Entenda porque T.S. Eliot escreveu sobre angústia e devastação


Poeta captou a essência de sentimentos nobres, como o amor e a tristeza, e foi Prêmio Nobel de Literatura de 1948

Por Michael Dirda

Para citar a descrição do novo e hipnotizante livro de Robert Crawford, The Waste Land, de T.S. Eliot, era – e é – um poema sobre “ruína e quebrantamento, dor e devastação”, mas essas mesmas palavras poderiam facilmente caracterizar o casamento desastroso de seu autor. Em 1915, Eliot pediu Vivien Haigh-Wood em casamento, em parte para satisfazer um desejo de experiência sexual que ele era muito tímido para buscar de outras maneiras. Seguindo “a terrível ousadia de um momento de rendição / Que uma era de prudência jamais pode retratar”, o jovem poeta se viu acorrentado a uma mulher carente e frágil – mulher por quem passou a sentir indiferença, depois compadecimento, depois ódio. Ele acabaria buscando amor e compreensão em outro lugar.

Em Eliot After ‘The Waste Land’, Crawford detalha, com notável imparcialidade acadêmica, uma vida de “confusão complexa e contraditória”. O livro vem depois de Young Eliot (2015), que acompanhou a infância de classe média alta do poeta em St. Louis, a educação em Harvard e as viagens europeias como estudante de filosofia, encerrando-se com a publicação de The Waste Land, em 1922.

Esta segunda metade da biografia de Crawford começa com um relato do breve e insatisfatório caso amoroso de Eliot com a rica e notoriamente promíscua Nancy Cunard. Pouco depois, porém, esse marido infeliz viu seus pensamentos se voltarem para a garota que ele havia deixado para trás na América, Emily Hale. Com o tempo, Eliot e Hale iniciaram uma intensa correspondência que se desenrolaria por mais de 20 anos. Qualquer disfarce de mera amizade logo se desfez: “Eu literalmente daria meus olhos para me casar com você (...). Se algum dia eu me ver livre, pedirei que se case comigo”. Grande parte da narrativa de Crawford se baseia nessa correspondência, que estava sob sigilo até 2020.

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Ilustração baseada no poema de T.S Eliot, 'Sweeney Agonistes,, por Francis Bacon Foto: The Washington Post

Concomitante ao flerte epistolar, Eliot estava se descobrindo “classicista na literatura, monarquista na política e anglo-católico na religião”. Ele ansiava por aquilo que chamou, em seu grande ensaio sobre Dante, de “mundo de dignidade, razão e ordem”. Seu compromisso com um anglicanismo excepcionalmente austero revolucionou a vida posterior de Eliot, mas arruinou a de Hale. Os laços do matrimônio, ele disse a ela repetidas vezes, eram sacrossantos. Não poderia haver divórcio. Ainda assim, os dois se encontraram ocasionalmente durante os anos entreguerras – tanto na América quanto na Inglaterra – no que parecem ter sido tardes de desejo decoroso. Hale acalentaria por muito tempo a lembrança de seus poucos beijos, enquanto Eliot celebraria, em “Burnt Norton”, seus passeios e, profeticamente, “os caminhos que não tomamos / Rumo à porta que nunca abrimos/ Para o jardim de rosas”.

Nem mesmo grandes poetas conseguem viver de sua poesia – The Waste Land vendeu apenas uns 330 exemplares nos primeiros seis meses – então Eliot, a partir de meados da década de 1920, trabalhou como diretor de uma nova editora chamada Faber & Faber. De seu escritório, ele adquiria manuscritos, supervisionava a revista cultural New Criterion e se correspondia com os maiores poetas e intelectuais conservadores. Para a diversão de seu afilhado, Tom Faber, ele regularmente enviava ao menino versos nonsense de Edward Learish, mais tarde reaproveitados em Old Possum’s Book of Practical Cats, de 1939, e, mais tarde ainda, no musical ‘Cats’, de Andrew Lloyd Webber.

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Tanto Vivien quanto Eliot sofriam quase continuamente de uma série de doenças. As dela incluíam inflamação intestinal, falta de ar, gripe, herpes zoster, instabilidade emocional e mental, drástica perda de peso – em certo momento, ela chegou a cair para 36 quilos. Já Eliot secundava sua esposa com resfriados recorrentes, problemas brônquicos, dentes seriamente deteriorados (cinco foram extraídos em uma consulta odontológica), uma hérnia que exigia uso de cinta, uma cirurgia no dedo e períodos frequentes de exaustão nervosa. Ele também bebia bastante, até cinco doses de gim no jantar.

