, o puritanismo não abomina somente arte de conteúdo sexual: rejeita a arte como um todo, pois ela é uma distração, um desvio do espírito.

O primeiro ataque do ano, em maio, foi contra um quadro que não ofenderia Mary Richardson: a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, abrigada pelo Louvre, em Paris. Um homem jogou uma torta no vidro que protege a obra, gritando frases desconexas sobre a destruição do planeta. Ele não era ligado a grupos ambientalistas. Na virada de junho para julho, o movimento britânico Just Stop Oil (Pare com o Petróleo) – também responsável pela sopa de tomate na tela Os Girassóis, de Van Gogh – realizou quatro ações em diferentes museus do Reino Unido. Na National Gallery, cobriram A Carroça de Feno, paisagem pastoril do inglês John Constable, com uma versão apocalíptica do quadro, na qual o céu azul do original aparecia coberto pela fumaça das fábricas. Em julho, o grupo italiano Ultima Generazione (Última Geração) ganhou os holofotes quando dois de seus membros colaram as mãos ao vidro que protege A Primavera, de Sandro Botticelli, na Galeria Uffizi, de Florença. Em outubro, dias depois da sopa de tomate na National Gallery, ativistas do Letze Generation (Última Geração – não relacionado ao movimento italiano de mesmo nome), da Alemanha, jogaram purê de batata em uma pintura de Claude Monet, no museu Barberini, em Potsdam. No caso mais recente, em 30 de outubro, um homem jogou sangue falso em um quadro de Toulouse Lautrec, na Alte Nationalgalerie, de Berlim. Não se sabe sua motivação. Na competição pela maior bizarria, ganha o Just Stop Oil. Um militante do grupo colou a cabeça no vidro que protege Moça com Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer, em um museu de Haia, na Holanda.

A polícia do lado de fora do museu Mauritshuis, após ativistas tentarem manchar a pintura 'Moça com brinco de pérola', de Johannes Vermeer Foto: PHIL NIJHUIS/AFP

Guardas atentos no Museu de Orsay, em Paris, conseguiram deter uma ativista que planejava jogar sopa de tomate em mais um Van Gogh. Mas não há muito o que os museus possam fazer, se não quiserem implementar normas de segurança draconianas. Três museus paulistanos consultados pelo Estadão – Masp, MAM e Pinacoteca – se mostraram um tanto reticentes em expor suas medidas de segurança. A Pinacoteca tem detector de metal, o MAM informa que tem câmeras, o Masp não quis dar detalhes, mas se sabe que sua segurança revista bolsas e mochilas.

Pelo menos dois protagonistas da onda de vandalismo, Just Stop Oil e Letze Generation, recebem dinheiro do Fundo Climático Internacional, que financia ações para deter o aquecimento global. Uma das maiores doadoras do fundo, a herdeira Aileen Getty – neta do magnata do petróleo Paul Getty –, publicou um artigo no jornal inglês The Guardian defendendo as ativistas que cobriram Os Girassóis de sopa. Afirmou que elas teriam “dado início a uma conversa sobre os problemas que realmente interessam”. Parece ter esquecido que, neste século, a conversa sobre a crise climática nunca saiu da pauta da imprensa e dos encontros de alto nível entre nações (se a conversa levou a providências efetivas é outro problema). E o filistinismo agressivo da militância climática só desqualifica o debate. Ninguém está discutindo, por exemplo, se seria exequível parar toda a produção de petróleo, como reivindicam os movimentos envolvidos. Em quase todos os textos na imprensa sobre ativistas que emporcalham obras de arte – incluindo o artigo de Aileen Getty e o texto que o leitor tem em mãos –, o tema não é emissão de carbono e mudança climática: discute-se apenas se essa linha de ação é válida.

Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura

A resposta simples é não, não é válida. Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura. Mais: se esses protestos continuarem, as seguradoras podem cobrar mais pela cobertura de grandes acervos – como alerta, em entrevista à The Atlantic, o cientista do clima Jonathan Foley, que já foi diretor de um museu de ciências –, debilitando a saúde financeira de instituições que preservam o legado dos séculos.

A arte estava sob cerco antes da cola e do purê de batatas. O ambiente intelectual criado pelas novas esquerdas identitárias favorece a noção estreita de que museus são instituições excludentes devotadas à preservação de obras que reafirmam o privilégio branco e patriarcal. Ativistas ligados a essas causas já andavam pelos museus colando etiquetas junto aos quadros para denunciar a misoginia de Picasso ou a pedofilia de Gauguin. Um coletivo feminista chamado Guerrilla Girls especializou-se em inventariar museus para levantar a porcentagem de artistas mulheres nas paredes (previsivelmente baixa, pois por muito tempo estúdios e academias eram de fato espaços masculinos) e também a porcentagem de mulheres nuas retratadas (e assim retornamos ao puritanismo de Mary Richardson). Ao reconhecerem um inimigo até na celebração de Monet à cor e às luzes da natureza, os movimentos antipetróleo reforçam esse ódio à arte.

Obra do pintor Claude Monet é atingida por purê de batatas Foto: Associated Press

O ativismo radical ainda não se compara ao Taleban, que dinamitou estátuas milenares de Buda no Afeganistão, ou ao padre dominicano Girolamo Savanarola, que na Florença do século 15 fez fogueiras com quadros de artistas da Renascença. Mas as ações contra obras protegidas por vidro guardam sempre a ameaça de que um dia se causará dano real a um Van Gogh ou a um Vermeer. Eventuais danos à causa não parecem importar para o Just Stop Oil. “Não estamos aqui para fazer amigos, mas para causar a mudança”, declarou um porta-voz do grupo quando um repórter do The Guardian perguntou se o ataque a Van Gogh não afastaria o cidadão comum. Esse culto da ação pela ação tem péssimo histórico político. A propósito, Mary Richardson, nos anos 1930, aderiu ao movimento fascista inglês.

Em 1914, uma ativista rasgou uma tela de Diego Velázquez na National Gallery, em Londres. Mary Richardson, uma sufragista (militante pelo direito das mulheres ao voto), deu golpes de cutelo em Vênus no Espelho. A obra foi restaurada. Na mesma National Gallery, no mês passado, duas jovens, em um ato de protesto contra o consumo de combustíveis fósseis, jogaram sopa de tomate em Os Girassóis, de Vincent Van Gogh, e depois colaram suas mãos à parede abaixo do quadro. Protegida por um vidro, a tela não sofreu dano. Ataques similares vêm se repetindo desde meados do ano em museus europeus (houve só um caso fora da Europa: na Austrália, dois ambientalistas colaram as mãos em um quadro de Pablo Picasso). O ato tresloucado de Mary Richardson oferece um paralelo esclarecedor para compreender o significado desse surto de vandalismo: hoje como em 1914, os ataques a obras-primas têm a intenção declarada de apoiar causas de importância indiscutível, mas, na verdade, expressam uma hostilidade obscurantista à arte.

Mary Richardson alegou que sua tentativa de destruir “o quadro da mais bela mulher na história mitológica” foi um protesto contra a perseguição do governo à líder sufragista Emmeline Pankhurst, que teria “o mais belo caráter da história moderna”. O paralelo entre beleza física e espiritual deixa suspeitar um fundo puritano na agressão à obra de Velázquez. Único nu conhecido do mestre espanhol, Vênus no Espelho flagra a deusa da beleza na intimidade de seus aposentos, deitada de costas para o espectador. Mary mais tarde admitiria que ficava incomodada com o olhar lúbrico que os homens dedicavam às nádegas de Vênus.