O poeta T. S. Eliot, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura e criou um fenômeno com 'Cats' Foto: Acervo Estadão

Crawford estima que só no ano de 1925 o casal gastou um terço de sua renda em médicos, remédios e internações em hospitais e sanatórios. Durante os anos 30, Eliot providenciou para que a cada vez mais problemática Vivien – a certa altura, ele se perguntou se ela poderia estar sofrendo de “possessão demoníaca” – fosse cuidada em várias casas de repouso e, em 1938, assinou documentos que a internavam em um asilo. Com uma covardia digna de Prufrock, ele o fez por carta, enquanto estava fora do país. Ele nunca mais a viu.

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A poesia de Eliot muitas vezes reflete essas convulsões emocionais e espirituais, começando com a desolação de The Hollow Men, de 1925, progredindo para o drama nos versos sagrados sobre a morte de Thomas Becket, ‘Murder in the Cathedral’ (1935) e culminando na sombria obra-prima religioso-filosófica ‘Four Quartets’. Compostas entre 1936 e 1942, ‘Burnt Norton’, ‘East Coker’ (meu favorito), ‘The Dry Salvages’ e ‘Little Gidding’ se baseiam forte, ainda que obliquamente, no amor de Eliot por Hale, no passado de sua família e nas experiências do poeta durante a blitz de Londres.

E, então, em 1947, Vivien morreu. Nesse ponto, Eliot, agora livre, de repente recuou diante da perspectiva de realmente se casar com Hale, a quem escreveu: “Não posso, não posso começar a vida de novo e me adaptar (o que significa não apenas um momento, mas uma adaptação perpétua para o resto da vida) a qualquer outra pessoa”. Hale ficou arrasada, mas ficou esperando que ele mudasse de ideia. Em 1948, Eliot recebeu o Prêmio Nobel de literatura, caracterizando a honra como “um passaporte para o funeral. Ninguém nunca fez nada depois que o recebeu”. Ele está, fundamentalmente, correto. A partir de então, Eliot seria principalmente um homem público sorridente, dando palestras sobre o humanismo cristão e recebendo títulos honoríficos.

Cartão de Natal enviado por T.S. Eliot a Russell Kirk, um de seus biógrafos, autor de 'A Era de T. S. Eliot'  Foto: Acervo Estadão
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Até o final dos anos 1940 e meados dos anos 50, este poeta mundialmente famoso dividiu aposentos com o espirituoso bibliófilo John Hayward. (Recomendo vivamente a rica biografia de Hayward escrita por John Smart, Tarantula’s Web). O quarto de Eliot era extravagantemente ascético: uma cama de solteiro, um crucifixo de ébano, uma lâmpada nua pendurada na corrente. Mas, muito cedo em certa manhã de 1957, o “inquilino” de Hayward anunciou – sem aviso prévio, por carta – que não voltaria no dia seguinte ou, de fato, nunca. Eliot, de 68 anos, pediu em casamento – por carta! – sua adorável secretária de 30 anos, Valerie Fletcher, e a resposta foi sim. No devido tempo, Hale recebeu uma outra carta, revelando essa traição final. Durante os últimos sete anos de vida, Eliot ficou apaixonado por sua jovem noiva, e os dois se tornaram inseparáveis. Ele morreu em 1965, aos 76 anos.

Antes disso, no entanto, Eliot queimou as cartas de Hale e, ao saber que ela estava depositando as dele em Princeton, datilografou uma nota lamentosa e grosseira declarando que ele nunca a amara, que ela era apenas uma filisteia e que se casar com ela o teria matado como poeta. Talvez essa última parte seja verdade, mas a nota certamente mata o respeito por Eliot, o homem.

Depois de saber disso, como perdoá-lo? Talvez não seja possível, mas tenha em mente que o foco de Crawford na vida privada de Eliot resulta em um quadro parcial, que desloca as realizações intelectuais e artísticas do poeta para segundo plano. Portanto, embora essas revelações muitas vezes angustiantes nos concedam uma visão mais profunda de Eliot e, consequentemente, de sua obra, é a poesia – e a crítica – que nos interessa. Depois de terminar Eliot After ‘The Waste Land’, peguei o carro e coloquei um CD de Jeremy Irons lendo “Four Quartets”. Comovido e empolgado como sempre, continuei dirigindo até o último verso, quando “o fogo e a rosa se fazem um só”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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Eliot After ‘The Waste Land’

Robert Crawford

Farrar, Straus and Giroux - 624 páginas - US $40

Para citar a descrição do novo e hipnotizante livro de Robert Crawford, The Waste Land, de T.S. Eliot, era – e é – um poema sobre “ruína e quebrantamento, dor e devastação”, mas essas mesmas palavras poderiam facilmente caracterizar o casamento desastroso de seu autor. Em 1915, Eliot pediu Vivien Haigh-Wood em casamento, em parte para satisfazer um desejo de experiência sexual que ele era muito tímido para buscar de outras maneiras. Seguindo “a terrível ousadia de um momento de rendição / Que uma era de prudência jamais pode retratar”, o jovem poeta se viu acorrentado a uma mulher carente e frágil – mulher por quem passou a sentir indiferença, depois compadecimento, depois ódio. Ele acabaria buscando amor e compreensão em outro lugar.

Em Eliot After ‘The Waste Land’, Crawford detalha, com notável imparcialidade acadêmica, uma vida de “confusão complexa e contraditória”. O livro vem depois de Young Eliot (2015), que acompanhou a infância de classe média alta do poeta em St. Louis, a educação em Harvard e as viagens europeias como estudante de filosofia, encerrando-se com a publicação de The Waste Land, em 1922.

Esta segunda metade da biografia de Crawford começa com um relato do breve e insatisfatório caso amoroso de Eliot com a rica e notoriamente promíscua Nancy Cunard. Pouco depois, porém, esse marido infeliz viu seus pensamentos se voltarem para a garota que ele havia deixado para trás na América, Emily Hale. Com o tempo, Eliot e Hale iniciaram uma intensa correspondência que se desenrolaria por mais de 20 anos. Qualquer disfarce de mera amizade logo se desfez: “Eu literalmente daria meus olhos para me casar com você (...). Se algum dia eu me ver livre, pedirei que se case comigo”. Grande parte da narrativa de Crawford se baseia nessa correspondência, que estava sob sigilo até 2020.

Ilustração baseada no poema de T.S Eliot, 'Sweeney Agonistes,, por Francis Bacon Foto: The Washington Post

Concomitante ao flerte epistolar, Eliot estava se descobrindo “classicista na literatura, monarquista na política e anglo-católico na religião”. Ele ansiava por aquilo que chamou, em seu grande ensaio sobre Dante, de “mundo de dignidade, razão e ordem”. Seu compromisso com um anglicanismo excepcionalmente austero revolucionou a vida posterior de Eliot, mas arruinou a de Hale. Os laços do matrimônio, ele disse a ela repetidas vezes, eram sacrossantos. Não poderia haver divórcio. Ainda assim, os dois se encontraram ocasionalmente durante os anos entreguerras – tanto na América quanto na Inglaterra – no que parecem ter sido tardes de desejo decoroso. Hale acalentaria por muito tempo a lembrança de seus poucos beijos, enquanto Eliot celebraria, em “Burnt Norton”, seus passeios e, profeticamente, “os caminhos que não tomamos / Rumo à porta que nunca abrimos/ Para o jardim de rosas”.

Nem mesmo grandes poetas conseguem viver de sua poesia – The Waste Land vendeu apenas uns 330 exemplares nos primeiros seis meses – então Eliot, a partir de meados da década de 1920, trabalhou como diretor de uma nova editora chamada Faber & Faber. De seu escritório, ele adquiria manuscritos, supervisionava a revista cultural New Criterion e se correspondia com os maiores poetas e intelectuais conservadores. Para a diversão de seu afilhado, Tom Faber, ele regularmente enviava ao menino versos nonsense de Edward Learish, mais tarde reaproveitados em Old Possum’s Book of Practical Cats, de 1939, e, mais tarde ainda, no musical ‘Cats’, de Andrew Lloyd Webber.

Tanto Vivien quanto Eliot sofriam quase continuamente de uma série de doenças. As dela incluíam inflamação intestinal, falta de ar, gripe, herpes zoster, instabilidade emocional e mental, drástica perda de peso – em certo momento, ela chegou a cair para 36 quilos. Já Eliot secundava sua esposa com resfriados recorrentes, problemas brônquicos, dentes seriamente deteriorados (cinco foram extraídos em uma consulta odontológica), uma hérnia que exigia uso de cinta, uma cirurgia no dedo e períodos frequentes de exaustão nervosa. Ele também bebia bastante, até cinco doses de gim no jantar.