Ativistas do 'Just Stop Oil' jogam sopa de tomate na tela 'Os Girassóis', de Van Gogh  Foto: EFE / EFE

As justificativas para ações ambientalistas em museus não são mais consistentes. Por que atacar objetos produzidos há séculos e que não emitem carbono na atmosfera? Busca-se o efeito de choque, que se propaga pela internet: os ataques são gravados e divulgados em redes sociais. Nos discursos que berram nos museus, os ativistas às vezes sugerem que esse choque está mal direcionado: as pessoas se horrorizariam com danos a uma obra de arte, mas seriam indiferentes à destruição do planeta. É possível, claro, preocupar-se tanto com a qualidade do ar que respiramos quanto com a preservação da herança cultural –, mas, para o fervor militante, devotar-se a qualquer outra atividade que não o combate aos combustíveis fósseis constitui um pecado. Esta é, de novo, uma noção puritana. Em suas manifestações mais extremas, o puritanismo não abomina somente arte de conteúdo sexual: rejeita a arte como um todo, pois ela é uma distração, um desvio do espírito.

O primeiro ataque do ano, em maio, foi contra um quadro que não ofenderia Mary Richardson: a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, abrigada pelo Louvre, em Paris. Um homem jogou uma torta no vidro que protege a obra, gritando frases desconexas sobre a destruição do planeta. Ele não era ligado a grupos ambientalistas. Na virada de junho para julho, o movimento britânico Just Stop Oil (Pare com o Petróleo) – também responsável pela sopa de tomate na tela Os Girassóis, de Van Gogh – realizou quatro ações em diferentes museus do Reino Unido. Na National Gallery, cobriram A Carroça de Feno, paisagem pastoril do inglês John Constable, com uma versão apocalíptica do quadro, na qual o céu azul do original aparecia coberto pela fumaça das fábricas. Em julho, o grupo italiano Ultima Generazione (Última Geração) ganhou os holofotes quando dois de seus membros colaram as mãos ao vidro que protege A Primavera, de Sandro Botticelli, na Galeria Uffizi, de Florença. Em outubro, dias depois da sopa de tomate na National Gallery, ativistas do Letze Generation (Última Geração – não relacionado ao movimento italiano de mesmo nome), da Alemanha, jogaram purê de batata em uma pintura de Claude Monet, no museu Barberini, em Potsdam. No caso mais recente, em 30 de outubro, um homem jogou sangue falso em um quadro de Toulouse Lautrec, na Alte Nationalgalerie, de Berlim. Não se sabe sua motivação. Na competição pela maior bizarria, ganha o Just Stop Oil. Um militante do grupo colou a cabeça no vidro que protege Moça com Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer, em um museu de Haia, na Holanda.

A polícia do lado de fora do museu Mauritshuis, após ativistas tentarem manchar a pintura 'Moça com brinco de pérola', de Johannes Vermeer Foto: PHIL NIJHUIS/AFP

Guardas atentos no Museu de Orsay, em Paris, conseguiram deter uma ativista que planejava jogar sopa de tomate em mais um Van Gogh. Mas não há muito o que os museus possam fazer, se não quiserem implementar normas de segurança draconianas. Três museus paulistanos consultados pelo Estadão – Masp, MAM e Pinacoteca – se mostraram um tanto reticentes em expor suas medidas de segurança. A Pinacoteca tem detector de metal, o MAM informa que tem câmeras, o Masp não quis dar detalhes, mas se sabe que sua segurança revista bolsas e mochilas.