O poeta T. S. Eliot, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura e criou um fenômeno com 'Cats' Foto: Acervo Estadão

Crawford estima que só no ano de 1925 o casal gastou um terço de sua renda em médicos, remédios e internações em hospitais e sanatórios. Durante os anos 30, Eliot providenciou para que a cada vez mais problemática Vivien – a certa altura, ele se perguntou se ela poderia estar sofrendo de “possessão demoníaca” – fosse cuidada em várias casas de repouso e, em 1938, assinou documentos que a internavam em um asilo. Com uma covardia digna de Prufrock, ele o fez por carta, enquanto estava fora do país. Ele nunca mais a viu.

A poesia de Eliot muitas vezes reflete essas convulsões emocionais e espirituais, começando com a desolação de The Hollow Men, de 1925, progredindo para o drama nos versos sagrados sobre a morte de Thomas Becket, ‘Murder in the Cathedral’ (1935) e culminando na sombria obra-prima religioso-filosófica ‘Four Quartets’. Compostas entre 1936 e 1942, ‘Burnt Norton’, ‘East Coker’ (meu favorito), ‘The Dry Salvages’ e ‘Little Gidding’ se baseiam forte, ainda que obliquamente, no amor de Eliot por Hale, no passado de sua família e nas experiências do poeta durante a blitz de Londres.

E, então, em 1947, Vivien morreu. Nesse ponto, Eliot, agora livre, de repente recuou diante da perspectiva de realmente se casar com Hale, a quem escreveu: “Não posso, não posso começar a vida de novo e me adaptar (o que significa não apenas um momento, mas uma adaptação perpétua para o resto da vida) a qualquer outra pessoa”. Hale ficou arrasada, mas ficou esperando que ele mudasse de ideia. Em 1948, Eliot recebeu o Prêmio Nobel de literatura, caracterizando a honra como “um passaporte para o funeral. Ninguém nunca fez nada depois que o recebeu”. Ele está, fundamentalmente, correto. A partir de então, Eliot seria principalmente um homem público sorridente, dando palestras sobre o humanismo cristão e recebendo títulos honoríficos.

Cartão de Natal enviado por T.S. Eliot a Russell Kirk, um de seus biógrafos, autor de 'A Era de T. S. Eliot'  Foto: Acervo Estadão

Até o final dos anos 1940 e meados dos anos 50, este poeta mundialmente famoso dividiu aposentos com o espirituoso bibliófilo John Hayward. (Recomendo vivamente a rica biografia de Hayward escrita por John Smart, Tarantula’s Web). O quarto de Eliot era extravagantemente ascético: uma cama de solteiro, um crucifixo de ébano, uma lâmpada nua pendurada na corrente. Mas, muito cedo em certa manhã de 1957, o “inquilino” de Hayward anunciou – sem aviso prévio, por carta – que não voltaria no dia seguinte ou, de fato, nunca. Eliot, de 68 anos, pediu em casamento – por carta! – sua adorável secretária de 30 anos, Valerie Fletcher, e a resposta foi sim. No devido tempo, Hale recebeu uma outra carta, revelando essa traição final. Durante os últimos sete anos de vida, Eliot ficou apaixonado por sua jovem noiva, e os dois se tornaram inseparáveis. Ele morreu em 1965, aos 76 anos.

Antes disso, no entanto, Eliot queimou as cartas de Hale e, ao saber que ela estava depositando as dele em Princeton, datilografou uma nota lamentosa e grosseira declarando que ele nunca a amara, que ela era apenas uma filisteia e que se casar com ela o teria matado como poeta. Talvez essa última parte seja verdade, mas a nota certamente mata o respeito por Eliot, o homem.

Depois de saber disso, como perdoá-lo? Talvez não seja possível, mas tenha em mente que o foco de Crawford na vida privada de Eliot resulta em um quadro parcial, que desloca as realizações intelectuais e artísticas do poeta para segundo plano. Portanto, embora essas revelações muitas vezes angustiantes nos concedam uma visão mais profunda de Eliot e, consequentemente, de sua obra, é a poesia – e a crítica – que nos interessa. Depois de terminar Eliot After ‘The Waste Land’, peguei o carro e coloquei um CD de Jeremy Irons lendo “Four Quartets”. Comovido e empolgado como sempre, continuei dirigindo até o último verso, quando “o fogo e a rosa se fazem um só”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Eliot After ‘The Waste Land’

Robert Crawford

Farrar, Straus and Giroux - 624 páginas - US $40

Para citar a descrição do novo e hipnotizante livro de Robert Crawford, The Waste Land, de T.S. Eliot, era – e é – um poema sobre “ruína e quebrantamento, dor e devastação”, mas essas mesmas palavras poderiam facilmente caracterizar o casamento desastroso de seu autor. Em 1915, Eliot pediu Vivien Haigh-Wood em casamento, em parte para satisfazer um desejo de experiência sexual que ele era muito tímido para buscar de outras maneiras. Seguindo “a terrível ousadia de um momento de rendição / Que uma era de prudência jamais pode retratar”, o jovem poeta se viu acorrentado a uma mulher carente e frágil – mulher por quem passou a sentir indiferença, depois compadecimento, depois ódio. Ele acabaria buscando amor e compreensão em outro lugar.

Em Eliot After ‘The Waste Land’, Crawford detalha, com notável imparcialidade acadêmica, uma vida de “confusão complexa e contraditória”. O livro vem depois de Young Eliot (2015), que acompanhou a infância de classe média alta do poeta em St. Louis, a educação em Harvard e as viagens europeias como estudante de filosofia, encerrando-se com a publicação de The Waste Land, em 1922.

Esta segunda metade da biografia de Crawford começa com um relato do breve e insatisfatório caso amoroso de Eliot com a rica e notoriamente promíscua Nancy Cunard. Pouco depois, porém, esse marido infeliz viu seus pensamentos se voltarem para a garota que ele havia deixado para trás na América, Emily Hale. Com o tempo, Eliot e Hale iniciaram uma intensa correspondência que se desenrolaria por mais de 20 anos. Qualquer disfarce de mera amizade logo se desfez: “Eu literalmente daria meus olhos para me casar com você (...). Se algum dia eu me ver livre, pedirei que se case comigo”. Grande parte da narrativa de Crawford se baseia nessa correspondência, que estava sob sigilo até 2020.

Ilustração baseada no poema de T.S Eliot, 'Sweeney Agonistes,, por Francis Bacon Foto: The Washington Post

Concomitante ao flerte epistolar, Eliot estava se descobrindo “classicista na literatura, monarquista na política e anglo-católico na religião”. Ele ansiava por aquilo que chamou, em seu grande ensaio sobre Dante, de “mundo de dignidade, razão e ordem”. Seu compromisso com um anglicanismo excepcionalmente austero revolucionou a vida posterior de Eliot, mas arruinou a de Hale. Os laços do matrimônio, ele disse a ela repetidas vezes, eram sacrossantos. Não poderia haver divórcio. Ainda assim, os dois se encontraram ocasionalmente durante os anos entreguerras – tanto na América quanto na Inglaterra – no que parecem ter sido tardes de desejo decoroso. Hale acalentaria por muito tempo a lembrança de seus poucos beijos, enquanto Eliot celebraria, em “Burnt Norton”, seus passeios e, profeticamente, “os caminhos que não tomamos / Rumo à porta que nunca abrimos/ Para o jardim de rosas”.

Nem mesmo grandes poetas conseguem viver de sua poesia – The Waste Land vendeu apenas uns 330 exemplares nos primeiros seis meses – então Eliot, a partir de meados da década de 1920, trabalhou como diretor de uma nova editora chamada Faber & Faber. De seu escritório, ele adquiria manuscritos, supervisionava a revista cultural New Criterion e se correspondia com os maiores poetas e intelectuais conservadores. Para a diversão de seu afilhado, Tom Faber, ele regularmente enviava ao menino versos nonsense de Edward Learish, mais tarde reaproveitados em Old Possum’s Book of Practical Cats, de 1939, e, mais tarde ainda, no musical ‘Cats’, de Andrew Lloyd Webber.

Tanto Vivien quanto Eliot sofriam quase continuamente de uma série de doenças. As dela incluíam inflamação intestinal, falta de ar, gripe, herpes zoster, instabilidade emocional e mental, drástica perda de peso – em certo momento, ela chegou a cair para 36 quilos. Já Eliot secundava sua esposa com resfriados recorrentes, problemas brônquicos, dentes seriamente deteriorados (cinco foram extraídos em uma consulta odontológica), uma hérnia que exigia uso de cinta, uma cirurgia no dedo e períodos frequentes de exaustão nervosa. Ele também bebia bastante, até cinco doses de gim no jantar.