Pelo menos dois protagonistas da onda de vandalismo, Just Stop Oil e Letze Generation, recebem dinheiro do Fundo Climático Internacional, que financia ações para deter o aquecimento global. Uma das maiores doadoras do fundo, a herdeira Aileen Getty – neta do magnata do petróleo Paul Getty –, publicou um artigo no jornal inglês The Guardian defendendo as ativistas que cobriram Os Girassóis de sopa. Afirmou que elas teriam “dado início a uma conversa sobre os problemas que realmente interessam”. Parece ter esquecido que, neste século, a conversa sobre a crise climática nunca saiu da pauta da imprensa e dos encontros de alto nível entre nações (se a conversa levou a providências efetivas é outro problema). E o filistinismo agressivo da militância climática só desqualifica o debate. Ninguém está discutindo, por exemplo, se seria exequível parar toda a produção de petróleo, como reivindicam os movimentos envolvidos. Em quase todos os textos na imprensa sobre ativistas que emporcalham obras de arte – incluindo o artigo de Aileen Getty e o texto que o leitor tem em mãos –, o tema não é emissão de carbono e mudança climática: discute-se apenas se essa linha de ação é válida.

Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura

A resposta simples é não, não é válida. Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura. Mais: se esses protestos continuarem, as seguradoras podem cobrar mais pela cobertura de grandes acervos – como alerta, em entrevista à The Atlantic, o cientista do clima Jonathan Foley, que já foi diretor de um museu de ciências –, debilitando a saúde financeira de instituições que preservam o legado dos séculos.

A arte estava sob cerco antes da cola e do purê de batatas. O ambiente intelectual criado pelas novas esquerdas identitárias favorece a noção estreita de que museus são instituições excludentes devotadas à preservação de obras que reafirmam o privilégio branco e patriarcal. Ativistas ligados a essas causas já andavam pelos museus colando etiquetas junto aos quadros para denunciar a misoginia de Picasso ou a pedofilia de Gauguin. Um coletivo feminista chamado Guerrilla Girls especializou-se em inventariar museus para levantar a porcentagem de artistas mulheres nas paredes (previsivelmente baixa, pois por muito tempo estúdios e academias eram de fato espaços masculinos) e também a porcentagem de mulheres nuas retratadas (e assim retornamos ao puritanismo de Mary Richardson). Ao reconhecerem um inimigo até na celebração de Monet à cor e às luzes da natureza, os movimentos antipetróleo reforçam esse ódio à arte.

Obra do pintor Claude Monet é atingida por purê de batatas Foto: Associated Press

O ativismo radical ainda não se compara ao Taleban, que dinamitou estátuas milenares de Buda no Afeganistão, ou ao padre dominicano Girolamo Savanarola, que na Florença do século 15 fez fogueiras com quadros de artistas da Renascença. Mas as ações contra obras protegidas por vidro guardam sempre a ameaça de que um dia se causará dano real a um Van Gogh ou a um Vermeer. Eventuais danos à causa não parecem importar para o Just Stop Oil. “Não estamos aqui para fazer amigos, mas para causar a mudança”, declarou um porta-voz do grupo quando um repórter do The Guardian perguntou se o ataque a Van Gogh não afastaria o cidadão comum. Esse culto da ação pela ação tem péssimo histórico político. A propósito, Mary Richardson, nos anos 1930, aderiu ao movimento fascista inglês.

Em 1914, uma ativista rasgou uma tela de Diego Velázquez na National Gallery, em Londres. Mary Richardson, uma sufragista (militante pelo direito das mulheres ao voto), deu golpes de cutelo em Vênus no Espelho. A obra foi restaurada. Na mesma National Gallery, no mês passado, duas jovens, em um ato de protesto contra o consumo de combustíveis fósseis, jogaram sopa de tomate em Os Girassóis, de Vincent Van Gogh, e depois colaram suas mãos à parede abaixo do quadro. Protegida por um vidro, a tela não sofreu dano. Ataques similares vêm se repetindo desde meados do ano em museus europeus (houve só um caso fora da Europa: na Austrália, dois ambientalistas colaram as mãos em um quadro de Pablo Picasso). O ato tresloucado de Mary Richardson oferece um paralelo esclarecedor para compreender o significado desse surto de vandalismo: hoje como em 1914, os ataques a obras-primas têm a intenção declarada de apoiar causas de importância indiscutível, mas, na verdade, expressam uma hostilidade obscurantista à arte.