O poeta T. S. Eliot, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura e criou um fenômeno com 'Cats' Foto: Acervo Estadão

Crawford estima que só no ano de 1925 o casal gastou um terço de sua renda em médicos, remédios e internações em hospitais e sanatórios. Durante os anos 30, Eliot providenciou para que a cada vez mais problemática Vivien – a certa altura, ele se perguntou se ela poderia estar sofrendo de “possessão demoníaca” – fosse cuidada em várias casas de repouso e, em 1938, assinou documentos que a internavam em um asilo. Com uma covardia digna de Prufrock, ele o fez por carta, enquanto estava fora do país. Ele nunca mais a viu.

A poesia de Eliot muitas vezes reflete essas convulsões emocionais e espirituais, começando com a desolação de The Hollow Men, de 1925, progredindo para o drama nos versos sagrados sobre a morte de Thomas Becket, ‘Murder in the Cathedral’ (1935) e culminando na sombria obra-prima religioso-filosófica ‘Four Quartets’. Compostas entre 1936 e 1942, ‘Burnt Norton’, ‘East Coker’ (meu favorito), ‘The Dry Salvages’ e ‘Little Gidding’ se baseiam forte, ainda que obliquamente, no amor de Eliot por Hale, no passado de sua família e nas experiências do poeta durante a blitz de Londres.

E, então, em 1947, Vivien morreu. Nesse ponto, Eliot, agora livre, de repente recuou diante da perspectiva de realmente se casar com Hale, a quem escreveu: “Não posso, não posso começar a vida de novo e me adaptar (o que significa não apenas um momento, mas uma adaptação perpétua para o resto da vida) a qualquer outra pessoa”. Hale ficou arrasada, mas ficou esperando que ele mudasse de ideia. Em 1948, Eliot recebeu o Prêmio Nobel de literatura, caracterizando a honra como “um passaporte para o funeral. Ninguém nunca fez nada depois que o recebeu”. Ele está, fundamentalmente, correto. A partir de então, Eliot seria principalmente um homem público sorridente, dando palestras sobre o humanismo cristão e recebendo títulos honoríficos.

Cartão de Natal enviado por T.S. Eliot a Russell Kirk, um de seus biógrafos, autor de 'A Era de T. S. Eliot'  Foto: Acervo Estadão

Até o final dos anos 1940 e meados dos anos 50, este poeta mundialmente famoso dividiu aposentos com o espirituoso bibliófilo John Hayward. (Recomendo vivamente a rica biografia de Hayward escrita por John Smart, Tarantula’s Web). O quarto de Eliot era extravagantemente ascético: uma cama de solteiro, um crucifixo de ébano, uma lâmpada nua pendurada na corrente. Mas, muito cedo em certa manhã de 1957, o “inquilino” de Hayward anunciou – sem aviso prévio, por carta – que não voltaria no dia seguinte ou, de fato, nunca. Eliot, de 68 anos, pediu em casamento – por carta! – sua adorável secretária de 30 anos, Valerie Fletcher, e a resposta foi sim. No devido tempo, Hale recebeu uma outra carta, revelando essa traição final. Durante os últimos sete anos de vida, Eliot ficou apaixonado por sua jovem noiva, e os dois se tornaram inseparáveis. Ele morreu em 1965, aos 76 anos.

Antes disso, no entanto, Eliot queimou as cartas de Hale e, ao saber que ela estava depositando as dele em Princeton, datilografou uma nota lamentosa e grosseira declarando que ele nunca a amara, que ela era apenas uma filisteia e que se casar com ela o teria matado como poeta. Talvez essa última parte seja verdade, mas a nota certamente mata o respeito por Eliot, o homem.

Depois de saber disso, como perdoá-lo? Talvez não seja possível, mas tenha em mente que o foco de Crawford na vida privada de Eliot resulta em um quadro parcial, que desloca as realizações intelectuais e artísticas do poeta para segundo plano. Portanto, embora essas revelações muitas vezes angustiantes nos concedam uma visão mais profunda de Eliot e, consequentemente, de sua obra, é a poesia – e a crítica – que nos interessa. Depois de terminar Eliot After ‘The Waste Land’, peguei o carro e coloquei um CD de Jeremy Irons lendo “Four Quartets”. Comovido e empolgado como sempre, continuei dirigindo até o último verso, quando “o fogo e a rosa se fazem um só”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Eliot After ‘The Waste Land’