Mary Richardson alegou que sua tentativa de destruir “o quadro da mais bela mulher na história mitológica” foi um protesto contra a perseguição do governo à líder sufragista Emmeline Pankhurst, que teria “o mais belo caráter da história moderna”. O paralelo entre beleza física e espiritual deixa suspeitar um fundo puritano na agressão à obra de Velázquez. Único nu conhecido do mestre espanhol, Vênus no Espelho flagra a deusa da beleza na intimidade de seus aposentos, deitada de costas para o espectador. Mary mais tarde admitiria que ficava incomodada com o olhar lúbrico que os homens dedicavam às nádegas de Vênus.

Ativistas do 'Just Stop Oil' jogam sopa de tomate na tela 'Os Girassóis', de Van Gogh  Foto: EFE / EFE

As justificativas para ações ambientalistas em museus não são mais consistentes. Por que atacar objetos produzidos há séculos e que não emitem carbono na atmosfera? Busca-se o efeito de choque, que se propaga pela internet: os ataques são gravados e divulgados em redes sociais. Nos discursos que berram nos museus, os ativistas às vezes sugerem que esse choque está mal direcionado: as pessoas se horrorizariam com danos a uma obra de arte, mas seriam indiferentes à destruição do planeta. É possível, claro, preocupar-se tanto com a qualidade do ar que respiramos quanto com a preservação da herança cultural –, mas, para o fervor militante, devotar-se a qualquer outra atividade que não o combate aos combustíveis fósseis constitui um pecado. Esta é, de novo, uma noção puritana. Em suas manifestações mais extremas, o puritanismo não abomina somente arte de conteúdo sexual: rejeita a arte como um todo, pois ela é uma distração, um desvio do espírito.

O primeiro ataque do ano, em maio, foi contra um quadro que não ofenderia Mary Richardson: a Mona Lisa de Leonardo da Vinci, abrigada pelo Louvre, em Paris. Um homem jogou uma torta no vidro que protege a obra, gritando frases desconexas sobre a destruição do planeta. Ele não era ligado a grupos ambientalistas. Na virada de junho para julho, o movimento britânico Just Stop Oil (Pare com o Petróleo) – também responsável pela sopa de tomate na tela Os Girassóis, de Van Gogh – realizou quatro ações em diferentes museus do Reino Unido. Na National Gallery, cobriram A Carroça de Feno, paisagem pastoril do inglês John Constable, com uma versão apocalíptica do quadro, na qual o céu azul do original aparecia coberto pela fumaça das fábricas. Em julho, o grupo italiano Ultima Generazione (Última Geração) ganhou os holofotes quando dois de seus membros colaram as mãos ao vidro que protege A Primavera, de Sandro Botticelli, na Galeria Uffizi, de Florença. Em outubro, dias depois da sopa de tomate na National Gallery, ativistas do Letze Generation (Última Geração – não relacionado ao movimento italiano de mesmo nome), da Alemanha, jogaram purê de batata em uma pintura de Claude Monet, no museu Barberini, em Potsdam. No caso mais recente, em 30 de outubro, um homem jogou sangue falso em um quadro de Toulouse Lautrec, na Alte Nationalgalerie, de Berlim. Não se sabe sua motivação. Na competição pela maior bizarria, ganha o Just Stop Oil. Um militante do grupo colou a cabeça no vidro que protege Moça com Brinco de Pérola, de Johannes Vermeer, em um museu de Haia, na Holanda.

A polícia do lado de fora do museu Mauritshuis, após ativistas tentarem manchar a pintura 'Moça com brinco de pérola', de Johannes Vermeer Foto: PHIL NIJHUIS/AFP

Guardas atentos no Museu de Orsay, em Paris, conseguiram deter uma ativista que planejava jogar sopa de tomate em mais um Van Gogh. Mas não há muito o que os museus possam fazer, se não quiserem implementar normas de segurança draconianas. Três museus paulistanos consultados pelo Estadão – Masp, MAM e Pinacoteca – se mostraram um tanto reticentes em expor suas medidas de segurança. A Pinacoteca tem detector de metal, o MAM informa que tem câmeras, o Masp não quis dar detalhes, mas se sabe que sua segurança revista bolsas e mochilas.