Robert Crawford

Farrar, Straus and Giroux - 624 páginas - US $40

Para citar a descrição do novo e hipnotizante livro de Robert Crawford, The Waste Land, de T.S. Eliot, era – e é – um poema sobre “ruína e quebrantamento, dor e devastação”, mas essas mesmas palavras poderiam facilmente caracterizar o casamento desastroso de seu autor. Em 1915, Eliot pediu Vivien Haigh-Wood em casamento, em parte para satisfazer um desejo de experiência sexual que ele era muito tímido para buscar de outras maneiras. Seguindo “a terrível ousadia de um momento de rendição / Que uma era de prudência jamais pode retratar”, o jovem poeta se viu acorrentado a uma mulher carente e frágil – mulher por quem passou a sentir indiferença, depois compadecimento, depois ódio. Ele acabaria buscando amor e compreensão em outro lugar.

Em Eliot After ‘The Waste Land’, Crawford detalha, com notável imparcialidade acadêmica, uma vida de “confusão complexa e contraditória”. O livro vem depois de Young Eliot (2015), que acompanhou a infância de classe média alta do poeta em St. Louis, a educação em Harvard e as viagens europeias como estudante de filosofia, encerrando-se com a publicação de The Waste Land, em 1922.

Esta segunda metade da biografia de Crawford começa com um relato do breve e insatisfatório caso amoroso de Eliot com a rica e notoriamente promíscua Nancy Cunard. Pouco depois, porém, esse marido infeliz viu seus pensamentos se voltarem para a garota que ele havia deixado para trás na América, Emily Hale. Com o tempo, Eliot e Hale iniciaram uma intensa correspondência que se desenrolaria por mais de 20 anos. Qualquer disfarce de mera amizade logo se desfez: “Eu literalmente daria meus olhos para me casar com você (...). Se algum dia eu me ver livre, pedirei que se case comigo”. Grande parte da narrativa de Crawford se baseia nessa correspondência, que estava sob sigilo até 2020.

Ilustração baseada no poema de T.S Eliot, 'Sweeney Agonistes,, por Francis Bacon Foto: The Washington Post

Concomitante ao flerte epistolar, Eliot estava se descobrindo “classicista na literatura, monarquista na política e anglo-católico na religião”. Ele ansiava por aquilo que chamou, em seu grande ensaio sobre Dante, de “mundo de dignidade, razão e ordem”. Seu compromisso com um anglicanismo excepcionalmente austero revolucionou a vida posterior de Eliot, mas arruinou a de Hale. Os laços do matrimônio, ele disse a ela repetidas vezes, eram sacrossantos. Não poderia haver divórcio. Ainda assim, os dois se encontraram ocasionalmente durante os anos entreguerras – tanto na América quanto na Inglaterra – no que parecem ter sido tardes de desejo decoroso. Hale acalentaria por muito tempo a lembrança de seus poucos beijos, enquanto Eliot celebraria, em “Burnt Norton”, seus passeios e, profeticamente, “os caminhos que não tomamos / Rumo à porta que nunca abrimos/ Para o jardim de rosas”.

Nem mesmo grandes poetas conseguem viver de sua poesia – The Waste Land vendeu apenas uns 330 exemplares nos primeiros seis meses – então Eliot, a partir de meados da década de 1920, trabalhou como diretor de uma nova editora chamada Faber & Faber. De seu escritório, ele adquiria manuscritos, supervisionava a revista cultural New Criterion e se correspondia com os maiores poetas e intelectuais conservadores. Para a diversão de seu afilhado, Tom Faber, ele regularmente enviava ao menino versos nonsense de Edward Learish, mais tarde reaproveitados em Old Possum’s Book of Practical Cats, de 1939, e, mais tarde ainda, no musical ‘Cats’, de Andrew Lloyd Webber.

Tanto Vivien quanto Eliot sofriam quase continuamente de uma série de doenças. As dela incluíam inflamação intestinal, falta de ar, gripe, herpes zoster, instabilidade emocional e mental, drástica perda de peso – em certo momento, ela chegou a cair para 36 quilos. Já Eliot secundava sua esposa com resfriados recorrentes, problemas brônquicos, dentes seriamente deteriorados (cinco foram extraídos em uma consulta odontológica), uma hérnia que exigia uso de cinta, uma cirurgia no dedo e períodos frequentes de exaustão nervosa. Ele também bebia bastante, até cinco doses de gim no jantar.