Pelo menos dois protagonistas da onda de vandalismo, Just Stop Oil e Letze Generation, recebem dinheiro do Fundo Climático Internacional, que financia ações para deter o aquecimento global. Uma das maiores doadoras do fundo, a herdeira Aileen Getty – neta do magnata do petróleo Paul Getty –, publicou um artigo no jornal inglês The Guardian defendendo as ativistas que cobriram Os Girassóis de sopa. Afirmou que elas teriam “dado início a uma conversa sobre os problemas que realmente interessam”. Parece ter esquecido que, neste século, a conversa sobre a crise climática nunca saiu da pauta da imprensa e dos encontros de alto nível entre nações (se a conversa levou a providências efetivas é outro problema). E o filistinismo agressivo da militância climática só desqualifica o debate. Ninguém está discutindo, por exemplo, se seria exequível parar toda a produção de petróleo, como reivindicam os movimentos envolvidos. Em quase todos os textos na imprensa sobre ativistas que emporcalham obras de arte – incluindo o artigo de Aileen Getty e o texto que o leitor tem em mãos –, o tema não é emissão de carbono e mudança climática: discute-se apenas se essa linha de ação é válida.

Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura

A resposta simples é não, não é válida. Os ativistas querem fazer crer que cometem um crime sem vítimas, pois escolhem obras protegidas por vidros, mas essa proteção não é 100% segura. Mais: se esses protestos continuarem, as seguradoras podem cobrar mais pela cobertura de grandes acervos – como alerta, em entrevista à The Atlantic, o cientista do clima Jonathan Foley, que já foi diretor de um museu de ciências –, debilitando a saúde financeira de instituições que preservam o legado dos séculos.

A arte estava sob cerco antes da cola e do purê de batatas. O ambiente intelectual criado pelas novas esquerdas identitárias favorece a noção estreita de que museus são instituições excludentes devotadas à preservação de obras que reafirmam o privilégio branco e patriarcal. Ativistas ligados a essas causas já andavam pelos museus colando etiquetas junto aos quadros para denunciar a misoginia de Picasso ou a pedofilia de Gauguin. Um coletivo feminista chamado Guerrilla Girls especializou-se em inventariar museus para levantar a porcentagem de artistas mulheres nas paredes (previsivelmente baixa, pois por muito tempo estúdios e academias eram de fato espaços masculinos) e também a porcentagem de mulheres nuas retratadas (e assim retornamos ao puritanismo de Mary Richardson). Ao reconhecerem um inimigo até na celebração de Monet à cor e às luzes da natureza, os movimentos antipetróleo reforçam esse ódio à arte.

Obra do pintor Claude Monet é atingida por purê de batatas Foto: Associated Press

O ativismo radical ainda não se compara ao Taleban, que dinamitou estátuas milenares de Buda no Afeganistão, ou ao padre dominicano Girolamo Savanarola, que na Florença do século 15 fez fogueiras com quadros de artistas da Renascença. Mas as ações contra obras protegidas por vidro guardam sempre a ameaça de que um dia se causará dano real a um Van Gogh ou a um Vermeer. Eventuais danos à causa não parecem importar para o Just Stop Oil. “Não estamos aqui para fazer amigos, mas para causar a mudança”, declarou um porta-voz do grupo quando um repórter do The Guardian perguntou se o ataque a Van Gogh não afastaria o cidadão comum. Esse culto da ação pela ação tem péssimo histórico político. A propósito, Mary Richardson, nos anos 1930, aderiu ao movimento fascista inglês.

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