O poeta T. S. Eliot, que venceu o Prêmio Nobel de Literatura e criou um fenômeno com 'Cats' Foto: Acervo Estadão

Crawford estima que só no ano de 1925 o casal gastou um terço de sua renda em médicos, remédios e internações em hospitais e sanatórios. Durante os anos 30, Eliot providenciou para que a cada vez mais problemática Vivien – a certa altura, ele se perguntou se ela poderia estar sofrendo de “possessão demoníaca” – fosse cuidada em várias casas de repouso e, em 1938, assinou documentos que a internavam em um asilo. Com uma covardia digna de Prufrock, ele o fez por carta, enquanto estava fora do país. Ele nunca mais a viu.

A poesia de Eliot muitas vezes reflete essas convulsões emocionais e espirituais, começando com a desolação de The Hollow Men, de 1925, progredindo para o drama nos versos sagrados sobre a morte de Thomas Becket, ‘Murder in the Cathedral’ (1935) e culminando na sombria obra-prima religioso-filosófica ‘Four Quartets’. Compostas entre 1936 e 1942, ‘Burnt Norton’, ‘East Coker’ (meu favorito), ‘The Dry Salvages’ e ‘Little Gidding’ se baseiam forte, ainda que obliquamente, no amor de Eliot por Hale, no passado de sua família e nas experiências do poeta durante a blitz de Londres.

E, então, em 1947, Vivien morreu. Nesse ponto, Eliot, agora livre, de repente recuou diante da perspectiva de realmente se casar com Hale, a quem escreveu: “Não posso, não posso começar a vida de novo e me adaptar (o que significa não apenas um momento, mas uma adaptação perpétua para o resto da vida) a qualquer outra pessoa”. Hale ficou arrasada, mas ficou esperando que ele mudasse de ideia. Em 1948, Eliot recebeu o Prêmio Nobel de literatura, caracterizando a honra como “um passaporte para o funeral. Ninguém nunca fez nada depois que o recebeu”. Ele está, fundamentalmente, correto. A partir de então, Eliot seria principalmente um homem público sorridente, dando palestras sobre o humanismo cristão e recebendo títulos honoríficos.

Cartão de Natal enviado por T.S. Eliot a Russell Kirk, um de seus biógrafos, autor de 'A Era de T. S. Eliot'  Foto: Acervo Estadão

Até o final dos anos 1940 e meados dos anos 50, este poeta mundialmente famoso dividiu aposentos com o espirituoso bibliófilo John Hayward. (Recomendo vivamente a rica biografia de Hayward escrita por John Smart, Tarantula’s Web). O quarto de Eliot era extravagantemente ascético: uma cama de solteiro, um crucifixo de ébano, uma lâmpada nua pendurada na corrente. Mas, muito cedo em certa manhã de 1957, o “inquilino” de Hayward anunciou – sem aviso prévio, por carta – que não voltaria no dia seguinte ou, de fato, nunca. Eliot, de 68 anos, pediu em casamento – por carta! – sua adorável secretária de 30 anos, Valerie Fletcher, e a resposta foi sim. No devido tempo, Hale recebeu uma outra carta, revelando essa traição final. Durante os últimos sete anos de vida, Eliot ficou apaixonado por sua jovem noiva, e os dois se tornaram inseparáveis. Ele morreu em 1965, aos 76 anos.

Antes disso, no entanto, Eliot queimou as cartas de Hale e, ao saber que ela estava depositando as dele em Princeton, datilografou uma nota lamentosa e grosseira declarando que ele nunca a amara, que ela era apenas uma filisteia e que se casar com ela o teria matado como poeta. Talvez essa última parte seja verdade, mas a nota certamente mata o respeito por Eliot, o homem.

Depois de saber disso, como perdoá-lo? Talvez não seja possível, mas tenha em mente que o foco de Crawford na vida privada de Eliot resulta em um quadro parcial, que desloca as realizações intelectuais e artísticas do poeta para segundo plano. Portanto, embora essas revelações muitas vezes angustiantes nos concedam uma visão mais profunda de Eliot e, consequentemente, de sua obra, é a poesia – e a crítica – que nos interessa. Depois de terminar Eliot After ‘The Waste Land’, peguei o carro e coloquei um CD de Jeremy Irons lendo “Four Quartets”. Comovido e empolgado como sempre, continuei dirigindo até o último verso, quando “o fogo e a rosa se fazem um só”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Eliot After ‘The Waste Land’

Robert Crawford

Farrar, Straus and Giroux - 624 páginas - US $40

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